Porque se enquadra também no balanço do ano lectivo e porque a edição do jornal já tem quase duas semanas, publico a pedido de várias famílias.
Perdoai-lhes, Senhoras e Senhores…
… porque não sabem o que dizem e muito menos o que se faz nas escolas ou o que é possível nelas fazer nas condições actuais. O aproveitamento, quiçá abusivo, de uma passagem do Novo Testamento (Lucas 23:34) adequa-se, contudo, ao que muitos professores em exercício pelas escolas da maior parte do país sentem quando ouvem ou leem o que diversas figuras com espaço mediático têm a afirmar sobre o quotidiano das escolas e muito em especial sobre o que deve ser o seu futuro.
Volta a ser, se alguma vez o não foi, muito acentuada a clivagem entre o que responsáveis políticos, especialistas ao serviço da actual situação política e opinadores residentes na generalidade dos meios de comunicação, afirmam sobre o estado da nossa Educação e do seu futuro e o que sentem aqueles que vivem o quotidiano das nossas escolas, em especial da rede pública não intervencionada pela Parque Escolar ou pelas verbas europeias ao serviço de “planos” com diversas designações variadas (“de sucesso”, “de inovação”, “de combate ao insucesso”, “de flexibilidade”) que permitem estar nas boas graças de quem distribui as tenças e privilégios que os poderes centrais e locais consideram ser inquestionável atributo seu.
Embora já tenha escrito sobre o tema mais do que desejaria, porque o mesmo nos aparece recorrente nas páginas dos jornais e em declarações públicas variadas, gostaria de voltar ao lugar comum do “ensino para o século XXI” em particular na sua relação com a utilização de meios digitais em sala de aula como se essa fosse, se não a única, pelo menos a mais importante estratégia de trabalho com os alunos destes tempos. Embora seja adepto e praticante da utilização de meios multimédia na leccionação de conteúdos que agora é possível trabalhar de uma forma muito mais rica devido à rapidez e multiplicação do acesso à informação, assim como de ferramentas (mais ou menos lúdicas) de aferição/avaliação das aprendizagens em tempo real, tenho algumas reservas quanto à ideia de que o ensino do século XXI só o será (do século XXI) se recorrer a meios digitais. Entendo-os como um complemento, uma extensão, do elemento humano, substituível apenas com perdas sensíveis, e nunca como o centro do acto pedagógico. A ansiedade demonstrada por algumas pessoas em relação à necessidade de “digitalizar” a Educação parece-me excessiva, assim como considero despropositada a crença de que os meios digitais, em si mesmos, sejam veículos de ensino mais eficazes do que os “professores do século XX”.
E as minhas reservas estendem-se às condições reais que têm a maioria das escolas para conseguirem implementar um ensino que recorra de forma sistemática a aparatos tecnológicos (de computadores de mesa clássicos a smartphones) que dependem de uma ligação de banda larga que suporte dezenas de acessos simultâneos por sala de aula. Sim, acredito que existam umas erradamente designadas “salas do futuro”, mas se conseguir que funcione mais de uma sala por ano de escolaridade na maioria das escolas e agrupamentos com uma dezena de terminais em bom estado e software actualizado, já me darei por feliz. Quando vejo “reportagens” a mostrar o que alguns consideram ser o futuro, para além de desanimado com a sua falta de imaginação e das adequadas leituras de antecipação científica, sinto que estou perante peças que devem mais à propaganda do que à informação.
Uma outra área que nas últimas semanas motivou diversas notícias e análises ao serviço de um programa ideológico com uma agenda muito clara e impositiva é a que associa de forma directa e simplista a reprodução das “desigualdades” no ensino à existência de exames e ao seu papel no acesso ao Ensino Superior. A tese é a de que um sistema baseado em exames falha a dois níveis: a) porque não permite às “Universidades escolherem os seus alunos”; b) porque só os alunos com famílias com mais meios económicos podem aceder a apoios como as “explicações” para obter bons resultados. Deste modo, os exames seriam ferramentas que acentuariam os mecanismos de “exclusão” e de manutenção de uma situação de desigualdade socio-económica na transição do Ensino Secundário para o Superior.
Se aceito sem dificuldade que um sistema de exames não resolve, por si só, os maiores problemas da educação não-superior e apresente algumas limitações no que realmente avalia, não é menos verdade que acho que um sistema sem qualquer regulação externa consequente das aprendizagens não é a melhor estratégia para uma sociedade que ainda é marcada por fenómenos de elevada desigualdade que não desaparecem, como num passe de mágica, ao passarmos os portões das escolas. Se é indesmentível que o estatuto social, económico, cultural, das famílias condiciona a amplitude de oportunidades dos alunos, nada prova que o desaparecimento dos exames e um acesso ao Ensino Superior definido pelas próprias instituições promoverá um sistema mais justo, meritocrático ou, como agora é moda dizer, “inclusivo”.
Há personalidades destacadas dos meios universitários que lamentam ter de receber os alunos do Ensino Secundário de acordo com provas que não controlam, mas duvido seriamente que a maior parte das Universidades esteja interessada em fazer esse tipo de trabalho. E acredito que muitas irão preferir contratar serviços ou empresas de gestão de recursos humanos para fazerem uma selecção que acabará por recair em algoritmos e instrumentos mais padronizados (testes de tipo psicotécnico de resposta múltipla em plataformas digitais) do que os exames do Ensino Secundário.
Ao contrário do que vai sendo uma tendência dominante na comunicação social, considero que os exames são um mecanismo regulador mais eficaz do que a “liberdade de escolha” dos alunos pelas Universidades. Porque os exames são classificados sem olhar a apelidos ou escolas de origem. São uma forma de avaliação menos personalizada mas, por outro lado, mais “cega” a factores externos ao desempenho dos alunos como análises a currículos feitos por medida ou a entrevistas aos candidatos e suas famílias. Há escândalos recentes nos EUA, país onde este modelo tem uma implantação enraizada nas instituições “de excelência”, que nos demonstram a que ponto esse modelo é permeável à corrupção, tráfico de influências e nepotismo do que o dos exames à saída do Secundário. No final de Junho, só na zona de Boston, foram mais de 30 os acusados (incluindo figuras proeminentes do mundo empresarial e cultural) num esquema fraudulento de subornos para a admissão dos seus filhos em algumas das Universidades mais exclusivas[i]. Em Los Angeles, um empresário confessou ter pago 250.000 dólares para que o seu filho tivesse entrada assegurada na instituição desejada[ii]. Esse escândalo sucedeu-se a outro, com penas de prisão para alguns dos responsáveis, de financiamento fraudulento de atletas recrutados como alunos para Universidades com contratos com empresas como a Adidas[iii].
A nossa realidade é outra? Por certo que sim, mas não necessariamente pelas melhores razões. A aposta muito firme de algumas Universidades portuguesas por se destacaram nos rankings internacionais tem levado a políticas de recrutamento de alunos que já escapam em parte ao processo tradicional, em especial com a captação de alunos estrangeiros. E no futuro a tendência natural, com uma maior desregulação, será a de uma maior para um maior distanciamento entre uma elite universitária de excelência e um grupo de instituições que aceitarão tudo o que apareça, porque só assim conseguirão sobreviver. As desigualdades tenderão a aumentar e não a diminuir.
As sociedades onde um sistema de acesso ao Ensino Superior sem exames funciona são aquelas que, à partida, já apresentam um nível mais baixo de desigualdades. Em que o caminho foi percorrido antes de se chegar a esse ponto. Isto não é qualquer tipo de “determinismo cultural”; é apenas a constatação dos factos e idiossincrasias de cada tipo de sociedade. E nem gostaria de fazer paralelismos com o que vamos conhecendo, por exemplo, acerca da forma como o acesso ao crédito bancário funcionou entre nós, cheio de exigências e garantias para uns e libérrimo para outros.
Fechando o círculo de referências bíblicas, só posso desejar que o reino dos Céus nos seja reservado, porque na Terra já tivemos a nossa via sacra de pobreza de espírito.
[i] https://www.latimes.com/local/lanow/la-me-college-admissions-scheme-stories-storygallery.html.
[ii] https://www.latimes.com/local/lanow/la-me-college-admissions-scandal-solana-parent-20190628-story.html.
[iii] https://www.apnews.com/07dbb33813c84f18911e700bf53b6350.