Sob o título do blogue existem ligações para os textos que tenho publicado no suplemento de Educação do Jornal de Letras e no site Educare nos últimos anos. A actualização está em decurso, esperando colocar nos próximos dias todos os textos publicados até final de 2018 num e até final de 2019 no outro. Em alguns casos (em particular nos dos JL), a divulgação integral aqui no Quintal é feita pela primeira vez. Para outra altura ficarão os do Público e outras colaborações na imprensa.
Dia: 2 de Janeiro, 2020
Pelo Educare
O ano começa com a publicação de dois textos assim mais para o longo e complexo, a partir de leituras recentes. Porque se estamos no século XXI devemos ler quem reflecte sobre a nova realidade e não apenas recuperar as sebentas de outros milénios. E porque estou cansado de papagaios.
A época da pausa de Natal, enquanto se mantiver no calendário escolar e resistir às tendência inovadoras que por aí se querem espalhar, é um momento desejado de calma, descanso e, se possível, de colocar algumas leituras em dia, em especial as que exigem mais atenção do que os quotidianos acelerados permitem. Uma delas é o ensaio de Isabel Lorey com o título State of Insecurity – Government of the Precarious (Londres, 2015), sobre a forma como a precariedade se tornou uma marca da sociedade actual e uma estratégia do próprio poder político nas sociedades ocidentais para manter o tal “estado de insegurança” entre os indivíduos, por forma a que neles se instale o medo da perda da sua posição no mercado de trabalho ou de estatuto social, fomentando uma atitude de submissão e não contestação ao modelo de governação dominante.
Após a instalação do medo com origem externa (os ataques terroristas, as vagas de imigrantes) o discurso da insegurança instalou-se a partir do próprio funcionamento da sociedade, promovendo a adesão a estratégias securitárias, não apenas no sentido do fechamento de fronteiras e de rejeição do “outro”, mas do próprio reforço de políticas internas alegadamente destinadas a reforçar a “segurança”, não apenas policial mas também alegadamente económica.
A precariedade laboral é um dos aspectos nucleares da actual erosão das políticas sociais que marcaram o progresso das sociedades ocidentais, afirmando-se como incomportável a manutenção de um conjunto de “direitos” que se apresentam como um encargo demasiado pesado para os meios financeiros do Estado, pelo que os indivíduos devem abdicar de parte do que foram as conquistas do Estado Social do pós-II Guerra Mundial e aderir a um modo de governação que, apresentando-se como o modo único de resistir à crise e promover uma alegada “segurança”, acaba por desenvolver um alargado sentimento de ansiedade nas populações.
É natural associar esta teorização, pela forma clara como se aplica na prática, às políticas desenvolvidas nos últimos 10-15 anos, em especial depois da crise financeira de 2008 e ao discurso da inevitabilidade da precarização das redes de protecção social e das condições do mercado de trabalho. A aplicação de conceitos e práticas como “flexibilidade” ou “eficácia” na gestão dos recursos humanos “no século XXI” fez-se através da expansão de um processo de crescente vulnerabilidade de grupos sociais e profissionais que até há pouco se sentiam de certa forma imunes ao risco de perderem as suas posições.
“Devido ao desmantelamento e remodelação dos sistemas de salvaguarda colectiva, toda a forma de independência desaparece na face dos perigos da precariedade e da precarização; invulnerabilidade e soberania tornam-se óbvias ilusões. Até aqueles que antes estavam seguros à custa de terceiros nacionais ou globais, estão a perder protecção social” p. 89.
E não é difícil perceber como tudo isto se aplica, de um modo que deixa pouca margem para dúvidas, às estratégias de precarização dos direitos de classes socio-profissionais que o poder político passou a considerar como demasiado autónomas devido a uma sensação de segurança material. O caso do ataque continuado à classe docente nos últimos 15 anos e aos seus alegados “privilégios”, a forma como as suas condições de trabalho e mesmo de vínculo laboral foram sendo progressivamente estilhaçadas, independentemente da orientação política dominante nos governos, enquadram-se de forma perfeita nesta estratégia de domesticação pelo medo, seja através da insegurança do grupo, seja das ansiedades individuais.
E assim se percebe que o que é apresentado como um problema específico, local/nacional, não passa de uma faceta da investida global de remodelação do welfare state em favor de uma lógica de governação que baseia na insegurança a sua principal estratégia de manutenção de poder e de controle das possibilidades de resistência efectiva.
Porque Insistem Em Enganar Quem Lê Apenas Os Títulos
A chamada de primeira página é a seguinte:
O que se lê na notícia?
Ou seja: não existem mais 2000 professores nas escolas, apenas foram substituídos os que estão/ficaram doentes ou “ausentes”. E no caso destes “ausentes” que não sejam por baixa médica, seria interessante perceber porque apenas depois de Novembro terão sido substituídos. E nos caso das baixas médicas seria tão interessante que se investigasse quem está a entrar e com que qualificações, em vez de se debitarem os números do Arlindo, sem os explicar devidamente. Porque o que fica à vista é um engano e é bom que isso seja claramente demonstrado. E a foto do ministro, o que está ali a fazer? Foi ele que tomou alguma decisão nova para resolver o problema?
E depois acrescenta-se ainda que há “140 docentes sem alunos”.
Não. Existem muitos mais. Basta fazer as contas aos directores e subdirectores sem componente lectiva. Acho que dá dez vezes esse número.
Não é bem o mesmo?
Pois… mas então não façam chamadas de primeira página à moda de fake news. Acham que é assim que 1) Vendem mais? 2) Combatem as redes sociais? 3) Dão algum exemplo de jornalismo rigoroso?
Phosga-se… pensava que estes tempos, em alguns casos, estavam ultrapassados, mas já se está a ver que não e que 2020 começa mal, muito mal.
No JL/Educação De Início De Ano
Uma Educação 24/7?
Após alguns meses à espera do seu momento, agarrei e li com crescente interesse e rapidez o ensaio de Jonathan Crary sobre o capitalismo tardio e o fim do sono (edição inglesa da Verso de 2013 e tradução da Antígona de 2018) que, embora pensado para a escala global da economia e sociedade mundial se adequa, com muito pequenas adaptações a uma série de lógicas locais/nacionais, em particular à forma como as novas formas de funcionamento de um capitalismo global que nunca adormece tem imposto a completa desregulação do tempo natural e biológico dos indivíduos e tem provocado uma progressiva erosão de velhas dicotomias como dia/noite, vigília/sono, ou trabalho/lazer.
Através da imposição, alegadamente ditada pela necessidade de uma economia global que está sempre em laboração algures no planeta, de um modelo de movimento contínuo em que os indivíduos, enquanto produtores/consumidores de bens/serviços/imagens, devem estar sempre disponíveis para produzir/consumir, vendo o seu tempo pessoal, privado, de repouso, de convivialidade familiar ser comprimido em função do tempo público, de trabalho, de relacionamento global com as redes de transmissão/venda/recolha de informação ao serviço dos mecanismos essenciais do capitalismo globalizado e que nunca dorme graças a toda uma parafernália tecnológica em permanente mutação e aceleração do ritmo de obsolescência.
Em simultâneo com a compressão do tempo pessoal, do próprio tempo do sono (período de tempo que, em termos de produção/consumo, é inútil) existe uma pressão sobre os indivíduos para não “ficarem para trás” e para se esforçarem por acompanhar as “inovações” que devem consumir para se sentirem incluídos na “sociedade do século XXI”, criando fenómenos de angústia, frustração, ansiedade e mesmo depressão a todos os que sentem que não conseguem alcançar os parâmetros e marcadores apresentados como significativos do “sucesso”.
A fase do capitalismo de massas que se caracterizou pela sincronia dos comportamentos e a linearidade das condutas (produção em série nas fábricas, serões televisivos perante os mesmos programas) foi substituída pela da fragmentação e sobreposição do tempo em virtude da multiplicação de “aparatos” disponibilizados para o acesso à informação e fornecimento dos nossos dados.
“(…) desde que nenhum momento, lugar ou situação existe agora em que uma pessoa não possa comprar, consumir ou explorar redes de recursos, existe uma incursão sem pausa do não tempo do 24/7 em cada aspecto da vida social ou pessoal. Não existem, por exemplo, agora praticamente nenhumas circunstâncias que não possam ser registadas ou arquivadas como imagem ou informação digital. A promoção e adopção das tecnologias sem fios e a sua aniquilação da singularidade de lugar ou acontecimento é simplesmente um pós-efeito de novos requerimentos institucionais. Na sua expoliação das ricas texturas e indeterminação do tempo humano, o 24/7 incita simultaneamente uma insustentável e suicidária identificação com os seus requerimentos fantasmáticos e solicita um sempre aberto mas sempre inacabado investimento nos muitos produtos que facilitam essa identificação” (pp 30-31 da edição da Verso)
Este tipo de lógica descreve de forma rigorosa o modo como a Educação e o tempo escolar passaram a ser concebidos e, em especial, colocados em prática em sociedades de desenvolvimento tardio e que, como os indivíduos que sentem que devem integrar-se nas mecânicas da modernidade para não serem menorizados simbolicamente pelos seus pares ou mesmo excluídos das “novas oportunidades” que este “novo tempo” (estilhaçado) tem para lhes oferecer, apresentam como progresso o que não passa de um retrocesso. Assim como se promove um fascínio exacerbado pelo papel das “novas tecnologias” no trabalho pedagógico e na forma como alunos e professores devem recorrer à mediação das ferramentas digitais para acederem ao conhecimento que, por outro lado, é apresentado como tendo um valor relativo, exaltando-se mais o “processo”, a competência na pesquisa (que implica o consumo das tecnologias e adesão a plataformas e redes que recolhem o histórico de pesquisas e preferências individuais e de grupo para posterior uso) e de um alegado “saber fazer prático” do que uma verdadeira apropriação dos fundamentos científicos disciplinares, qualificados como “arcaicos”.
As minhas críticas ao conceito e prática da “escola a tempo inteiro” têm raízes similares às que Crary apresenta porque tenho reservas equivalentes acerca das “vantagens” ou “inevitabilidade” do trabalho pedagógico ficar dependente de “inovações” assimiladas a uma adesão pouco crítica à economia digital do conhecimento, determinada por algoritmos que, em vez de promoverem a diversidade ou criatividade, apenas reforçam a homogeneização. Perante uma folha branca, com um lápis ou caneta nas mãos, há todo um vazio por preencher com o que o indivíduo consegue e quer comunicar. Perante um ecrã com resultados de pesquisa iguais e massificados e programas com dezenas de templates, animações e sugestões, o esforço desaparece, mas também se esvai a possibilidade do aluno expressar por completo a sua singularidade, mesmo que de forma mais imperfeita do que o “facilitado” pelo programa informático.
Por muito úteis que considere as ferramentas digitais de acesso e tratamento da informação, considero que a excessiva sedução pelo recurso às redes digitais culmina numa intromissão inaceitável na nossa individualidade, ao mesmo tempo que implicitamente exige que estejamos disponíveis 24/7 para sermos contactados e reagir e, de forma progressiva, nos afasta do domínio e mestria de saberes e técnicas que cada vez, aparentemente para nossa comodidade, deixamos a cargo da “inteligência artificial” dos algoritmos e aplicações.
Os alunos são as principais vítimas de um sistema que fragiliza as relações familiares e os ambientes primários de socialização, tornando-se a cínica razão para as “reformas” que – dizendo que o currículo é “gordo” e o tempo nas escolas muito, – fragmentam o currículo, multiplicam as áreas e estende o tempo em que a escola guarda crianças e jovens enquanto os encarregados de educação trabalham, o que agora atinge os próprios avós, ainda em idade útil, com o horizonte da possível reforma sempre em fuga. E incomoda-me que esta cedência completa ao ritmo do 24/7 seja feita com argumentos que ousam utilizar termos como “humanismo”, “equidade” ou “justiça social” ou adulterando por completo o sentido de outros como “flexibilidade” ou “autonomia”.
Os professores, neste contexto, são encarados como operacionais necessários à implementação de uma Educação 24/7, preferencialmente numa lógica low cost, em que a proletarização da carreira docente e a precarização crescente dos contratados é agravada com a exigência de uma disponibilidade permanente, independentemente do momento ou local onde esteja. O uso do mail, da “partilha” no “grupo” a que o telefone inteligente permite aceder em qualquer lugar a qualquer hora, em vez de ser um recurso facilitador do trabalho docente, torna-se um novo elo da cadeia de controlo e retira a “desculpa” de não se ter sabido da nova solicitação. Mesmo que aconteça em horário pós ou extra-laboral. As plataformas ou programas nem escondem a sua finalidade, pois quando temos a aplicação “xxx360” ou o pacote “yyy365” percebe-se que o seu objectivo é cercar-nos o quotidiano, esvaziando as zonas de privacidade sem ecrãs, preenchendo-nos todo o tempo tido como disponível.
E ainda existe a aparência dúplice da simplicidade/complexidade, simplicidade de utilização mas complexidade da concepção, que encoraja o utilizador a ser apenas isso, a seguir fórmulas já testadas e a integrar-se numa lógica que o despersonaliza e insere numa “equipa” em que por “trabalho colaborativo” se entende “trabalho sem conflito”, sem contestação informada dos fundamentos organizacionais. Quem inquire deve fazê-lo de acordo com as regras do jogo. A crítica é aceite, mas desde que “construtiva”.
No século XIX, o modelo da produção industrial retirou as ferramentas (“meios de produção” na terminologia marxista coeva) aos indivíduos que assim ficavam mais vulneráveis perante o poder dos patrões, embora mantivessem os seus saberes tradicionais. Agora, são facultadas “ferramentas” aos indivíduos, para que seja possível esquecerem esses saberes, apresentados como supérfluos na sociedade pós-industrial digital 24/7. Tornando-os tanto mais frágeis e substituíveis quanto cedam à crença num modelo educativo que visa a sua indiferenciação e adormecimento. O da Educação 24/7.