Défices

Há coisas que só se podem fazer com um nível de responsabilidade e atenção que não combinam com a pressa, pressão, desinteresse ou rotina. Um deles é rotular os alunos de um modo que venha a ter implicações sérias no seu futuro. Por vezes, há indignações com a forma como os alunos de origem portuguesa são tratados no Luxemburgo, Alemanha ou outros países, por serem empurrados para turmas especiais, como se fossem portadores de um défice cognitivo, apenas porque dominam mal a língua do país de chegada, as suas tradições, as suas expressões idiomáticas, provérbios ou mesmo o vocabulário mais básico ou que se considera muito básico. Mas, depois, há que faça o mesmo.

Há uns bons anos tive um aluno, acabadinho de chegar de um palop, com um ambiente familiar com o crioulo como língua quotidiana e o português como uma espécie de segunda língua (a tal língua não-materna), apesar de ser a oficial. O miúdo não sabia o que eram as coisas mais elementares, quando faladas, ou quando apresentadas de forma isolada. Não reconhecia o nome de frutos para nós muito comuns (lembro-me do caso do pêssego) ou de outros alimentos.  Mesmo a representação gráfica de alguns não ajudava, pois nunca os tinha visto. Não sabia o que era um “ribeiro”, um “pomar”, etc, etc. O facto de alguns colegas gozarem com ele, mesmo alguns com a sua origem mas há mais anos entre nós ou já cá nascidos, não ajudava nada a que ele exteriorizasse fosse o que fosse e preferisse ficar calado a arriscar uma resposta, quase se instalando um bloqueio emocional que o fazia recusar qualquer tarefa que achasse que lhe era estranha ou que achasse que iria motivar olhares ou comentários apalermados dos seus pares.

Mas se eu lhe dissesse que tinha apanhado um pêssego da árvore, que era doce e o comera, ele percebia que era um alimento e uma fruta, assim como se eu dissesse que tinha ido ao mar pescar um robalo. Ao fim de algum tempo, começando a dominar alguns termos, relacionando-os com o que começava a ver entre nós ou através de explicações ou imagens projectadas, aprendia rapidamente o que eram, para que serviam e, se estivesse num ambiente mais controlado, menos vulnerável a críticas despropositadas, conseguia desenvolver aprendizagens que lhe permitiam ir reduzindo gradualmente o que era um “défice” (ou desafasamento) cultural e não cognitivo.

O problema é se, precocemente, acabasse catalogado como qualquer coisa “especial”, na base de um ou dois testes escritos, aplicados de forma rotineira e entediada, com a pressa natural no desinteresse, encaminhando-o para um corredor estreito com escassas hipóteses de retorno.

Por vezes, a idiotice não está no examinado e o défice é mais um reflexo do que outra coisa.

ed-bang-head-o