O original completo do meu contributo, muito pouco alinhado com as modas, para esta peça do Jornal de Leiria:
Na sua opinião, que competências deve ter o aluno após 12 anos de escolaridade?
A definição de um conjunto de competências para os alunos ao fim de um período de 12 anos de escolaridade, o qual abarca vários ciclos e uma multiplicidade de disciplinas é algo demasiado ambicioso e que eu não me julgo com a capacidade de fazer de um modo completo. Até porque se pode confundir o que pretendemos dos “alunos” que finalizam essa escolaridade e os indivíduos, as pessoas, os cidadãos de 18 anos que gostaríamos de encontrar na nossa sociedade. Ora, se o papel da Educação é central na sua formação, não pode nem deve ser o único e não podemos deixar para a vida escolar muito daquilo que deve continuar a pertencer a outras esferas da vida e formação dos indivíduos. A Educação não pode desprezar a sua função central de preparação dos alunos com um conjunto de conhecimentos indispensáveis para a compreensão do mundo que os rodeia.
Essas competências são as defendidas pela tutela no Perfil do Aluno?
Só em parte. O chamado “Perfil do Aluno” prefere centrar-se em competências de tipo mais geral, como se a escola tivesse de assumir uma série de responsabilidades em áreas da socialização que devem permanecer, como disse, numa parte bastante importante, no ambiente familiar ou social dos alunos. As competências definidas no Perfil do Aluno são uma espécie de amálgama que vai para além do que deve ser um “aluno” mas que, ao mesmo tempo, omite áreas importantes que deveriam ser específicas da “escolaridade”, nomeadamente as que se relacionam com as questões da Memória.
O modelo de educação deste Governo parece dar maior destaque ao relacionamento interpessoal, capacidades psicossociais dos alunos e interdisciplinaridade e não tanto à questão dos resultados escolares? É uma boa medida?
O bom senso aconselha a que não devemos ter soluções demasiado limitadas ou parcelares a este nível. De qualquer modo, discordo da leitura que menoriza a importância dos resultados escolares, até porque continua a existir uma enorme pressão para a produção de sucesso na avaliação dos alunos. O que pode estar em causa é uma alteração dos parâmetros usados para a definição do que é o sucesso, com a menorização do peso da aprendizagem dos currículos disciplinares tradicionais. Isso eu considero errado, porque o relacionamento interpessoal e tudo o que se relaciona com a socialização das crianças e jovens não pode ser entregue quase em exclusivo às escolas. Pode parecer paradoxal atendendo à retórica governamental, mas este excesso de intromissão na dimensão da formação pessoal e social dos indivíduos foi, historicamente, uma marca forte dos regimes totalitários.
Qual o papel dos professores neste Perfil do Aluno?
Os professores parecem ser encarados, de forma algo caricatural, como meros “facilitadores” das aprendizagens dos alunos e não como transmissores de um corpo de conhecimentos, que um governante qualificou, para ele de forma pejorativa, como “enciclopédicos”. Esperar que alunos ao fim de 12 anos sejam apenas “capazes” de ir em busca do conhecimento ou “competentes” para construir o seu próprio conhecimento não chega. Eles devem ter mais do que competências para estar devidamente equipados para distinguir, numa época de avalanche de informação, o falso do verdadeiro, o que está estabelecido de forma razoavelmente segura do que é mera especulação ou mesmo falsidade. O papel dos professores é essencial para isso, não apenas como alguém que “conduz”, como um maestro que apenas dá indicações músicos que já conhecem o seu ofício. O professores necessita – e deve – ser muito mais do que isso.
É possível aplicar o Perfil do Aluno e cumprir as metas curriculares?
Tudo é possível, dependendo da forma como encaremos por cumprimento das metas curriculares ou dos programas disciplinares. Como os actuais decisores políticos enveredaram por uma lógica de definição de “conhecimentos essenciais”, podemos sempre considerar que só se deve cumprir uma espécie de selecção de metas ou conteúdos. A metodologia de projecto, levada ao seu extremo em toda a escolaridade básica, pode conduzir muito rapidamente a um abandono do efectivo cumprimento de quaisquer metas ou programas. Mesmo se depois será necessário aos professores justificar porque o fizeram nas plataformas digitais que cada vez mais existem para controlar o seu trabalho.
É muito referido que a escola deve ensinar aquilo que os alunos não aprendem no “google” (além da importância de saberem o que é informação fidedigna). Estamos a pôr em segundo plano disciplinas como História ou Geografia?
Em especial a História anda a ser menorizada há bastantes anos com a redução da carga horária no currículo do Ensino Básico, bem como a Filosofia (que ajuda a pensar para além do google) no Ensino Secundário. Parece existir uma imensa aversão de um grupo de pessoas com crescente poder na definição das políticas curriculares em relação a disciplinas que pretendem transmitir aos alunos ferramentas para perceber o mundo em que vivem, seja através da perspectiva do trajecto histórico da Humanidade, seja da aprendizagem de técnicas essenciais para a compreensão e desmontagem de discursos falacciosos. A História e a Filosofia parecem ser os principais alvos a abater por quem quer criar alunos com “pensamento crítico” ou “criativo”, mas sem as bases para o exercer de um modo informado.
O papel do professor não é só ensinar como ajudar a relacionar e a contextualizar. Tem ainda um papel de humanização. Não é assim?
A Educação baseou-se, desde os seus primórdios e independentemente das ferramentas técnicas que foram sendo desenvolvidas, numa relação entre professores e alunos no sentido da transmissão do Conhecimento. A dimensão “social” foi sempre secundária. Os discípulos de Sócrates poderiam ir “socializar” entre si e o seu mestre, mas em primeiro lugar iam “aprender” com ele. O mesmo se diga em relação aos alunos das primeiras Universidades. O argumento da necessidade de um novo paradigma “para o século XXI” é paródico. Podemos tentar reinventar o que rodeia a roda, mas a roda continua a sê-lo. Como os hospitais continuam a ter traços comuns aos de outros tempos, o mesmo se podendo dizer dos próprios tribunais, as escolas continuam a ter uma função central que atravessa os tempos e os professores não podem ser encarados ou apresentados como uma espécie de “animadores culturais” cujo papel é equivalente ao dos alunos. Pelo contrário, num tempo de aceleração e multiplicação dos estímulos, o professor deve ser o elemento humano essencial para “descodificar” este novo mundo.