Da Cidadania (Pouco Desenvolvida)

De um@ professor@ de uma escola por aí, de que retirei a identificação.

Algumas observações sobre o documento Estratégia da […] para a Cidadania e Desenvolvimento.

(Professor ….)

Em primeiro lugar, quero recordar o repto lançado na reunião geral de professores no início deste ano lectivo quanto à importância do pensamento crítico e, sobretudo, da fundamentação da crítica. Se não me falta honesto exercício do primeiro, esforço-me por ter argumentos de sobejo quando exerço a segunda.

Atenção: não nos esqueçamos de que o assunto é cidadania!

O documento Estratégia da […] para a Cidadania e Desenvolvimento não foi discutido pelos professores nos grupos disciplinares e esta “anualização de subdomínios” que ele propõe tem tanto de arbitrário como de discutível.

Os subdomínios foram inventados por alguém (a escola?) e os domínios que estão definidos no documento são uma transcrição do anexo VIII da Portaria n.º 223-A/2018 de 3 de Agosto.

Artigo 11.º

Cidadania e Desenvolvimento

1 — No quadro da Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (ENEC), cabe à escola aprovar a sua estratégia de educação para a cidadania, de acordo com o previsto no artigo 15.º do Decreto -Lei n.º 55/2018, de 6 de julho.

2 — Os domínios a que se refere a alínea a) do n.º 2 do artigo 15.º do mesmo diploma, a desenvolver em cada ciclo, são os constantes no anexo VIII da presente portaria, e da qual faz parte integrante.

Portanto, “a escola” (quem é a escola?) aprovou a estratégia de educação para a cidadania, “em linhas gerais”, no conselho pedagógico de 13 de Julho,  obedecendo, ipsis verbis, ao que está no Anexo VIII da Portaria n.º 223-A/2018.

No artigo 15.º do Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de Julho, a que a Portaria se refere, pode ler-se:

Artigo 15.º

Cidadania e Desenvolvimento

1 — No âmbito da Estratégia Nacional da Educação para a Cidadania, a componente Cidadania e Desenvolvimento é desenvolvida de acordo com o disposto nos números seguintes.

2 — Cabe a cada escola aprovar a sua estratégia de educação para a cidadania, definindo: a) Os domínios, os temas e as aprendizagens a desenvolver em cada ciclo e ano de escolaridade; b) O modo de organização do trabalho; c) Os projetos a desenvolver pelos alunos que concretizam na comunidade as aprendizagens a desenvolver; d) As parcerias a estabelecer com entidades da comunidade numa perspetiva de trabalho em rede, com vista à concretização dos projetos; e) A avaliação das aprendizagens dos alunos; f) A avaliação da estratégia de educação para a cidadania da escola.

É curioso: a 6 de Julho o Decreto-Lei dizia que “a escola” (quem é a escola?) aprova a estratégia e define os domínios e a 3 de Agosto impunha os domínios às escolas através do Anexo VIII. O que se terá passado neste intervalo de tempo? Deixou-se de confiar na escola? Deixou-se de se confiar à escola a capacidade de decidir? É isto a autonomia? Atenção: estamos a falar de cidadania!

Mas o espanto não se fica por aqui. É que já no Decreto-Lei de 6 de Julho há esta pérola pedagógica, este suprassumo da pedagogia da emancipação e da autonomia: quem define os projectos a desenvolver pelos alunos são os professores! Então, e a autonomia dos alunos, a sua participação no processo? Erro de palmatória para quem teve a veleidade de pensar em pedagogia de projectos!

O documento Estratégia da […] para a Cidadania e Desenvolvimento seguiu o espírito do Decreto-Lei e da Portaria: obedeceu e impôs. Que obedeça, e que obedeçamos, é inevitável. Estamos habituados a que os governos sofismem e asfixiem a tão retoricamente ufanada autonomia da escola. Os normativos são para cumprir, somos servidores públicos. Que imponha sem consultar é que não é democrático, ainda mais dentro da escola, de escola para escola – afinal quem é a escola? A escola é os seus professores e os seus alunos. Tanto uns como outros estão subjugados por uma mentalidade que não pergunta, impõe; que desconfia, que menoriza, que não deixa espaço à decisão. Vais fazer o projecto que nós decidimos! Atenção: estamos a falar de cidadania!

No documento Estratégia da […] para a Cidadania e Desenvolvimento, os subdomínios e a sua anualização têm tanto de arbitrário – porque não houve consulta –, como de discutível – porque depende das idiossincrasias das turmas e não de uma abstracção chamada “ano lectivo”. É ou não é um bom princípio o da adaptação do currículo à realidade das turmas? Por que motivo não se há-de falar de igualdade de género no 5º ano quando muitas raparigas limpam as casas ao fim de semana e os rapazes não? Por que motivo não se há-de falar de biodiversidade da [região] no 5º ano quando o programa de ciências o permite e sugere? Por que motivo não se há-de falar de higiene pessoal no 5º ano quando é algo que qualquer professor sabe que é por vezes um assunto crítico? Poderíamos continuar a abordar todos os pontos dos subdomínios, não fosse a questão fundamental residir num plano diferente do mero esmiuçar o que está dentro de um domínio. A questão fundamental é da ordem do desenvolvimento curricular. Da mesma forma que as competências (conhecimentos-capacidades-atitudes) descritas no documento Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória desenvolvem-se ao longo dos 12 anos da escolaridade obrigatória, sem recurso à anualização de competências, os domínios impostos, ainda que legitimamente, pelo Ministério da Educação, são também passíveis de o serem. De outra forma, haverá aqui uma contradição insanável e Cidadania e Desenvolvimento não passaria de mais uma disciplina do currículo. Esta anualização apresentada – desconfio que qualquer uma que o venha a ser – é artificial e anacrónica e está nos antípodas de uma concepção de desenvolvimento curricular que entende o desenvolvimento das crianças a partir de uma complexificação crescente – dantes dizia-se “em espiral” – das competências curriculares.  Junte-se a isto o esvaziamento da possibilidade de os alunos e turmas escolherem, decidirem, que projectos fazer, projectos circunscritos pelos grandes temas que são os domínios, então não tenho outro qualificativo para a anualização do que dizer que é um erro pedagógico e curricular. Que se faça uma listagem de subtemas como mera sugestão, como proposta ou exemplo, ainda é aceitável; mas não como obrigatoriedade de os subtemas serem todos abordados ao longo da escolaridade e definidos por ano lectivo. Currículo significa percurso e, num ambiente democrático e flexível, os percursos podem ser diferentes, ainda que enformados por domínios bastante amplos. Anualizar e obrigar a que todos passem pelos mesmos subdomínios é o tradicional currículo pronto-a-vestir-tamanho-único, apenas com outra roupagem. Os erros e as más decisões, sejam da tutela ou “da escola” (quem é a escola?), prejudicam-nos, profissional e emocionalmente. Esta é, claramente, uma questão de cidadania dentro da escola.

Por fim, como reflexão e inspiração para os que não tenham lido com atenção os normativos, ficam algumas citações esclarecedoras.

Decreto-Lei n.º 55/2018

“(…) considera-se fundamental que as principais decisões a nível curricular e pedagógico sejam tomadas pelas escolas e pelos professores.”

“(…) a componente de Cidadania e Desenvolvimento, enquanto área de trabalho presente nas diferentes ofertas educativas e formativas, com vista ao exercício da cidadania ativa, de participação democrática”

 “Reconhecimento dos professores enquanto agentes principais do desenvolvimento do currículo, com um papel fundamental na sua avaliação, na reflexão sobre as opções a tomar, na sua exequibilidade e adequação aos contextos de cada comunidade escolar”

“A implementação do trabalho de projeto como dinâmica centrada no papel dos alunos enquanto autores, proporcionando aprendizagens significativas.”

“As escolas devem promover o envolvimento dos alunos, definindo procedimentos regulares de auscultação e participação dos alunos no desenho de opções curriculares e na avaliação da sua eficácia na aprendizagem.”

“(…) as escolas devem promover o envolvimento dos alunos.”

Portaria n.º 223-A/2018

“Até ao início do ano letivo, o conselho pedagógico da escola, enquanto órgão regulador do processo de avaliação das aprendizagens, define, de acordo com as prioridades e opções curriculares, e sob proposta dos departamentos curriculares, os critérios de avaliação” (é legítimo inferir que, numa escola democrática, os departamentos devem ouvir os grupos disciplinares)

Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória

“Estas competências são complementares e a sua enumeração não pressupõe qualquer hierarquia interna entre as mesmas. Nenhuma delas, por outro lado, corresponde a uma área curricular específica. Sendo que em cada área curricular estão necessariamente envolvidas múltiplas competências, teóricas e práticas. Pressupõem o desenvolvimento de literacias múltiplas, tais como a leitura e a escrita, a numeracia e a utilização das tecnologias de informação e comunicação, que são alicerces para aprender e continuar a aprender ao longo da vida.”

“• Promover de modo sistemático e intencional, na sala de aula e fora dela, atividades que permitam ao aluno fazer escolhas, confrontar pontos de vista, resolver problemas e tomar decisões com base em valores;

  • Criar na escola espaços e tempos para que os alunos intervenham livre e responsavelmente;
  • Valorizar, na avaliação das aprendizagens do aluno, o trabalho de livre iniciativa, incentivando a intervenção positiva no meio escolar e na comunidade.”

Cidadania e Desenvolvimento – Aprendizagens Essenciais

“A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania (…) integra um conjunto de competências e conhecimentos, em convergência com o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória (PA) e com as Aprendizagens Essenciais (AE).”

“Pressupõe-se, assim, que os docentes detenham formação na área da cidadania, motivação para a abordagem desta área e para a utilização de metodologias de projeto, bem como experiência na coordenação de equipas pedagógicas.”

“O desenvolvimento desta componente deve ser consolidado, de modo que as crianças e jovens, ao longo dos diferentes ciclos, experienciem e adquiram competências e conhecimentos de cidadania, em várias vertentes.”

“Os critérios de avaliação para a Cidadania e Desenvolvimento são definidos pelo Conselho de Turma e pela escola, e validados pelo Conselho Pedagógico, devendo considerar-se o impacto da participação dos alunos nas atividades realizadas na escola e na comunidade.”

Estratégia Nacional para a Educação para a Cidadania 

  • A valorização das especificidades e realidades locais em detrimento de abordagens de temáticas abstratas e descontextualizadas da vida real – importância do diagnóstico local.
  • A constatação de que a Cidadania não se aprende simplesmente por processos retóricos, por ensino transmissivo, mas por processos vivenciais.
  • A Cidadania deve estar embutida na própria cultura de escola – assente numa lógica de participação e de corresponsabilização.

sheep-dancing-o

11 opiniões sobre “Da Cidadania (Pouco Desenvolvida)

  1. De uma escola por aí…que pode muito bem ser a minha…infelizmente pode se dizer “copia e cola”,mas a culpa não é só do director, também passa e muito pelos “encarneirados”!!

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    1. Caro Duílio, no passado dia 20 de setembro estivemos 12 professores na sessão do STOP, e colegas dois sindicalistas. Desses professores 8 eram da escola anfitriã e dois de outras 2 escolas. Se tivermos em conta que num de raio de cerca de 15 Km, que envolve os concelhos de Leiria, Batalha e Marinha Grande existem pelo menos 15 agrupamentos, não se pode dizer que éramos muitos…
      As referências/criticas aqui foram mais abrangentes.. tiveram com alvo a Plataforma.
      Um mundo acrítico é pior, por isso toda a crítica é bem vinda.
      A vida dos professores está difícil, a contagem integral do tempo de serviço esfumou-se, mas fora da escola as coisas não vão melhor…

      João Santos

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  2. Proρerly like Mommy stated, when we love one another
    and love the worlԀ that Jesus died for, tһat?s a fߋrm of worship.
    When we take into consideration God and take heed to thе
    sermߋn or in Sunday Schooⅼ, that?s a waү of ᴡorshіpping as a result of we are
    learning how nice God is and Ηe likеs that. Or once we sit
    round and inform one another what the greatest issues about God are.
    You know how much you want hearing people say how
    sensible or cute you boys are? Properly God likeѕ after we speak together about
    how great he is.? Daddy answered.

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  3. Como proposta para o tema da Cidadania, eu começaria com a obra Civil Disobedience do Thoreau… Depois ia ao Tolstoi e ao Gandhi. Acabava-se com esta farsa em dois tempos.

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