O Inferno Em Que Transformaram A Minha Profissão – 1

Publico em seguida a primeira de três partes de um texto elaborado pela colega Maria de Fátima Patranito acerca do labirinto em que se tornou a docência. Não é leitura para leigos ou colegas daquel@s muito alegritas com cada nova novidade burrocrática.

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Tenho 62 anos; 44 anos de serviço (11 anos e 6 meses em outro organismo do Estado e o restante como docente). Escolhi a minha profissão por gosto e convicção. Se fosse hoje, faria uma opção diferente.

No presente ano letivo (2018-19), fui coordenadora de departamento (cargo que acumulei com o de CAD – coordenadora de área disciplinar) e diretora de turma do ensino secundário; tenho 14 h de serviço letivo (8 horas de redução), mas em contrapartida sou agraciada com 11 horas na componente não letiva. Ainda não contabilizei as horas de trabalho individual (ou seja, realizado em casa), mas elas ultrapassavam em muito as 10h que nos são deixadas para perfazer as 35h semanais.

I – Algumas considerações sobre a carreira docente

Há mais de uma década que a carreira docente tem sido constantemente sujeita a ataques de políticos incompetentes, arrogantes, difamadores e sem escrúpulos, pouco preocupados com a escola que é de todos, com as condições de trabalho de docentes e não docentes, homens e mulheres que, em algum momento da sua vida, ousaram dizer que gostavam de trabalhar com crianças e jovens.

Particularmente, os professores têm sido alvo de ataques diversos, difamação, insultos, bodes expiatórios de insucessos de sucessivas reformas nunca avaliadas, de vontades políticas de políticos e partidos sem agenda para a Educação, tema de conversa de café e de outros espaços públicos por gente que não faz a mínima ideia do que é ser professor em Portugal e no inferno em que, sobretudo desde o ministério de Sócrates/Maria de Lurdes Rodrigues, transformaram a nossa vida. Recentemente, até fomos usados para inventar uma crise política! A Comunicação Social e os seus “comentadores” de cartilha encomendada, têm ajudado a disseminar o ódio por uma classe que devia ser respeitada e acarinhada por todos. Escusado será dizer que nunca tivemos ou temos direito ao contraditório, nos diversos meios de comunicação social, sobretudo nas televisões pública e privadas.

Com a carreira congelada durante 9 anos, 4 meses e 2 dias, com cortes salariais e sonegação dos subsídios de férias e de Natal durante o período da “crise” (2009-2014), que representaram muitos milhões de “poupança” para o Estado (que necessitava de injetar muitos milhões em bancos privados cujas administrações praticaram atos fraudulentos e levaram à sua falência e continuam impunes), com vários entraves à progressão dos docentes integrados na carreira que são colocados no 1º escalão sem que se tenha em conta todo o tempo de serviço prestado até essa altura, com a necessidade de abertura de vagas (abertas pelo ME) para aceder ao 5º e ao 7º escalão, com cotas (de acordo com regras impostas pelo ME) para a atribuição de Muito Bom e Excelente, com muitos dos docentes a receberem salários de miséria (alguns levam para casa 900 euros e muitos têm de os repartir entre duas rendas de casa pois estão deslocados a muitas dezenas ou até centenas de km de casa, combustível ou transportes públicos, alimentação e outras despesas inerentes a quem está afastado da sua residência), uma proletarização que tem acontecido com a conivência de sindicatos afetos às duas centrais sindicais, por motivos diversos e por falta de agenda política, por interesses pessoais e por afastamento da escola, durante décadas e décadas, dos vários sindicalistas e, em simultâneo, negociadores.

Em 2018, as carreiras foram descongeladas, mas o poder político “esqueceu-se” de comunicar aos portugueses que os eventuais aumentos salariais que daí resultaram, estão a ser pagos em “prestações suaves de 25%, trimestralmente”. Para esses docentes, o salário correspondente ao escalão para onde transitaram só aparecerá no último trimestre de 2019, ou seja, 2 anos depois de o governo de Costa “Ter posto o relógio a andar” (sic). Muitos docentes foram ultrapassados nesta progressão devido ao despacho que recupera 2 anos, 9 meses e 18 dias do tempo de serviço prestado, pois o diploma descrimina os que progrediram em 2018, prejudicando-os, e os que progrediram em 2019, que recuperam esse tempo de serviço de uma só vez. Não acredito no Pai Natal, mas estas ultrapassagens foram intencionalmente consagradas no diploma porque, também elas, representam uns milhões de poupança e, como diz o povo é uma forma de “dividir para reinar”. Assim, sempre conseguem pôr professores contra professores (os mais distraídos, é certo, mas infelizmente acontece). E muito mais haveria a dizer, mas a intenção do meu registo é outra.

II – As “tarefas” de um professor ao longo do ano letivo

Não tendo escrito um diário sobre aquelas que são, de uma forma geral, as tarefas (termo utilizado, intencionalmente, para desprestigiar ainda mais a classe) de um professor ao longo de um dia de trabalho dito “normal”, não quis, contudo, deixar de registar as mil e uma atividades para que somos solicitados ao longo do ano e logo após o encerramento das atividades letivas. Fomos transformados em meros funcionários do Estado, sem qualquer desprestígio para os que, com profissionalismo e responsabilidade, exercem essas funções nos mais diversos departamentos dos serviços públicos. Mas a profissão docente tem especificidades que os políticos teimam em negar, intencionalmente ou por pura ignorância e até arrogância.

A – “Tarefas” gerais:

– Preparar aulas e materiais a utilizar (embora se resuma a uma frase, é a atividade que mais tempo nos deve ocupar. Por vezes, é a que fica para o fim de tudo o resto, porque a “burrocracia” e a “escravatura” digital assim o exigem!).

– Elaborar (incluindo critérios de correção), fotocopiar, corrigir e entregar devidamente classificados os testes e outros instrumentos de avaliação aplicados a cada um dos alunos.

1ª NOTA: A falta de pessoal não docente nas escolas tem sido uma constante. Assim, o ME e as direções das escolas sempre optaram por sobrecarregar os professores com tarefas inerentes a outras funções que não as docentes. Foi neste contexto que começámos a fazer matrículas e turmas (agora um pouco menos devido à utilização da matrícula eletrónica, embora as escolas continuem a gastar milhares de folhas A4 para “renovar matrículas” dos alunos que já pertencem à escola e apenas transitaram de ano). Este ano fomos todos surpreendidos com a decisão da direção de fotocopiarmos os nossos testes, com argumentos de que assim se controlaria, com maior eficácia, o número de fotocópias. O argumento é a falta de pessoal, sobretudo de técnicos operacionais, que se têm de desdobrar para outros serviços. Quem paga essa “fatura”? Os professores! O verdadeiro argumento é o desrespeito que todos nos devotam, incluindo alguns elementos da classe docente que ocupam lugares nas direções.

As turmas são de 30 alunos, excepto no 7º ano onde são de 28. Um professor pode ter entre 3 a 8 ou mais turmas (dependendo da organização curricular de cada escola, depois da entrada em vigor do Dec. – Lei 55/2018).

– Registar numa plataforma acessível aos encarregados de educação todas as classificações de todos os instrumentos (entre 6 a 15 instrumentos anuais, dependendo da carga horária semanal da disciplina).

2ª NOTA: Nunca ninguém demonstrou, através de dados estatísticos, a percentagem de encarregados de educação que acedem a esta plataforma durante o ano letivo, mas a avaliar pelos dados da minha direção de turma, ouso afirmar que a percentagem não irá muito além dos 8%/10%. Justificar-se-á tão hercúlea “tarefa” tendo em conta o tempo despendido com a mesma? 

– No final de cada período, cada professor regista, na mesma plataforma, as propostas de classificação dos alunos (recorde-se, sobretudo, o número de turmas de cada docente).

– Nessa mesma plataforma temos de rever/recalcular o número de aulas previstas e dadas (PD), mais importando aos encarregados de educação as faltas que um professor dá do que as faltas que o seu educando deu e que ele justificou com “dores de barriga” ou “indisposição”!

– Ainda nessa plataforma, cada professor “pode” fazer sínteses descritivas, por aluno.

3ª NOTA: por vezes começa-se pelo “pode”, para de seguida se passar à obrigatoriedade do registo, por decisão das direções). 

Maria de Fátima Patranito

(continua)

Burnout