Perguntas e respostas para uma peça que acabou por não aparecer no Expresso desta semana:
1. Que análise faz das recomendações que constam do relatório da Comissão Europeia contra o Racismo e a Intolerância?
As recomendações são uma pequena parte do relatório e nem será a mais importante. Parecem-me recomendações que padecem daquela postura politicamente correcta que é usual neste tipo de documentos e de um carácter vago que torna difícil criticá-las sem parecer retrógrado. Dito isto, parecem-me recomendações desajustadas de uma análise aprofundada da multiplicidade de documentos orientadores para a disciplina de História no 3º ciclo do Ensino Básico (programa, metas curriculares, aprendizagens essenciais) e não parece ter em conta o pouquíssimo tempo que existe para leccionar toda a Pré-História e História até ao início do século XXI. Ao concentrar-se nos manuais, esquece que eles são apenas ferramentas ao serviço dos professores que fazem (se não o fazem deveriam fazer) uma abordagem crítica dos conteúdos no seu trabalho com os alunos.
2. Considera o Ministério ser necessário avançar com alguma revisão dos programas de História? Quando foram feitas as últimas revisões programáticas para os três ciclos do Ensino Básico? quem foram os autores dos actuais programas?
Penso que seriam importante uma revisão do programa, em vez de remendos sucessivos, com metas curriculares (mandato de Nuno Crato) e aprendizagens essenciais (mandato actual) que tornam o panorama dos conteúdos uma espécie de manta de retalhos, com uma coerência muito relativa.
O programa propriamente dito (pode encontrar-se aqui) é de 1991 e uma revisão não lhe faria mal, embora não se possa dizer que as propostas metodológicas estejam muito atrasadas em relação a documentos elaborados posteriormente. As metas curriculares (2013) procuraram acrescentar alguns conteúdos, em especial no 9º ano, prolongando-os até ao início do século XX, mas não atenderam ao encurtamento progressivo da carga horária semanal atribuída à disciplina. As mais recentes “aprendizagens essenciais” (homologadas em 2018 e consultáveis a partir daqui) procederam a uma nova arrumação, no sentido da redução, dos conteúdos considerados “essenciais”, acabando por quebrar, em diversas épocas históricas, a sensação de diacronia do tempo histórico, atomizando a abordagem de certos processos e quase destruindo a noção de continuidade entre algumas épocas. É necessário aos professores colmatarem essas falhas na sua prática pedagógica, mas implementação de uma disparatada semestralização da disciplina contribui para o agravamento de uma visão da História como se fosse uma mera colecção de “episódios” e acontecimentos isolados no tempo.
A autoria dos documentos raramente é referida, com excepção da equipa que elaborou as “metas”. As “aprendizagens” de 2018 terão tido o aval da APH.3. Considera que o ensino de História nas escolas é um instrumento privilegiado para combater o surgimento ou atenuar a existência de sentimentos racistas e xenófobos entre os alunos?
Sim, como muitas outras disciplinas, embora a História pelo seu objecto principal (a evolução da Humanidade) seja realmente uma área do conhecimento (não gosto da expressão “instrumento”) que pode apetrechar os alunos com informações importantes para a compreensão do que no passado causou algumas das maiores tragédias nas sociedades humanas. Embora seja demasiado simplista procurar “lições” na História, é inegável que a sua abordagem rigorosa e crítica é muito importante para a adequada (in)formação dos cidadãos. Não sei se é exactamente por isso que a História (como a Filosofia) tem perdido espaço no currículo, sendo objecto de críticas directas de governantes e de uma amputação de alguns conteúdos nas recomendações metodológicas mais recentes.
4. A forma como os programas estão atualmente estruturados sublinha devidamente o papel das ex-colónias portuguesas e das suas populações? Aborda de forma devida o período dos Descobrimentos?
É bom que se entenda que estamos a falar do 3º ciclo do Ensino Básico e que algumas recomendações dão a sensação de estarem a pensar num grau de profundidade da abordagem a outro nível. Sim, existe sempre a possibilidade de se melhorarem os programas, mas essa alteração deverá ser feita de um modo equilibrado e não optar pelo sublinhar apenas de alguns períodos, acções ou actores (individuais ou colectivos) históricos em detrimento de outros, mesmo sendo sempre necessário um processo de selecção. O período dos Descobrimentos é abordado na disciplina de História com razoável rigor, expondo claramente a crueldade do esclavagismo promovido pelos portugueses entre África e o Brasil. Curiosamente, não se aborda o instituto dos “casados” no Estado da Índia.
Gostaria de exemplificar um caso em que a visão eurocêntrica acontece no sentido de sublinhar a responsabilidade europeia na violência política no século XX: sendo muito justamente sublinhados os casos de violência extrema (ao nível do genocídio) do nazismo e do estalinismo, o mesmo não acontece com os massacres japoneses na China durante a II Guerra Mundial ou do maoísmo durante os anos 50 e 60. Para não falar em outras situações de genocídios, por exemplo, na Ásia (Khmers Vermelhos) ou África (Bokassa).
Muito bom, Paulo!
Os professores de História devem rever-se naquilo que disse na entrevista.
Não sou de História, mas é uma área do saber que me interessa.
Se fosse sua colega, ficaria orgulhosa!
👍
GostarGostar
Como comentei aí para baixo (já nem sei bem onde…) esta polémica foi importada ‘a martelo’ dos ‘states’.
O ensino da escravatura,em Portugal, nunca foi problemático como o é nos estados norte-americanos.
Alguns links com interesse:
Um relatório assustador e que em grande medida se tornou o catalizador de muitas discussões nos ‘states’:
Click to access tt_hard_history_american_slavery.pdf
Do campeonato modernaço da História inclusiva e tal…:
http://preschoolersandpeace.com/blog/teach-inclusive-history-belinda-bullard
Mais gerais
http://intohistory.com/teaching-history/
https://www.fpri.org/article/1998/02/the-three-reasons-we-teach-history/
https://alumni.stanford.edu/get/page/magazine/article/?article_id=61541
https://www.washingtonpost.com/news/answer-sheet/wp/2013/05/16/how-to-teach-history-and-how-not-to/?noredirect=on&utm_term=.38b8a469e849
https://landmarkevents.org/why-history-is-the-most-important-subject-you-teach/
https://nypost.com/2017/01/22/why-schools-have-stopped-teaching-american-history/
https://iloveyoubutyouregoingtohell.org/2018/02/07/why-dont-we-tell-children-the-truth-about-slavery/
GostarGostar