Como tratar a obesidade curricular?
30 de abril de 2016, Fundação Calouste Gulbenkian, a Conferência Currículo para o século XXI- competências, conhecimentos e valores numa escolaridade de 12 anos marca o início, à data de hoje podemos afirmá-lo, de uma efetiva reforma curricular.
Perante o Sr. Secretário de Estado e outras individualidades, perante uma plateia de professores, entre os quais também estava, Associações de Professores das várias disciplinas anuíam em coro a inexequibilidade das Metas Curriculares do Ministro Crato. A plateia acenava com a cabeça e eu obviamente também o fiz!
Ao Programa de 1991, as Metas Curriculares História e Geografia de Portugal (HGP, 2.º ciclo) e História (3.º ciclo) acrescentaram e complexificaram a abordagem de conteúdos. A agonia instalara-se na sala de aula…Faltava tempo para ensinar tudo aquilo, faltava tempo para esmiuçar o que estava complexo e faltava tempo para atividades diferentes, para aprofundar aqueles temas que mais motivam os alunos… A corrida contra o tempo, o tempo castrador. Inquiridos milhares de docentes e ouvidos os alunos, confirma-se que o grande mal-estar resultava de um curriculum overloaded, tal como o classificou a OCDE.
Como tratar esta obesidade curricular? Eliminar gorduras, é óbvio! Às Associações de Professores, assumidas a priori como os legítimos representantes dos docentes de cada disciplina, o Ministério da Educação incumbiu a definição de um novo plano alimentar. Em maio de 2018, ainda a tempo do verão, dá-se a conhecer a nova dieta, as Aprendizagens Essenciais: conhecimentos, capacidades e atitudes centradas no que realmente importa para, no final de 12 anos de escola, termos o aluno musculado para enfrentar os desafios do mundo atual, em constante mudança.
Até aqui tudo faz sentido e todos estamos conscientes de que se os alunos não agarram a escola, como noutros tempos, tem de ser a escola a agarrá-los. A escola tem de mudar, mais uma vez, de se adaptar, de se reinventar. Por isso, não sou avessa à mudança só porque sim, estou cansada das mudanças constantes, em função de ciclos governativos, e estou contra e desconfiada desta dieta rápida. Como em qualquer dieta rápida, sabemos que os resultados são visíveis de forma imediata, mas manter-se-ão a longo prazo? Ou andaremos sempre neste efeito ioió? Um novo governo, outra reviravolta, uma nova marca ideológica.
Combater a obesidade curricular exige tempo. Tempo para analisar, medir, testar, readaptar o plano à realidade nacional. A Finlândia, que se tomou por modelo, maturou a sua reforma curricular ao longo de uma década e os diferentes partidos políticos concertaram um pacto de estabilidade na educação. As escolas precisam de estabilidade, de rotinas e é aqui que devem paulatinamente ancorar as mudanças necessárias. É nesta constância que se gera confiança nas potencialidades do nosso sistema de ensino.
As Aprendizagens Essenciais foram feitas num tempo recorde e eliminar o que poderia estar em excesso não pode ser cortar discricionariamente, como sucede no caso da disciplina de HGP. Esperava-se um documento curricular que, ao definir o denominador comum de aprendizagem para todos os alunos, fosse uma síntese coerente, que realmente orientasse o trabalho dos professores e facilitasse o acompanhamento por parte dos encarregados de educação.
Afinal, as Aprendizagens Essenciais só vieram destabilizar, na medida em que se constituem como mais um documento curricular, a juntar ao Programa de 1991 e às Metas Curriculares. Temos três documentos curriculares diferentes simultaneamente em vigor.
As Aprendizagens Essenciais acrescentam conteúdos e conceitos novos. A noção de cidadania aparece agora, na Pré-História, quando se fala da vida em comunidade nas primeiras aldeias! Mas o mesmo conceito está em falta em temas onde, inevitavelmente, deve ser explorado com os alunos: no triunfo do Liberalismo, no século XIX, e na construção da democracia, após a Revolução do 25 de Abril e até à atualidade. Cortou-se na História, mas criou-se uma nova disciplina, entre outras: Cidadania e Desenvolvimento! Ocorre-me a questão…Então, e a obesidade curricular?
Por outro lado, há conteúdos que se reduziram a uma superficialidade incompreensível. Dos Romanos basta saber-se que os povos ibéricos lhes resistiram. Por outro lado, os alunos têm de saber identificar/aplicar os conceitos de romanização, cristianismo… E onde estão explanados os conteúdos, os conhecimentos que os suportam? Encontramos outro exemplo na presença muçulmana na Península Ibérica, em que se perdeu o foco no conhecimento do Islão e nas heranças culturais deixadas por esta civilização. Numa altura em que se fala de multiculturalidade, na importância do conhecimento do outro para a aceitação da diferença, para a promoção da tolerância, não se encontram explicações para isto. E se há conteúdos que revitalizam a disciplina de História e lhe dão sentido, aos olhos dos nossos alunos, este é um deles!
Apela-se ao desenvolvimento da sensibilidade estética, como uma das áreas competentes definidas no novo Perfil do Aluno do Século XXI, mas, quanto ao Românico e ao Gótico, os alunos têm de “identificar monumentos representativos do período, sem preocupações de estilo”. Como vão identificar monumentos sem diferenciarem cada um dos estilos? Apaga-se a trilogia negra do século XIV, ou seja, apaga-se a força impulsionadora do arranque da Expansão Marítima portuguesa. Estas são apenas algumas de entre tantas outras fragilidades desta dieta rápida…
À conta de se ganhar tempo, não só o que os Professores pediam e de que precisam, mas também o que a flexibilidade curricular em marcha exige, perdeu-se o norte. O currículo de HGP emagreceu, mas está desequilibrado, descompensado e, agora, quem resolve?
Cada um de nós, cada professor, quando lá para setembro se confrontar com esta realidade, com mais uma mudança. Das metas injetará uma gordurinha ali, ao Programa vai buscar umas vitaminas… Qualquer coisa se há de “desenrascar”!
Elisabete Jesus
(Professora de História, Encarregada de Educação e Autora de manuais escolares)

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