Dou continuidade, com atraso, aos meus seminais (pré?) conceitos que alguém considerou serem de “imaginação sociológica”, embora pareçam ter gostado da ideia e já reclamem, de forma equivalente, práticas imaginativas em outras áreas. Talvez o mais provocatório e inovador seja o de “Corte Inclusiva“, pois corresponde a um fenómeno que é mais recente e entrou na nossa realidade quotidiana já depois da elaboração dos grandes manuais de sociologia do século XX e ainda nos faltam referenciais dignos desse nome no século XXI.
Como é do conhecimento geral, o documento fundador de diversas tendências relacionadas com a defesa dos direitos das crianças e jovens com problemas de aprendizagem ou (como foi possível designar até 2018) “necessidades educativas especiais” foi a Declaração de Salamanca de 1994 que, como todos os textos sagrados da Humanidade, fundou una Fé mas, em simultâneo, conduziu a diferentes teologias exegéticas que nem sempre conseguiram conviver muito bem entre si, para além de despertarem o natural ímpeto para lutarem com denodo e muito arreganho pelo acesso ao Poder para melhor conseguirem impor as suas concepções interpretativas do Verbo Inclusivo.
O que significa à luz do conceito já analisado de Círculo Interno do Poder que a “Corte Inclusiva” é uma espécie de subconjunto seu, logo que os representantes da facção inclusiva dominante num dado contexto histórico-político conseguem aceder a tal posição. Não se deve confundir em nenhum momento “Corte Inclusiva” com “Educação Inclusiva” porque enquanto esta é plural e integradora, aquela é restritiva e exclusora na sua práxis. Podemos ser crentes e praticantes da “Educação Inclusiva” mas ser proscritos pela “Corte Inclusiva”, porque o estatuto de “cortesão” depende da adesão, sem reservas, aos seus dogmas particulares sobre o que é (ou não) a “Inclusão”. Não é raro o recurso nos textos de alguns dos mais destacados cortesão inclusivos o uso de binómios como “nós/eles”, “cá/lá”, “dentro/fora” ou a associação de qualidades positivas negativas aos indivíduos conforme o seu alinhamento com a Corte e as suas interpretações dos textos, em especial normativos, que, ao longo dos tempos, traduziram as verdadeiras intenções do documento fundador.
Tomemos com base este excerto:
” – as crianças e jovens com necessidades educativas especiais devem ter acesso às escolas regulares, que a elas se devem adequar através duma pedagogia centrada na criança, capaz de ir ao encontro destas necessidades,
– as escolas regulares, seguindo esta orientação inclusiva, constituem os meios capazes para combater as atitudes discriminatórias, criando comunidades abertas e solidárias, construindo uma sociedade inclusiva e atingindo a educação para todos; além disso, proporcionam uma educação adequada à maioria das crianças e promovem a eficiência, numa óptima relação custo-qualidade, de todo o sistema educativo.”
A parte final desta passagem – sim, a declaração de Salamanca já era “centeno” e preocupava-se certamente com a finitude dos recursos dos contribuintes mesmo quando ainda se podia fazer moeda sem as restrições do euro – tem servido para práticas menos sensíveis às preocupações pedagógicas inclusivas, propriamente ditas, do que à referida “optimização” da “relação custo-qualidade” do que se faz passar como “Educação Inclusiva”. Tem sido grande a preocupação em detectar necessidades de “formação” que em regra é aplicada quase exclusivamente por membros da tal “Corte Inclusiva” associada à produção dos normativos legais de que pretendem fornecer a única interpretação legítima, em vez de serem produzidos diplomas claros e materiais pelo ministério da Educação com indicações sobre o que deve/pode ser feito e quais as margens de “autonomia” de escolas e professores.
Se algo corre menos bem, não há que enganar… não foi falha legislativa e muito menos da formação, mas sim de quem não percebeu a infalibilidade da coisa e necessita de mais formação por parte dos cortesãos inclusivos.
O esquema de funcionamento é como se segue (e também se aplica à “flexibilidade curricular” pois, afinal, os 54’s e 55’s são gémeos):
Resta esclarecer que ao poder político os cortesãos inclusivos são muito úteis e tanto mais quanto se sentirem “pais” do Modelo Único de Inclusão (conceito a definir em outro verbete) e ao mesmo tempo os seus apóstolos, funcionando como reforçada muralha d’aço contra a barbárie dos professores ou outras criaturas não imbuídas do verdadeiro espírito inclusivo.
🙂 🙂 a imagem 🙂
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Excelente texto, como sempre. Já que estamos a tratar de questões de fé, ou mais correctamente, de fezadas, eu vislumbro aqui uma versão rasca daquele velho modelo teológico que os gregos foram buscar ao xamanismo dos primórdios e depois passaram ao cristianismo: a distinção entre um mundo do além, intemporal, dos arquétipos, perfeito, ideal, e este mundo terrestre, pecaminoso, imperfeito, onde as ideias se corrompem e onde se perdem de vista os arquétipos iniciais fundadores e perfeitos. Os nossos legisladores da treta produzem leis que nas cabecitas deles são perfeitas, ideais. Depois se não resultam quando descem à prática, a culpa só pode ser de quem as aplica…. pois se lá no assento etéreo de onde desceram elas eram perfeitas, porra!
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