Linguagem em Contexto

Outubro de 1992. Primeira vez que leccionava 2º ciclo e logo 5º ano. Em todas as experiências anteriores tinha dado aulas à noite, a turmas do Secundário (sim, também eu já fui “do Secundário”, esse nível mítico de ensino) e a 9ºs anos. Mais propriamente a 11 turmas do 9º ano (da B à L) no ano anterior, em regime de substituição a partir de final do 2º período, coisa de 300 alunos por contas baixas.

Tudo em escolas capazes de fazer a barba ao mais intrépido, só para testar os nervos do profe novo, acabado de chegar. Sabia disso, tinha sido aluno numa delas.

Vai daí e a meio da 2ª aula, perante aquela inquietude típica de um 5º ano de fresco, decidi exercitar a estratégia da imposição da ordem pelo poder da voz colocada ao fundo da sala (bué antipedagógico, mas ainda íamos nos primeiros tempos do eduquês fofinho e eu era contratado não lambido pelas Ciências Profissionalizadoras da Educação) e de repente alguém me diz com voz baixinha, perante o silêncio instalado na sala: “professor, o Ricardo está quase a chorar”. E estava, lembro-me do nome, da cara e do penteado algo à tigela saída dos anos 80 do cachopo que agora andará pelos 35 anos, a soluçar. Assim como não me esqueço do ar petrificado de boa parte dos restantes.

E percebi ao vivo que ali estava num outro ambiente da Educação, muito distante (apenas a 5 km físicos) da Secundária da Moita onde se impunha o respeito nas primeiras impressões ou se estava lixado com um F maiúsculo na primeira semana, sem possibilidade de recuperação.

E percebi (se ainda não o tinha percebido enquanto aluno) que dar aulas não é sempre o mesmo, que o registo limnguístico deve mudar, a linguagem corporal, a expressão, o nível do humor, a voz, quase tudo. Algo que ninguém ensinou a muita gente (eu incluído ao finalizar essa década) nas profissionalizações de aviário, em que o discurso dominante era o do piaget para totós, que era a capacidade de muitos dos arautos. Foi ali, assustado com o meu efeito no pobre Ricardo (o apelido começava por M, garanto que sim), que me adaptei em minutos a todo um diferente nível de ensino, a uma tipologia diferente de alunos, a uma maneira totalmente diversa de encarar uma aula e, 25 anos depois, continuo nesse processo de adaptação diária. Da linguagem. Verbal, simbólica, corporal.

É uma dor de alma quando se observa quem ficou dentro da sua cabeça há esse mesmo quarto de século, mais ou menos, incapaz de ver, ouvir, tentar compreender. Aprender. Para ensinar.

PG 4

4 opiniões sobre “Linguagem em Contexto

  1. Bela história. Também tive disso algures em 1995 e concordo com essa visão quer do aprender para ensinar quer do que não se aprende na formação.

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  2. É verdade. Eu nas aec´s aprendi a dar abracinhos, o poder de um abracinho quando algum vem até mim a chorar. E o poder do castigo, que eles aceitam, quando se portam mal. Muito diferente da distancia de um 3º ciclo.
    Tenho um que tem ataques de fúria completamente irracionais. Ontem portou-se mal. Calmamente dei-lhe a mão, mandei-o ir comigo e levei-o para o castigo. Ficou lá. Na próxima semana vai-me dar outro abracinho. 🙂

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  3. É assim mesmo. Tudo tem o seu contexto. Um dia, nesta mesma escola onde lecciono, sentei uma aluna lavada em lágrimas no meu colinho e dei-lhe… colinho… enquanto a fazia ver que um satisfaz não era o fim do mundo e que no próximo teste por certo ela tiraria melhor nota. Tirou. Hoje, no 12º ano, já me disse que foi importante aquele satisfaz e o colinho e as minhas palavras que a ajudaram a lidar com a frustração de não ter alcançado o que ela queria. Isto para dizer que há escolas onde eu não me atreveria a sentar uma aluna no colo, onde não me atreveria a afagar-lhe a cara, mimando-a.

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  4. Ensinar é, acima de tudo, uma relação humana. Com todas as contingências associadas. Não há uma ciência educativa ou pedagógica para isso; não existe nenhum guião definitivo…

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