O Grande Salto Atrás

À medida que a preparação do ano lectivo avança e vou tendo conhecimento do que se passa em diversas escolas pelo país vou avolumando a sensação de que se está a passar um sensível retrocesso – ou não progresso – na forma de conceber o trabalho nas escolas e, em especial, o trabalho pedagógico diário com os alunos, tudo em nome de um “sucesso” que se quer alcançado à boa e velha moda das teorias em voga nas profissionalizações dos anos 90 do século passado.

Não escrevo do que desconheço, pois a maioria dos meus colegas de curso frequentou os Ramos de Formação Educacional criados nas Universidades ali por 1987 e que eu fui acompanhando de forma mais ou menos indirecta até eu ter feito a minha profissionalização (em serviço) em 1999-2000. Esses 15-20 anos desde a entrada em funcionamento em plenos das ESE até à constatação (embora não por todos) do esgotamento do modelo dominante em alguns sectores das Ciências da Educação nacionais foram de total domínio de um conjunto de teorias herdadas directamente das teorias pedagógicas emancipatórias dos anos 60 e 70 que nem sempre (quase nunca?) conseguiram acompanhar a mudança dos tempos ou sequer incorporar alguns dos contributos menos arcaicos com essa mesma ascendência (quando se lêem actualmente certas discussões em torno dos manuais escolares percebe-se até que ponto Michael Apple não foi lido ou percebido há 20 anos).

Quando se toma conhecimento concreto dos “planos para o sucesso”, feitos de acordo com uma cartilha que deveria ser ultrapassada, concebidos assim como única forma de conseguir mais recursos para as escolas, à custa de um regresso a um admirável mundo velho em que os mentores de agora se sentiram novos, sente-se um natural desânimo pela regressão imposta de forma generalizada ao nosso sistema educativo, teoricamente sob admiráveis princípios, mas na prática significando uma estagnação deprimente da forma de pensar a própria Escola Pública que tantos afirmam defender se for apenas a “sua” ou aquela que concebem como a única virtuosa.

E deprime ainda mais ver um rosto jovem a cobrir tudo isto, como se fosse um precoce envelhecido, quiçá verdascado até se tornar crente verdadeiro. E há quem aplauda em nome da situação que tem de ser.

Não somos cegos conduzidos por cegos, mas os cegos que nos conduzem querem-nos cegos como eles. Caladinhos e sem memória. Como que lobotomizados. Anestesiados. Em nome do “direito ao sucesso” que tanto alimentou a clientela do IIE que parece ter voltado em força, desempoeirando as bibliografias que só não estavam engavetadas porque são desempoeiradas e requentadas a cada nova “formação”.

A todo este respeito, confesso-me nãostálgico.

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Manuais

Tanto haveria a dizer sobre a demagogia em torno desta área da Educação, onde tantos milhões se deslocam. Assim de perto, de quem vê isto desde que entrou para a escola há muitos anos, as coisas só melhoraram na superfície lustrosa das páginas muito ilustradas, mantendo-se muitos vícios nos meandros, quase sempre distantes do escrutínio público. E sem que eu veja muitos inocentes, excepto os que pagam ou que são obrigados a esperar até terem direito ao mesmo que os outros para chegar ao “sucesso”. Algumas iniciativas da política mais imediatista, entre a ousadia (gratuitidade dos manuais do 1º ano) e o temor orçamental (reutilização obrigatória em bom estado), ajudam pouco à situação, quando não são devidamente preparadas. Para além de ser esquecido que os encargos das famílias com materiais escolares e auxiliares ao estudo são muito vulneráveis às frequentes mudanças de orientação nos currículos, programas, metas e mecanismos de avaliação externa das aprendizagens. Cada vez que um ministro ou secretário de Estado espirra uma reforma, são milhões de livros deitados fora e outros tantos adquiridos de novo, porque agora a prova é de 5º e não é exame de 6º e agora a prova é assim e não assado e as vírgulas e os parágrafos das metas mudaram de sítio.

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Afunilamento

Estou a tentar descobrir a diferença entre o que é causado pelas más práticas decorrentes da existência de “exames” e o que é promovido pelas boas práticas viradas para o “sucesso”. Visto assim de cernelha, parece-me que fazer as mesmas coisas, ao mesmo tempo, com as mesmas metodologias e “instrumentos” vai dar ao mesmo, independentemente da cor do ovo.

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Insegurança

Em muitos casos é directamente proporcional à preocupação em achar o pequeno erro no trabalho alheio, aquele pequeno prazer em achar uma rachita no tecto da Capela Sistina, a falta de braço na Vénus de Milo ou a falta de velas no candeeiro da sala dos Arnolfini. Tal como a pequenez se esconde tanta vez atrás da erudição sobre a ponta da asa da mosca.

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