Algofobia

Hoje reina por toda a parte uma algofobia, um medo generalizado da dor. A tolerância à dor também diminui rapidamente. A algofobia tem por consequência uma anestesia permanente. Evita‑se qualquer estado doloroso. O sofrimento amoroso também se tornou suspeito. A algofobia estende‑se ao social. Cada vez se atribui menos espaço a conflitos e controvérsias suscetíveis de conduzir a confrontos dolorosos. A algofobia também abrange a política. A coação da conformidade e a pressão do consenso estão a aumentar. A política instala‑se numa zona paliativa e perde toda a vitalidade. A «falta de alternativas» é um analgésico político. O «centro» difuso tem um efeito paliativo. Em vez de se discutir e lutar por melhores argumentos, cede‑se à coação do sistema. Alastra uma pós‑democracia, uma democracia paliativa. Daí Chantal Mouffe reclamar uma «política agonística», que não evite confrontos dolorosos. A política paliativa é incapaz de visões ou reformas drásticas que podem provocar dor. Prefere recorrer a analgésicos de curta duração que apenas mascaram disfunções e distorções sistémicas. A política paliativa não tem coragem para a dor. E assim o mesmo [das Gleich] permanece.

A atual algofobia está na base de uma mudança de paradigma. Vivemos numa sociedade de positividade que procura libertar‑se de qualquer forma de negatividade. A dor é a negatividade por excelência. Também a psicologia segue essa mudança de paradigma e transita da psicologia negativa, como «psicologia do sofrimento», para a «psicologia positiva», que se ocupa do bem‑estar, da felicidade e do otimismo. Os pensamentos negativos são de evitar, devendo ser imediatamente substituídos por pensamentos positivos. A psicologia positiva submete a própria dor a uma lógica de desempenho. A ideologia neoliberal da resiliência transforma experiências traumáticas em catalisadores para o aumento do desempenho. Fala‑se até de crescimento pós‑traumático. O treino da resiliência como exercício de força mental tem de fazer de um indivíduo um sujeito de desempenho o mais possível insensível à dor e permanentemente feliz

Byung-Chul Han, A Sociedade Paliativa. Lisboa: 2020, pp. 11-12.

Já Em 2004 Isto Estava Certo

Por maioria de razão agora, depois de não sei quantas investidas dos burocratas da língua, dos herdeiros da TLEBS e mais uns quantos nichos de gente que, por vezes, quase dá razão às críticas do MEC, não por odiarem escritores, mas por terem da escrita (e da língua) uma visão puramente mecanicista e utilitarista.

Eu não passo de professor “emprestado” e muito “básico” de Português a quem colegas prestimosas, em tempos diversos, do alto da sua formação académica específica, não hesitaram em questionar a capacidade para ensinar a nossa língua. Mal sabiam elas, prisioneiras de sua sapiência, que um adorador de História é, quase por inerência, um adorador da palavra, dos textos, velhos e novos, da comunicação, da literatura. Embora, no meu caso particular, um muito pouco afeiçoado aplicador de normativos que têm tanto de “rigor científico” quanto o não tem uma língua viva e vivida na literatura.

Gosto de ensinar a ler, mas a ler algo que traga prazer, assim como a escrever, quando se consegue que esse também seja um acto que traga satisfação e não apenas transpirada obrigação.

Dizem-me que agora, nas aulas de Português, os alunos, entre outras coisas, lêem regulamentos e aprendem a escrever cartas, requerimentos, declarações. Aparentemente, a escola adapta-se a níveis baixíssimos de iliteracia; já ensina, não apenas o português normal ou padrão, mas o respectivo uso em modalidades convencionais. (…) Os mais afoitos não hesitariam em inferir que, afinal, nem se trata de ensinar a língua, mas de preparar cidadãos mais aptos a lidar com o Estado, que por sua vez também lidaria com eles mais eficazmente.

(…) Como quer que seja, atendo-se a escola ao propósito de uniformizar a língua, de estabelecer um padrão de comunicação actual, a literatura só atrapalha. Ou seja, há um ensino da língua que se tornou realmente incompatível com a literatura. A mudança parecerá brusca a quem confunda ensino da literatura com história literária. Uns poucos rudimentos de história literária, que junto com a gramática normativa formam a mais recente e a mais consistente imagem do ensino tradicional do Português, ajudavam a amenizar a distância relativamente aos clássicos: enquadravam-nos cultural e historicamente, criavam a ilusão de que se ensinava literatura e de que se preservava um laço constitutivo entre língua e literatura, mas na verdade já serviam para o que afinal servem: dispensar a leitura dos textos.

(…) Acresce uma segunda ideia decisiva: a literatura não é simplesmente uma arte entre outras e um conjunto de textos escritos no seu âmbito, assim preservados e catalogados nas bibliotecas. A literatura é uma possibilidade da língua, mas não uma possibilidade ao lado de outras: é aquela em que a língua se mostra algo que nos sujeita e algo que procuramos dominar, algo que nos escapa e algo que procuramos aprisionar num idioma.

Abel Barros Baptista, Ensaios facetos. Lisboa: Cotovia, 2004, pp. 128-130, 132)