Colaboração no nº 14 da revista LASA – Liga dos Amigos de Setúbal e Azeitão.
Observo com estranheza muito do que se diz ou escreve sobre os efeitos das medidas que temos atravessado por causa da pandemia. Tenho sérias reservas sobre a eficácia e a oportunidade de algumas, pois me parece que houve quem não aprendesse em devido tempo a fábula da cigarra e da formiga. Mas acho desproporcionados certos avisos quantos aos seus efeitos “traumáticos” para a população mais jovem.
Seríamos mais resilientes nos tempos em que tudo parava à uma da tarde de sábado e ficávamos limitados à televisão a preto e branco que passava após o almoço o Danças e Cantares de Pedro Homem de Mello, seguindo-se o TV Rural do mítico engenheiro Sousa Veloso?
Foi por esse tempo, final da infância, que passei pelos “estados de sítio”, recolheres obrigatórios ou equiparados de 1974-75 com mais curiosidade do que aflição. Dois deles estão associados a episódios familiares de que não me esqueço: o primeiro, porque um primo meu tinha casamento marcado para domingo, 28 de Abril de 1974, no Canadá, e o meu pai era o padrinho e tinha viagem marcada. E viajou mesmo a 27 de Abril e fomos levá-lo (foi mais “largá-lo”, quase em andamento) de táxi a uma Portela com militares por todo o lado a vigiar os movimentos e eu a espreitar pelo vidro que tinha de manter-se fechado.
O outro, porque o meu avô materno teve o engenho de morrer a 25 de Novembro de 1975 e morava na outra ponta do vilarejo. Para velar o corpo como mandavam os protocolos, foi preciso fazer o trajecto em pleno recolher obrigatório, num Fiat 126 cor de cenoura (as cores de carros dos anos 70 são irrepetíveis!) que tinha um motor que podia ser tudo menos discreto. Poderia haver ameaça de golpe ou revolução, mas isso era secundário e lá se foi já depois de jantar e se regressou com noite bem cerrada, quase madrugada, porque eram tempos em que os velórios estavam bem agarrados às tradições mediterrânicas que mediam o respeito pelo defunto com base nas horas em que se “escabeçeava” diante do dito cujo.
Nos dois casos (era pequenito, não me deixavam sozinho em casa), via a preocupação na cara dos adultos, alguma conversa em tom baixo, mas nunca alguém me alarmou. E eu levei aquilo como outra coisa, menos grave do que ser descoberto e atingido à fisgada numa brincadeira de índios e caubóis.