Já Em 2004 Isto Estava Certo

Por maioria de razão agora, depois de não sei quantas investidas dos burocratas da língua, dos herdeiros da TLEBS e mais uns quantos nichos de gente que, por vezes, quase dá razão às críticas do MEC, não por odiarem escritores, mas por terem da escrita (e da língua) uma visão puramente mecanicista e utilitarista.

Eu não passo de professor “emprestado” e muito “básico” de Português a quem colegas prestimosas, em tempos diversos, do alto da sua formação académica específica, não hesitaram em questionar a capacidade para ensinar a nossa língua. Mal sabiam elas, prisioneiras de sua sapiência, que um adorador de História é, quase por inerência, um adorador da palavra, dos textos, velhos e novos, da comunicação, da literatura. Embora, no meu caso particular, um muito pouco afeiçoado aplicador de normativos que têm tanto de “rigor científico” quanto o não tem uma língua viva e vivida na literatura.

Gosto de ensinar a ler, mas a ler algo que traga prazer, assim como a escrever, quando se consegue que esse também seja um acto que traga satisfação e não apenas transpirada obrigação.

Dizem-me que agora, nas aulas de Português, os alunos, entre outras coisas, lêem regulamentos e aprendem a escrever cartas, requerimentos, declarações. Aparentemente, a escola adapta-se a níveis baixíssimos de iliteracia; já ensina, não apenas o português normal ou padrão, mas o respectivo uso em modalidades convencionais. (…) Os mais afoitos não hesitariam em inferir que, afinal, nem se trata de ensinar a língua, mas de preparar cidadãos mais aptos a lidar com o Estado, que por sua vez também lidaria com eles mais eficazmente.

(…) Como quer que seja, atendo-se a escola ao propósito de uniformizar a língua, de estabelecer um padrão de comunicação actual, a literatura só atrapalha. Ou seja, há um ensino da língua que se tornou realmente incompatível com a literatura. A mudança parecerá brusca a quem confunda ensino da literatura com história literária. Uns poucos rudimentos de história literária, que junto com a gramática normativa formam a mais recente e a mais consistente imagem do ensino tradicional do Português, ajudavam a amenizar a distância relativamente aos clássicos: enquadravam-nos cultural e historicamente, criavam a ilusão de que se ensinava literatura e de que se preservava um laço constitutivo entre língua e literatura, mas na verdade já serviam para o que afinal servem: dispensar a leitura dos textos.

(…) Acresce uma segunda ideia decisiva: a literatura não é simplesmente uma arte entre outras e um conjunto de textos escritos no seu âmbito, assim preservados e catalogados nas bibliotecas. A literatura é uma possibilidade da língua, mas não uma possibilidade ao lado de outras: é aquela em que a língua se mostra algo que nos sujeita e algo que procuramos dominar, algo que nos escapa e algo que procuramos aprisionar num idioma.

Abel Barros Baptista, Ensaios facetos. Lisboa: Cotovia, 2004, pp. 128-130, 132)

6 opiniões sobre “Já Em 2004 Isto Estava Certo

  1. (…) “a quem colegas prestimosas, em tempos diversos, do alto da sua formação académica específica, não hesitaram em questionar a capacidade para ensinar a nossa língua.”

    Curiosamente, num determinado rascunho manuscrito de uma determinada ata redigida por uma determinada colega de um determinado grupo cientificamente habilitado a “ensinar a nossa língua” vi escrito não “hesitaram”, mas sim “exitaram”. A colega também dava Inglês… se calhar era por isso.

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  2. Eu sou a colega prestimosa que desejam sempre que me ofereça para redigir actas, se faltar o secretário ou se , for numa das reuniões mais fofinhas em que se agradece que haja voluntários. Já lá vai o tempo em que me oferecia. Sobretudo, quando passei a dizer com ar blasé que nem sequer tenho qualquer obrigação maior do que outros demais licenciados tout court, e porque, afinal, a minha licenciatura é de Francês-Inglês. ” Ah! Não pareces nada! ( sic.) Sempre pensei que eras de Português”. Foram muitas as discussões sobre TLEBS, gramática, a miudagem a empinar aquela coisada toda e eu a pô-los a pensar em publicidade, propaganda, teatro, literatura. Passaram ano, e já se sabe ao que chegámos.

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  3. A IVG, hoje, já não é assim tão descabelada, sobretudo no ensino secundário, mas no 3.º ainda se é forçado a ler regulamentos, roteiros e mais não sei o quê.

    Ainda ontem, ou anteontem, num programa qualquer da SIC que andou por aí a entrevistar malta nova, uma jovem reclamava porque a escola atual não a ensinava a preencher a declaração do IRS, entre outras coisas práticas. Há uns séculos, na década de 80, um rapazola de 16 ou 17 anos certo dia decidiu olhar para aquelas folhinhas cor-de-rosa onde o pai, analfabeto, declarara os seus impostos (do ano anterior), tendo de pagar a alguém que lhe fizesse a papelada, e decidiu: vou pegar nisto e, observando-o como modelo, tentar fazer a deste ano. Bom, a coisa correu tão mal que, desde então, só por uma vez alguém cá em casa teve de recorrer a serviços externos para preencher essa (e outra) papelada. E tal sucedeu por causa de uns dinheiros provenientes de uma expropriação que envolvia uma série de gente, o valor da matriz para uns e o cruzamento com não sei o quê para outros.

    A malta de hoje, com tanta parafernália a rodeá-la, não se safa sem lhe porem a papinha toda no prato e/ou na boca.

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