De acordo com Jacob Bronowski, “a ciência é um retrato do Mundo. Não é uma técnica; não é uma forma de poder; não é sequer apenas uma acumulação de conhecimentos que produz uma visão do Mundo”. Para ele, o conhecimento científico é desde o Renascimento a melhor maneira que temos para formar uma imagem do conjunto da Natureza e todo “um novo empreendimento [que] difere dos empreendimentos precedentes pelo facto de não ser mágico”. (J. Bronowski, Magia, Ciência e Civilização. Lisboa: 1986, p.49)
O desenvolvimento do método científico – discípulo no tempo longo da transição do mito para a razão na Grécia Antiga – foi a forma de operacionalizar esse novo “empreendimento” (que alguns preferem designar como “paradigma”) que permitiu à Humanidade conhecer a Natureza para além de intuições e de práticas encantatórias em busca dos favores dos deuses ou da natureza.
No entanto, o pensamento racional de base científica, herdado do espírito renascentista e dos princípios iluministas está actualmente sob forte ataque em diversas frentes, umas em que isso é feito de forma consciente e deliberada, mas em outras apenas na sequência de uma atitude de superioridade complacente de quem se deixa reduzir por um certo relativismo ajustado a conveniências políticas. Uma lista dessa constelação dispersa de detractores da Ciência pode encontrar-se, por exemplo, na obra A Ciência e os seus Inimigos de Carlos Fiolhais e David Marçal (Lisboa: 2017).
Os ataques mais deliberados têm origem num sector com fortes tradições no mundo anglo-saxónico, em especial nos E.U.A., que se opõe a grande parte do pensamento científico por motivos de Fé religiosa ou de preconceito anti-intelectual cf. Richard Hofstadter, Anti-intellectualism in American Life, edição original de 1963), tendo ganhado relevo nas últimas duas décadas com a “causas” como a da anti-vacinação, da recuperação do criacionismo ou, nos tempos mais recentes, de negacionismo perante as medidas de prevenção da expansão da pandemia de covid-19. Em diversos casos, estas posições surgem com a “legitimação” de serem defendidas por personalidades cuja formação académica parece trazer consigo credibilidade, mas que estão a obedecer em primeiro lugar a lógicas de outro tipo, como é o caso notável, dos médicos-políticos Bem Carlson ou Rand Paul. Na Europa e em Portugal, este tipo de posições tem menor visibilidade e presença junto ao poder político, mas tem vindo a reforçar-se de forma crescente neste período de pandemia. Em redes sociais como o Facebook multiplicaram-se os grupos com apelos que conjugam a emoção com a pretensa credibilidade de alguns dos seus aderentes, por serem médicos ou mesmo “cientistas”. O combate ao uso de máscaras nas escolas pelos alunos é apresentada como uma variante da tortura e quem ache por bem afirmar a inconstitucionalidade da sua obrigatoriedade.
Em paralelo, embora muitas vezes se apresentem como arautos dos princípios iluministas da Razão, e na sua esteira da Justiça Social, da Igualdade/Equidade, temos uma investida contra a Ciência com motivações de oportunidade política e demagogia com traços populistas, mesmo quando paradoxalmente os nega. Chega a ser penoso como pessoas com um robusto currículo académico se deixem seduzir pela espuma dos dias e pelas honrarias transitórias, ao ponto de escreverem e afirmarem tiradas que apenas visam objectivos instrumentais do curto prazo político-mediático, abandonando os princípios mais elementares de qualquer atitude científica perante o mundo que nos rodeia, seja o natural ou o social. Recordo gente com responsabilidades políticas e formação “científica” a apresentar argumentos que pouco se distinguem da proclamação de desejos e anseios ou da ampliação de cartilhas de carácter político demagógico. O “tudo vai acabar bem” como lema que pretende tranquilizar e transmitir confiança, mas que a breve prazo se percebe ser desajustado à realidade. Ao finalizar Setembro batem-se novos recordes de contágios em países como Espanha, França e Inglaterra e entre nós os valores estão ao nível da primeira vaga pandémica, mas há quem pareça não reconhecer o erro de desprezar os dados científicos acumulados nos últimos meses.
Pelo meio, ficam aqueles que podemos qualificar, de forma talvez redutora, como sinceros e “ingénuos” herdeiros de diferentes variantes do pensamento mágico. Há quem considere que técnicas de auto-ajuda ou coping com as ansiedades do mundo moderno devem ser elevadas à categoria de Ciência, como se bastasse a força da meditação ou do “pensamento positivo” para alterar a realidade e não apenas o equilíbrio ou bem-estar individual. E chegam a reivindicar que tais disciplinas incorporem o currículo escolar como se estivessem no mesmo plano da Química, da Biologia, da Filosofia ou da Matemática, confundindo o currículo escolar com um albergue para a promoção de estilos de vida. Mas também temos os que, fiéis à deriva pós-moderna que alia a desconfiança do modelo capitalista de sociedade à crítica a uma Ciência encarada como construção histórica de uma parte da Humanidade, eurocêntrica e caucasiana. Como se isso fosse motivo suficiente para a sua recusa ou para a considerar apenas como mais um mecanismo de dominação global das sociedades ocidentais sobre o resto do mundo.
Talvez o irracionalismo nunca tenha deixado de estar entre nós. Popper queixava-se em 1982 de ele ter voltado a estar na moda e contra isso afirmava que embora o conhecimento científico-natural não seja o único existente, ainda é o melhor e mais importante que possuímos (Karl Popper, Em Busca de um Mundo Melhor. Lisboa: 1989, p. 17). Mas atravessamos de novo tempos em que, apesar das conquistas evidentes da Ciência há quem considere que se deve relativizar o seu contributo para a melhoria das condições de vida da Humanidade. Há uma “coligação negativa” anti-Ciência que vai desde quem parou na Geografia ptolomaica e ainda crê numa terra plana ou oca e uma intelectualidade que se revê numa atitude de desconfiança global contra “o governo mundial das corporações” e de denúncia de uma “cultura do medo”, mas que acaba por nos servir à mesa apenas uma outra modalidade de medo global. E não faltam herdeiros de uma ideologia internacionalista a criticar os malefícios da globalização. Afinal, a revolução global foi substituída pelo consumo global. E a “cultura do medo” combate-se com mais medo, mas nem sempre se percebe o paradoxo.
O combate contra esta frente irracionalista e anti-científica deve começar na Escola, permitindo aos alunos desde cedo um contacto próximo e profundo com o melhor da herança da Humanidade em termos de conhecimento acerca do Mundo. Sem verdades absolutas, mas também sem dúvidas irredutíveis. A atitude científica define-se pela permanente revisão crítica, pela busca do erro para conseguir um melhor “retrato do Mundo”, como afirmou Bronowski, na esteira de Kant para quem a Verdade era a concordância entre a cognição ou conhecimento e o seu objecto. E não uma qualquer variação semântica mais ou menos criativa. Claro que nos últimos 200 anos se avançou muito para além do que em dado momento era considerado como a melhor descrição da realidade, mas esse é o caminho da Ciência. Que se deve aprender nos bancos ou ecrãs das escolas. Não apenas “verdades” tidas por imutáveis, mas a evolução que fez com que se fossem apurando os nossos conhecimentos. “Foi o pensamento racional que permitiu encontrar tanto os problemas como sobretudo as soluções, não o pensamento irracional” (Fiolhais e Marçal, Op. Cit., p. 156). O aparente medo da Ciência, a menorização da Filosofia, o desdém pela História que marcam a atitude de muitos especialistas e decisores na área da Educação e da definição do currículo, são cúmplices do avanço do irracionalismo.
Não podemos ficar reduzidos à atitude de seguirmos os ensinamentos da Ciência, apenas quando é possível.
Contra esta atitude anti-científica, Steven Pinker sumaria de forma magistral a necessidade de, mesmo sabendo que nunca teremos um mundo perfeito e que procurá-lo até se pode revelar perigoso, apostarmos na via do conhecimento para desenvolver a Humanidade. Porque, afinal, “a vida é melhor do que a morte, a saúde é melhor do que a doença, a abundância é melhor do que a escassez, a liberdade é melhor do que a coerção, a felicidade é melhor do que o sofrimento e que o conhecimento é melhor do que superstição e a ignorância.” (Steven Pinker, Enlightenment Now – The Case for Reason, Science, Humanism and Progress. New York: 2018, p. 453)
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