Há quem pareça pensar que ando a escrever só para dizer mal da ideia de flexibilização curricular porque não quero mudança. Errado, o que eu critico é a roupagem que anda a envolver esta tentativa trêpega de querer fazer uma “profunda” reforma curricular, como se fosse um salto para o futuro e como se as pessoas que dela discordassem fossem uns matusaléns pedagógicos, incapazes de sair do século XX ou XIX.
Pelo contrário, a minha crítica faz-se no sentido inverso. O de que as concepções que fundamentam o que agora se quer apresentar como “inovador” não passam da recauchutagem de ideias que existem há muito entre nós, que começaram a ser implementadas (e desfeitas) em dois momentos das últimas décadas, primeiro pelo PSD no início dos anos 90 do século XX e depois pelo PS na viragem para o século XXI (hélas!), não tendo colhido grande sucesso nas escolas pela forma como quiseram operacionalizar pela via do mínimo custo possível a modernidade. Nos anos 90 com Couto dos Santos e Manuela Ferreira Leite a desmantelar boa parte da reforma Roberto Carneiro e no início do século XXI com David Justino e Maria de Lurdes Rodrigues (bem antes de Crato) a tornar as ACND algo pior ainda do que tinha sido no momento da sua criação. Crato apenas oficializou o fim da coisa, que andava defunta por ali… submersa em papelada e fingimento.
Eu não estou contra a mudança. Muito pelo contrário. Estou é contra a mudança fingida, contra a mistificação retórica e com a incapacidade política deste tipo de reforma escapar aos grupos de pressão que mandam na geringonça educativa e não estou a falar dos sindicatos, coitados, arrumados a um canto da prateleira.
Mas voltemos ao que se passou mesmo no início dos anos 90 e recordemos como o que agora se quer apresentar como novo não passa de algo velho. Já então o trabalho de projecto era um grande objectivo, com toda um enorme aparato de “instrumentos” e “ferramentas” para diagnosticar “problemas”, planificar “estratégias”, registar “evidências” e relatar todo o sucedido. Para os mais desmemoriados (que os há em grande quantidade com o avanço da nossa idade) foi o momento em que o pesadelo burrocrático nas escolas se começou a volumar de modo exponencial, com uma tabela, um quadro, uma grelha de observação, um relatório para cada mijinha curricular, extra-curricular, disciplinas, interdisciplinar, multidisciplinar, transversal, horizontal, diagonal ou vertical, se ainda existisse força nas articulações.
Recordemos como foram então “conceptualizadas” coisas como o Plano Educativo da Escola as Actividades de Complemento Curricular ou a Área-Escola (e desculpem lá a extensão da coisa, mas nada como MOSTRAR as coisas, porque não chega enunciá-las, mesmo que a memória esteja fresca):






A transversalidade da abordagem dos conteúdos numa perspectiva inter e/ou transdisciplinar já existia



Depois veio a “formação” e a difusão da palavra aos professores que deveriam ser nas escolas os apóstolos das novas metodologias (é por esta altura que muitos dos que andam agora a professar esta mesma Fé eram professores ou alunos nos Ramos de Formação Educacional – que em 1987 eu me tinha recusado a aceitar como destino único para os licenciados na área das Letras – período em que formaram as suas crenças irredutíveis na virtude do modelo.
O que se segue é do livro Gerir o Trabalho de Projecto – Um Manual para Professores e Formadores de Lisete Barbosa de Castro e Maria Manuel Calvet Ricardo (Lisboa, Texto Editora, 1993 na sua edição original, 1998 na 5ª edição de que abaixo reproduzo as páginas 45 a 47, estando mais acima as páginas 75 e 76).


Quem se der ao trabalho de ler (pobre coitados, não sigam o meu mau exemplo) encontrarão quase ipsis verbis o que agora se anuncia em novas “formações” (em outro post irei divertir-me com a questão da avaliação).
Não, não sou eu que fiquei parado no século XX. quem ficou parado lá foi quem leu isto e ainda hoje pensa que é o que de mais inovador existe à face da Terra em termos de metodologia. Reparem que não estou a avaliar se é bom ou mau. Apenas a descrever que já passámos por isto e que foi aqui que a docência se transformou em muitos momentos numa encenação para o registo em formulários como o que ocupa cinco páginas (65-69) deste mesmo livro com a designação de “Quadro/Resumo”.
Estou a simplificar ou a caricaturar? Nada disso. Estou a recordar. mostrando. E foi contra isto que muito de nós nos revoltámos. Contra o império da burrocracia pedagógica, do palavreado bacoco. Em tempos em que eu era apenas contratado, mas lá tinha de “fazer Área-Escola”… ou melhor… eu era dos que mostrava só o que os alunos faziam… não ia fazer em vez deles para depois tirar fotos e dizer que era muito bom professor.
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