A fábrica de que não se fala
Os debates sobre o papel da Educação na sociedade e no que deve ser a “escola do século XXI” recorrem com excessiva e simplista frequência a analogias com a realidade da vida dos operários nos primórdios da industrialização, apresentando os alunos como sendo peças de uma engrenagem impessoal, como se frequentassem escolas modeladas à imagem de “fábricas”. São demasiados os exemplos em que se recorre a essa analogia “fabril” para caracterizar a “escola de massas”, em que tudo é feito da mesma forma, ao mesmo tempo, para todos. E fala-se no “modelo de Manchester” para designar, de forma estereotipada e pejorativa, uma “escola do passado” que alegadamente permanece imutável ao longo dos últimos duzentos anos, com a conivência de “professores do século XX”.
Já me cansei de combater esta forma demagógica de apresentar uma realidade que mudou bastante ao longo das últimas décadas, pois eu ainda me lembro dos meus tempos de aluno e de tudo o que mudou desde então, mesmo se à superfície tudo possa ter uma aparência similar. Mas não se passa o mesmo com as restantes instituições basilares do Estado Moderno, dos hospitais aos tribunais, das forças armadas às repartições de finanças, apesar das profundas transformações que marcaram a sua evolução para além de quem se contenta com a superficialidade?
A “escola como fábrica” é uma analogia que vem de longe e é ela própria uma espécie de relíquia de outros tempos, que exala algum aroma a mofo em termos conceptuais e revela muita desatenção a tudo o que mudou no quotidiano escolar, mesmo se continuam a existir salas de aula (como salas de audiências), horários de disciplinas (como horários de consultas) e turmas com uma estrutura mais ou menos fixa (como qualquer batalhão). Mas também se desenvolveram cada vez mais procedimentos diferenciados para trabalhar com os alunos (não deixando de ser paradoxal que alguns grandes defensores da “diferenciação pedagógica” estejam na primeira linha da “inclusão” de todos os alunos num mesmo espaço) e mesmo forma de organizar os horários que – através do trabalho em turnos ou em pequenos grupos – estão longe da imagem monolítica do funcionamento de uma fábrica de parafusos no século XIX.
No entanto, existe um aspecto em que a analogia fabril, no seu pior sentido, se tem vindo a revelar cada vez mais adequado para descrever o quotidiano das crianças e jovens e que é o da brutal extensão do tempo em que as famílias entregam a sua descendência em jardins de infância e escolas, como se fossem carreiros de operários a entrar para o labor diário ao raiar do sol, saindo apenas com o ocaso ou mesmo mais tarde. Nos últimos quinze anos sucessivos governos inscreveram nos seus programas, ou nada fizeram para alterar, uma lógica de “escola a tempo inteiro” que pouco ou nada deve a noções de progresso social e mais parece adequar-se a uma concepção terceiro-mundista e/ou assistencialista da Educação como suporte a uma sociedade em que se verifica o primado da desregulação dos horários de trabalho sobre qualquer tipo de preocupação com o tempo de convivência e socialização das crianças no seu ambiente familiar. A lógica massificada do deixa-a-criança na escola (ou na carrinha do atl), segue para o trabalho, trabalha um máximo de horas para um baixo salário mínimo ou médio, regressa do trabalho, vai buscar a criança (ou chega na carrinha do atl), dá banho, faz o jantar, vê TV ou qualquer coisa num dispositivo electrónico se não tem trabalho de casa, vai para a cama, tornou-se dominante e praticamente inquestionada, mesmo à esquerda do espectro político.
Um estudo recente do CNE (Estado da Educação 2018) provocou manchetes e algum alarido mediático por revelar que “em Portugal o número médio de horas semanais, que as crianças com menos de 3 anos e com 3 anos ou mais passam em educação e cuidados para a primeira infância e educação pré-escolar, é dos mais elevados de entre os países da UE28” (p. 45). E é bom que se note que a diferença não é pequena, pois a média europeia é de 29,5 horas e a portuguesa é de quase 40 horas, só decrescendo um pouco nas crianças acima dos 3 anos. O diferencial anda na ordem dos 50% e só estamos equiparados a países como a Letónia, a Lituânia, a Eslováquia ou a Croácia. Estes dados estão em linha com outros sobre o peso total das horas que os alunos passam nas escolas nos diversos ciclos de escolaridade do Ensino Básico (cf. The Organisation of School Time in Europe.Primary and General Secondary Education – 2018/19. Eurydice Facts and Figures. Luxembourg:Publications Office of the European Union, 2018).
Como parece compreensível, estes são números que preocupam em especial porque se constata que a larga maioria das horas que a generalidade das crianças e jovens passam acordadas o fazem longe das famílias, em especial no caso daquelas em que as condições laborais dos progenitores, familiares ou outros adultos responsáveis os fazem ter horários desregulados e várias horas de deslocação entre o domicílio e o local de trabalho. Mas, por paradoxal que pareça, é neste modelo de “escola a tempo inteiro”, com uma lógica efectivamente fabril de ocupação de sol a sol, típica dos tempos da industrialização oitocentista, que tem vindo a ser promovido como se fosse um sinal de “desenvolvimento” quando é, na verdade, típico de sociedades terceiro-mundistas em vias de desenvolvimento, para usar uma linguagem facilmente compreensível.
De acordo com o programa do governo pretende-se a “concretização de um princípio de educação a tempo inteiro, ao longo de toda a escolaridade básica” (Programa do XXII Governo Constitucional, 2019-2023, p.142) o que é contraditório com qualquer preocupação em aumentar o tempo disponível para o convício das crianças e jovens com as respectivas famílias. Em vez de se investir numa maior regulação dos horários de trabalho ou de, através de políticas de desenvolvimento económico, melhorar as condições da vida quotidiana das famílias, aprofundando medidas consequentes de defesa dos direitos parentais e das próprias crianças, há uma espécie de rendição do perante a deriva neoliberal do mercado de trabalho e opta-se por aplicar medidas paliativas, de tipo assistencialista.
E a tal “fábrica” torna-se real todas as manhãs e finais de tarde.
De acordo com os Objetivos de Desenvolvimento Sustentável da ONU para 2016-2030, aprovados em Setembro de 2015 por quase 200 nações, são principais prioridades, em primeiro lugar, “erradicar a pobreza em todas as suas formas, em todos os lugares”, em segundo “erradicar a fome, alcançar a segurança alimentar, melhorar a nutrição e promover a agricultura sustentável” e em terceiro “garantir o acesso à saúde de qualidade e promover o bem-estar para todos, em todas as idades”, surgindo em quarto lugar “garantir o acesso à educação inclusiva, de qualidade e equitativa, e promover oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todos” (Estado da Educação 2018, p. 23; mais elementos em Objetivos de Desenvolvimento Sustentável. Lisboa: INE, 2019).
Em Portugal parece ter-se invertido esta ordem de prioridades, pois atribui-se à Educação uma espécie de superpoder para combater todas as desigualdades e injustiças presentes na sociedade. Afirma-se ainda no programa do actual governo que “a Educação é não apenas o meio privilegiado para o desenvolvimento dos indivíduos, mas também o determinante necessário para alcançar uma sociedade justa e esclarecida” o que não parece ser passível de crítica, mas que ao mesmo tempo não deixa de dar a sensação de que é a Educação que pode, por si só, funcionar como o grande aplainador das desigualdades e o único elevador social disponível na sociedade.
Mas isso é fazer transbordar as já de si enormes responsabilidades da Educação para além dos portões das escolas, como se, num passe de mágica, apenas com a garantia de “sucesso” escolar se fizessem desaparecer as imensas injustiças e desigualdades a montante e jusante desses mesmos portões e da vida escolar das crianças e jovens.
De acordo com os dados de 2019 do principal indicador que mede a desigualdade de rendimentos no interior dos países(coeficiente de GINI), Portugal encontra-se em 47º lugar (com um valor de 33,9) bem atrás de países como a Moldávia (26,8), a Roménia (27,3), Hungria (28,2). Albânia (29) ou mesmo São Tomé e Príncipe, a Arménia ou o Nepal[i].
A “escola-fábrica” existe e existirá, não por causa da duração ou formato das aulas e currículos, mas porque o poder político continua a preferir a cosmética de algumas estatísticas a um desenvolvimento social sustentado.
[i] http://worldpopulationreview.com/countries/gini-coefficient-by-country/

Gostar disto:
Gosto Carregando...