Valores

Há algo em que sou um bocado casmurro. E é na imparidade entre o valor de diferentes conseguimentos. quando comparados os méritos de uns com os seus custos.

Por exemplo: a construção de uma rede de estradas ou de um par de barragens compensa o sacrifício de vidas ao fazê-las sem condições de segurança? O ganho maior, traduzido em estatísticas de desenvolvimento, é comparável com o valor das vidas humanas?

(lembremos, nem sequer com tal custo, o que se passou em Foz Côa, com as gravuras que não sabiam nadar)

Outro exemplo mais extremo: a utilização de trabalho escravo é legitimada pela natureza da obra feita ou a fazer, mesmo que seja um hospital? Ou o Coliseu de Roma? Ou uma daquelas pirâmide bué giras para se tirar selfies à frente?

Reutilizando um exemplo histórico que já usei há uns dias: os avanços conseguidos por Salazar na estabilização das finanças públicas portuguesas nos anos 30 e o facto de ter promovido obras públicas com impacto no desenvolvimento do país podem fazer-nos esquecer o Tarrafal? Ou sequer relativizá-lo?

Que preço ou sacrifícios estamos dispostos a pagar por certos sucessos?

Acho que não será necessário explicitar muito para que se entenda que eu estou aqui a colocar em causa aquela tese – chamemos-lhe isaltina – de que um fim alegadamente virtuoso justifica os meios eticamente muito questionáveis usados ou que a obra final serve para justificar os procedimentos intermédios.

Concretizando para quem não vai lá de outra forma: será que um par de medidas eventualmente menos más de MLR justificam os tratos de polé por ela impostos aos professores? Porque já começo a ler prosas e a ouvir conversas nesse sentido, inclusivamente de pessoal estimável do sindicalismo nacional (não apenas do João Paulo), e está-se-me a arrepanhar aqui o lado esquerdo todo com tanta relativização.

Avestruz

15 opiniões sobre “Valores

  1. Tal como eu disse sobre Sócas, MLR é o pior que poderia acontecer à esquerda. É perigoso e contraproducente confundir as suas orientações com uma inspiração de esquerda.

    As políticas de MLR não conseguem esconder, quer um pendor elitista – as obras da PE (privilegiando os “liceus” dos centros urbanos maiores), o paternalismo assistencialista das NO -, quer um fundo tecno-economicista de raiz neoliberal, que de resto foi uma das linhas programáticas fundamentais do socretinismo – talvez mais visível na ADD, na sugestão da PACC (que NC concretizaria), nos mega-agrupamentos ou no arrivismo tecnológico subjacente aos Magalhães e quadros hiperactivos -, linhas de orientação estas que se resto se interpenetram.

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  2. Não gozes com a escravatura: ainda é uma realidade nos dias de hoje, em muitos sítios em África. Nesses locais a coisa é aceite como natural e ninguém se preocupa com a Milú. Esta transformou-nos em operários não em escravos: só o pensamento único escraviza…

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    1. A liberdade na tarefa, a criatividade que leva à mudança, a imaginação para resolver problemas, o desafio de dar a volta à situação concreta, o sonho de mudar alguma coisa (por muito que nos pareça pouco tocar a ama de meia-dúzia…) são elementos que só o escravo não tem. Todo o homem é livre quando a sua mente (ou o seu corpo) podem voar e sonhar.
      Tretas? Nop. Basta olhar para dentro e concretizar nas turmas e escolas onde estamos. Podemos ser livres e criadores com tudo o que nós, professores, temos à nossa disposição.

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  3. Podemos recusar o insulto, olhá-lo como uma incompreensão de um outro menos inteligente, como algo exterior que não atinge o nosso interior.
    Tudo o que é externo a nós tem , ou não, o poder de nos atingir.
    Cabe-nos a nós escolher a que coisas, pessoas, situações, têm poder sobre nós.

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  4. Tudo se relativiza… até ao dia em que lhes toca pessoalmente ou em que ocorre uma qualquer tragédia… nessa altura lembram-se os ausentes valores de Humanidade e os discursos do Papa.
    As pessoas e as organizações são levadas à exaustão, exauridas de qualquer reacção e absolutamente sós de qualquer reconhecimento e solidariedade, deixam de poder cumprir as suas funções e o desígnio da sobrevivência com alguma sanidade mental passa a comandar o dia-a-dia…

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    1. Sobreviver: justifica a escravidão? Não me parece. Na adversidade existe uma coisa chamada de resiliência e aprende-se que a liberdade dá trabalho mas conquista-se. Sobretudo dentro de nós. Depois expande-se para o exterior… a derrama-se em tudo o que fazemos. Mal pagos, cansados, mas livres.

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      1. -“sobreviver” é diferente de “sobrevivência com alguma sanidade mental”

        -“sobreviver: justifica a escravidão?”- A que propósito? Em todo o caso, sobreviver com sanidade mental pode enquadrar, por exemplo, um ditado muito português, ” albarde-se o burro à vontade do dono” (entre outros) o que está longe de uma suposta “escravidão, podendo mesmo ser encarado como uma coisa chamada de resiliência…

        – tudo tem limites e a resiliência também os tem (ainda que diferente de indivíduo para indivíduo, de organização para organização, de sociedade para sociedade,…) – e, não será por acaso que em 21 séculos: “A riqueza acumulada pelo 1% mais abastado da população mundial agora equivale, pela primeira vez, à riqueza dos 99% restantes” – http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/01/160118_riqueza_estudo_oxfam_fn.

        – comove-me, particularmente, a liberdade que se conquista “sobretudo dentro de nós” … (creio que essa até os escravos (na verdadeira acepção da palavra) ou os judeus (exterminados nos campos de concentração), os presos políticos em Angola, as vítimas de tráfico de órgãos, sexual/pedófilo/ de trabalho ilegal/, …, terão tido/ terão ainda…

        – gosto e defendo conceitos mais alargados de liberdade… diria que uma liberdade sustentada e sustentável.

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  5. Oi. Eu não tive e não tenho qualquer problema em discutir tudo. Aliás, a minha história de participação no movimento sindical é a prova disso mesmo. Isto para dizer que não tenho tabus, logo não tenho qualquer problema em considerar a tua pergunta final:
    “será que um par de medidas eventualmente menos más de MLR justificam os tratos de polé por ela impostos aos professores? Porque já começo a ler prosas e a ouvir conversas nesse sentido, inclusivamente de pessoal estimável do sindicalismo nacional (não apenas do João Paulo), e está-se-me a arrepanhar aqui o lado esquerdo todo com tanta relativização.”

    Não, não justificam. Eu lado algum escrevi, porque não é o que penso, que aceito a forma como MLR nos tratou a troco da Parque Escolar. Não defendo, por não ser o que penso, que valeu a pena ser esmagado pela divisão da carreira, a troco das novas oportunidades. Etc… Não é essa a minha argumentação. O que me parece menos correcto é criticar tudo apenas porque veio de MLR, isto é, exactamente o mesmo radicalismo de opinião que encontramos em alguns dos nossos inimigos de direita.

    Quando vejo aqui escrito nos comentários que requalificar escolas ou colocar computadores é uma visão elitista, confesso que fico sem argumentos. Para mim é simples, antes esse elitismo que o NADA de Nuno Crato.
    JP

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    1. João Paulo… já disse várias vezes que nem tudo o que foi feito em tempo de Sócrates foi mau, mas raramente foi bem “calibrado”. O que eu argumento é que nada disso pode justificar a sua forma de se relacionar com os professores. Quanto ao Nuno Crato, pouca coisa fez de novo, é bem verdade, que não tivesse sido legislado antes, como é o caso da PACC. Há coisas que fez com as quais concordo parcialmente, tendo a vantagem de poucas vezes ter chegado ao patamar discursivo de MLR.
      Foi uma desilusão? Foi.

      Já o escrevi há muito tempo com,por exemplo, aqui:

      Nuno Crato XXL – 3

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