A leitura tem imensas vantagens e não são poucas as que se relacionam com aprendermos coisas que desconhecíamos. Embora com capacidades pedagógicas limitadas, muitos livros que se limitam a oferecer-nos letras impressas em papel (que arcaico! que não-moderno!) transmitem-nos conhecimentos, ideias, permitem-nos conversar com gente que dificilmente teríamos possibilidade de encontrar e convidar para uma conversa pessoal. Quanto muito ver ao longe em debate e conseguir lançar uma pergunta, quase sempre com resposta apressada.
Ler ensina-nos ou coisas. Ou deveria.
Já livros marcantes, ideias que ficam para muito tempo connosco, seja porque nos abre a imaginação para impossibilidades, seja porque nos retrata com fidelidade o que é.
Li há muitos anos O Labirinto da Saudade de Eduardo Lourenço e fiz o que é raro em mim, sublinhei bastantes passagens e usei algumas várias vezes, apreciando a repetição do recurso. Depois, em movimento retrospectivo, li O Fascismo Nunca Existiu e deliciei-me com a ironia da abordagem do tema num período ainda crítico da análise do fenómeno.
Com José Gil e o seu conceito de “não-inscrição”, a ideia do “estado de representação” em que vive grande parte dos portugueses ainda me acompanha como um dos retratos mais felizes e certeiros acerca da nossa personalidade colectiva contemporânea.
Vivemos um quotidiano em que se representam papéis imaginários, individuais ou colectivos, assente num passado mítico e muito selectivo no que se pretende apresentar como memória histórica, da qual se expurgam (não inscrevendo) factos e fenómenos desconfortáveis, e na projecção de um futuro radioso que nunca chega, quiçá porque também somos, além de poetas, utópicos natos, daqueles que gostam de dizer que a utopia está sempre além como forma de justificar sucessivos inconseguimentos.
E o presente é o espaço em que, numa miopia pandémica, só vemos bem o que parece estar mesmo perto e parece ser assim embora se saiba que não pode ser. Cheira a pato, chapinha como pato, abocanha os pedaços de pão molhado que se atira como pato, mas dizemos que é formoso flamingo (a menos que perturbe o ambiente de alguma obra pública do regime). E se alguém diz que é pato – mesmo que admitindo que é um pato muito estimável – acusa-se logo da pessoa ser ela a de curtas vistas, de não conseguir ver no castanho das penas a plumagem de um rosa esfuziante, de ser um idoso incapaz de ir de trotinete a Belém ou de descer o Tejo numa nau pós-moderna.
Mas a verdade é que se trata mesmo de um pato que, se bem depenado, nem dá para um arroz de domingo para família nuclear reduzida.
Vivemos numa estado de permanente representação, escrevia Eduardo Lourenço há uns anos e eu, apesar de se terem passado uns 30 anos da compra, ainda guardo o labirinto na parte acessível da prateleira para revisitas regulares. Assim como não fica longe o livro de José Gil como qual aprendi, mesmo quando discordei de algumas passagens. E aprendi sem ser necessário um método muito “inovador” de leitura e sem que o cartapácio se resumisse em animações digitais, daquelas que os computadores das nossas escolas se engasgam a fazer andar.
Aprendemos quando queremos. Quando sentimos que essa é uma necessidade, um prazer, mesmo um dever. Mas o que há por aí mais é gente que lê apenas os títulos, cita quando faz entrevista para um “perfil”, quando “representa”. E a coisa é tão mais grave quanto a pessoa se sente pai ou mãe d’algo.

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