Alentejo

Parece que existe uma polémica assinalável em torno de um livro do Henrique Raposo sobre o Alentejo. Já o comecei a ler e confesso que não percebo muito bem a razão do alarido. O livro é interessante enquanto testemunho pessoal, viagem interior de reencontro ou acerto de contas com uma identidade geográfica (etnográfica?) familiar que o autor procura apresentar como um depoimento parcialmente intimista, parcialmente observação do tipo national geografic visita os aborígenes. E talvez seja aqui que a coisa possa levantar algumas reservas, quanto ao tom usado, que afirma ser pessoal, mas ao mesmo tempo se assume sempre como olhar externo ao que observa, mas já lá vamos, após uma declaração de interesses.

Sou meio alentejano por via materna, de Vendas Novas (Alentejo apenas parcialmente profundo), trabalhei uns tempos (poucos) em Alcácer do Sal e conheço minimamente algumas das zonas descritas no livro, por onde andei por prazer e não apenas por dever. Pelo lado paterno, também tenho genética de migrante sulista, mas neste caso dos Algarves, Silves mais exactamente. Nascido e criado em plena margem sul, subúrbio proletário, crescido entre gente das mais variadas zonas do país, este é o tipo de livro que me atrai logo por causa do tema dos desenraízados.

Começa-se a ler e gosta-se, a sério que se gosta, do tom inicial, então confessional, que parece auto-depreciativo q.b., irónico, hábil com as palavras. Só que à medida que se avança, percebe-se que o olhar que se lança sobre o Alentejo faz todo o possível por se manter exterior, por ausência de empatia ou embaraço em assumir-se plenamente participante do que rodeia o autor. Percebe-se, gradualmente, que a viagem de Henrique Raposo ao Alentejo não é uma busca de identidade mas sim a busca da certidão de uma separação, o cortar de um cordão umbilical que perseguiu o autor de um modo incómodo e do qual ele se quis livrar. E ele faz isso de forma interessante em alguns momentos, enquanto em outros envereda por alguma deselegância própria do turista de passagem que vê os indígenas com evidente condescendência. E é esse o momento em que é necessário optar pelo caminho do very typical (e nesse caso deveria passar-se o teclado ao Sinel de Cordes) ou pelo de alguma compreensão antropológica dos alentejanos, velhos e novos. E o Henrique Raposo fica perdido a meio caminho, entre as estatísticas, o sarcasmo e alguma reprovação moral, a que tenta emprestar rigor histórico (pp. 56ss) como no caso em que quase explica a criminalidade contemporânea com a baixa qualidade dos nobres envolvidos na reconquista das terras além-Tejo. Mas nada disso é especialmente reprovável. São estilos. Como dizia há poucos dias um colega meu “já vi ganhar dinheiro com muito pior”. E o António Araújo nunca teria deixado publicar algo sem qualidade. Passei pelo crivo dele, sei o quanto é exigente como editor.

O problema é que o Henrique Raposo não se considera alentejano, não o quer ser, não quer compreender os alentejanos, apenas os observa e, na sua maior parte, reprova-os, não entende sequer o que significam os laços de comunidade e solidariedade no Alentejo. Mas, isso, repito, não é problema de maior.

O problema parece ser isto. Ir a um programa de amigos giros, tentar ser engraçado e começar, logo no arranque, a colocar tudo em termos políticos, direita/esquerda e tal e coiso e baralhar-se todo. E há quem se tenha ofendido, não percebendo que aquele programa é mesmo assim, não é para levar nada a sério com malta tão satisfeita consigo mesmo, a sua sofisticação, inteligência ou olhos arremelgados (a senhora).

Em momento algum isto justifica que se lancem anátemas, se ameace o autor, se queimem livros, se exerçam defeitos que até o Henrique Raposo não tinha conseguido encontrar. O livro é bem melhor do que esta forma pública de o apresentar.

Para terminar, dois apontamentos: prosa com menos de 100 páginas não precisa de tantos agradecimentos a gente notável. Parece um desfile de legitimações intelectuais da obra, uma espécie de name-dropping pouco discreto – como se o autor se sentisse inseguro sem revelar que todas aquelas pessoas leram o original e contribuíram para a reescrita final. Até porque…  e este é o segundo ponto… quando se identifica alguém como tendo de algum modo aconselhado o autor é complicado que algo relacionado directamente com a obra desse autor surja de forma errada. É o caso da localização do bairro do do Vale da Amoreira que entre parênteses se indica como sendo no Barreiro. Se é verdade que o Bruno Vieira Amaral foi um dos que acompanhou a obra ao ponto de ser uma espécie de responsável pelo título (p. 106) como é possível que, sendo autor de um notável livro inspirado naquele bairro onde viveu (que eu espreito todos os dias de aulas a partir das janelas das salas de aula viradas a sul da minha escola), não lhe tenha dito que o Vale da Amoreira (que Henrique Raposo identifica como um dos dois únicos refúgios de retornados, a par de Santo André) é e sempre foi no concelho da Moita? Eu imagino a conversa… é pá, aquele bairro sobre o qual escreveste fica onde? Perto do Barreiro – e pronto assim ficou como se fosse Carcavelos (Lisboa) ou Devesas (Porto). Bastava ir o zé google, caramba. E já agora, o bairro do Barreiro que recebeu muitos retornados foi o da Cidade Sol e no concelho da Moita, para além do Vale da Amoreira, há ainda um outro bairro com enorme presença de retornados desde os anos 70, que é o da Quinta da Fonte da Prata que também surge no livro do BVA. É um detalhe? É, mas quase logo no início do livro, chateia.

Henrique Raposo escreveu um mau livro? Não. É um livro fiel ao Alentejo? Nem por isso, mas a gasolina está cara para fazer um road movie a sério, como anunciado, de Moura a Aviz, de Castelo de Vide a São Teotónio. Faz calor e tem muita poeira, que se cola à pele, como escreve o autor. É um exorcismo? É. Ainda bem que Henrique Raposo teve quem lhe pagasse este exorcismo que se lê bem, mas que promete mais do que cumpre. E que dispensa bem engraçadices televisivas pseudo-radicais. E que, de forma alguma, justifica fatwas idiotas.

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Última Aula

Marcelo Rebelo de Sousa deu ontem a sua muita anunciada última aula na Faculdade de Direito. São mais de 40 anos de carreira académica que, como acontece com muito outros mestres de gerações universitárias, tem o seu apogeu no momento da despedida, perante os seus discípulos actuais e quantos dos antigos quiserem ou conseguirem comparecer. Acho que é, para um professor, o maior prémio de carreira por que se pode ansiar.

Só lamento que, salvo quase infinitesimais excepções, nada disto se passa com professores do Ensino Não-Superior, mesmo que eles tenham igualmente décadas de carreira, com sorte a maior parte dela em escolas onde se tornaram figuras tutelares e históricas, mesmo se há quem do alto da sua inteligência e preconceito considere isso impensável numa Escola Básica e Secundária.

Sei que os grandes professores universitários podem exercer uma marca quase inultrapassável na formação de muitos dos seus alunos, que se tornam seus mentores, que podem mesmo criar uma descendência académica e intelectual (no bom sentido, estou a exlcuir os que apenas se preocupam em engordar séquitos pessoais) e por isso são recordados com saudade por quem com eles aprendeu.

Mas esse papel também não acontece, numa fase bem mais precoce e arriscada, com professores do Ensino Básico ou secundário, quando muita coisa pode decidir-se de forma irremediável em temros de inclinações, continuação de estudos, descoberta de interesses e vocações ou a sua destruição?

Não lembramos quase nós todos as nossas professoras (e em alguns acasos professores) primários ou do 1º ciclo? Não é esse primário o que está na base (de onde vem também o básico) de tudo o que se segue? De que forma têm sido tratados tais colegas, anos após anos, quando terminam a sua carreira? Um jantarinho, com sorte uma placa, uma medalha, um souvenir entre colegas, sem qualquer despedida perante os seus discípulos?

Em especial na última década, a larga maioria que saiu da docência em final de carreira ou antecipando-a perante tudo o que se passou, fê-lo quase sempre amargurado com o que deixava para trás e não se importando em sacrificar-se materialmente para manter a sanidade. Será essa a forma certa de terminar uma carreira? Mas foi assim que a tutela activamente procurou livrar-se de muita gente que achava cara. E nem sempre as escolas souberam fazer justiça a quem partia. E quem partiu quantas vezes ficou sem vontaxde de, sequer, lá voltar.

Gostava, a sério que gostava, de ainda ver um tempo em que os professores não-universitários merecessem, nem que fosse nos casos mais emblemáticos, a homenagem pública pelo seu trabalho e que tivessem a sua despedida no palco ideal: a sala de aula, perante os seus alunos (que sempre o serão, presentes ou passados) e não a sala de almoços ou jantares, por muito apetitosa que se apresente a ementa.

Comenius

Ontem

Vou-me repetir. Quem não apareceu, perdeu uma lição magistral, em formato reduzido no tempo, do professor António Sampaio da Nóvoa. Sinceramente, acho que merecia maior audiência, mesmo se lá estavam @s melhores :-). Quanto a mim, parece que sou dos que vêem menos esperança em tudo o que resultou desses tempos de 2008 e 2009, pois acho que, no momento actual, antes de se ganhar seja o que for, há muito por recuperar. Aliás, acho que nem sequer a recuperação será possível no médio prazo, pelo que qualquer anúncio de vitórias será manifestamente exagerado. Ficaram sementes, é certo, mas que foram outros a colher com os ensinamentos originais daquela movimentação.

Sampaio da Nóvoa lamenta “híper burocracia” nas universidades

Vitórias que sabem a derrota ou o protesto dos professores visto por Guinote