Opiniões – Ricardo Silva

Uma (outra) visão do Ensino à Distância (E@D)

A partir do  próximo dia 8 de fevereiro, professores e alunos, deste país, entrarão numa nova fase de Ensino à Distância (E@D), sem fim à vista, sem estarem garantidas as condições necessárias para assegurar a qualidade e a eficácia do processo, a equidade no acesso ao mesmo por parte dos alunos, tudo isso perante a suprema desfaçatez do governo que pretende, um vez mais, e sem pedir licença, fazer dos professores autênticos financiadores do sistema educativo, não lhes proporcionando quaisquer compensações por serem eles a disponibilizar os recursos, materiais e tecnológicos, necessários ao funcionamento do Ensino à Distância. Deixando de lado este aspeto que já foi tratado, e bem, por outros colegas (https://guinote.wordpress.com/2021/01/29/a-lei-do-teletrabalho-aplica-se-aos-professores/) passarei então a analisar, sob outro prisma, algumas das entropias que enforma este novo modelo de E@D em fase de lançamento.

Como comecei por escrever, a partir do  próximo dia 8 de fevereiro, professores e alunos irão entrar numa nova fase de Ensino à Distância e, a partir desse dia, A SALA DE AULA PASSARÁ A SER A NOSSA CASA (as maiúsculas entender-se-ão melhor mais à frente)! E nesse contexto, nessa realidade, nesse quase “novo normal” educativo, há um grave problema que se levanta, sobretudo para os professores que, tal como nós, têm filhos em idade pré-escolar (no nosso caso, uma filha com 3 anos de idade). Ao contrário do que aconteceu na 1ª fase do E@D, entre março e junho do ano transato, em que os horários de professores e alunos puderam ser alterados e adaptados, e em que cada escola se organizou de acordo com os seus Planos de Trabalho Semanais (que contemplavam apenas alguns momentos síncronos, sendo a grande maioria assíncronos), desta vez, ao que tudo indica, e pelo que já sei e posso testemunhar, as direções escolares estão a preparar o arranque do E@D (resta ainda saber se de motu proprio, se por indicação ministerial) com base no princípio de que os docentes terão de cumprir integralmente a componente letiva (ou uma larga percentagem da mesma), com aulas síncronas e, adicionalmente, facto relevantíssimo, os horários dos alunos não poderão ser alterados, ou seja, devem ter as aulas tal como estão distribuídas e marcadas no seu horário semanal. Assim sendo, os professores terão de respeitar integralmente os horários dos alunos, sem modificações, mesmo que uns tempos possam ser síncronos (a maioria) e outros assíncronos. Teoricamente, tudo isto até poderia estar correto, e pode até fazer sentido para os pais, de um ponto de vista de organização familiar, manutenção de rotinas e hábitos de trabalho.

No entanto, ninguém se lembrou que esta solução/opção “organizativa”, de querer transpor para o Ensino à Distância os horários integrais (ou quase) de professores e alunos, como se se pudesse replicar em casa o que se faz na escola é, para além de uma imbecilidade e uma impossibilidade pedagógica, um fator de enorme perturbação para os professores, sobretudo para os que têm filhos em idade pré-escolar, pois, quando tiverem de dar aulas síncronas, e em simultâneo, se forem casais de professores (o que acontecerá em muitos momentos, bastando que ambos tenham aulas no turno da manhã, ou da tarde, ou mesmo misto, mas com horas coincidentes), simplesmente não só não poderão fazê-lo com um mínimo de condições, pois estarão sempre a ser interrompidos pelos seus filhos (dadas as suas naturais solicitações, brincadeiras, birras, intromissões e necessidades, ficando perturbado, de forma irremediável, o normal decorrer das aulas síncronas e a sua qualidade), como não poderão garantir-lhes os cuidados de acompanhamento e proteção que obviamente necessitam, merecem, e constitucionalmente lhes são garantidos, quer seja nos cuidados básicos, quer seja para o seu bem estar emocional, ou mesmo para o seu correto e equilibrado desenvolvimento educacional, já sem falar no direito que têm a ver salvaguardada a sua privacidade e intimidade, pois, como já sublinhei atrás, a sala de aula passará agora a ser a nossa casa, e não se podem (não se devem!) trancar os filhos na despensa, enquanto os progenitores estão agarrados a um computador, a dar aulas síncronas, horas a fio! E se, no ensino presencial, numa sala de aula tradicional, ninguém admitiria, ou compreenderia, que o professor estivesse acompanhado do(s) seu(s) filho(s), durante as aulas, ainda para mais sendo crianças, por que motivo já ninguém se espanta, ou incomoda, quando estes estiverem presentes na sala de aula que será, muito em breve, a sua própria casa? Alguém no governo ou no Parlamento já viu a questão por este prisma? Eu não só já vi, como parece que terei de trabalhar nessas condições! Eu, a minha mulher, e muitos outros colegas! E só não são mais, porque cada vez menos há professores com filhos crianças! Até isso, só isso, já deveria preocupar quem nos governa, pois o envelhecimento da classe docente é outro grave problema, que se arrasta, sem solução à vista!

Ao invés de outros profissionais (cuja função não se coaduna com o teletrabalho), que poderão ficar em casa, sem trabalhar (embora com alguma perda salarial), para acompanhamento dos seus filhos menores de 12 anos ou que têm condições especiais para apoio aos mesmos (por exemplo, os profissionais de saúde), os professores, simplesmente, não podem fazê-lo porque, quer pertençam à Segurança Social ou à CGA (e cá em casa coexistem as duas situações – outro escândalo, que deveria merecer atenção sindical mais firme), estão em teletrabalho! Ora, o teletrabalho pressupõe (ou deveria pressupor) alguma flexibilidade de horário, situação que, tal como acabei de demonstrar, não vai acontecer nesta 2ª fase de E@D, pelo menos, tal como está a ser pensada e organizada. Alguém no governo, no Parlamento, nos sindicatos, ou nas escolas, pensou nisto, sequer por um segundo???? Não me parece! Afinal, e como me disse hoje uma colega, muito incomodada, durante uma reunião de avaliação: “tens de te organizar, isso é um problema que vocês têm de resolver, quando o meu filho era pequeno, e eu tinha reuniões na escola que acabavam tarde, deixava-os com a vizinha!” Ora, se tal é dito por uma colega, comparando situações incomparáveis, isto já sem referir que no atual contexto de pandemia, por razões óbvias, a “casa da vizinha” nunca poderia ser a “casa da Joana” (a minha filha chama-se Joana), o que dirão então  aqueles que não irão dar aulas à distância, sejam eles diretores escolares, sejam eles governantes? Enfim… perante isto, valerá a pena dizer algo mais? Creio que sim, talvez valha ainda a pena colocar algumas perguntas finais.

E eu? Faço o quê? Sacrifico a minha filha, as suas necessidades, o seu bem estar e o seu equilíbrio emocional? Mais uma vez? E que raio de aulas vou dar, com ela sempre a chamar-me, e a querer-me ao seu lado, sem ter idade e maturidade suficientes para entender que não posso (mesmo que queira), e isso uma e outra vez, durante horas a fio, dia após dia? A mãe num computador, o pai no outro (ou então a disputarem o único disponível) e ela ali, com os pais tão perto, mas ao mesmo tempo tão longe, transformados por força da lei, nuns pais de “pedra”, “surdos e mudos”, inacessíveis para ela, mas completamente dedicados aos seus alunos e à nobre missão de ensinar! A sério que ninguém pensou nisto? E agora que eu expliquei, alguém vai fazer alguma coisa?

Ricardo Silva

11 opiniões sobre “Opiniões – Ricardo Silva

  1. Ninguém pensou nem vai pensar. Nem mesmo na classe docente há qualquer tipo de contestação possível, pois quem levanta uma questão pertinente, desde que conteste o atual executivo, não tem apoio. Fico com a sensação que, para uma boa parte de nós, este governo pode fazer o que quiser, tem sempre desculpa! Sem controlo efetivo da comunicação social, sem controlo da oposição, do Presidente e de uma boa parte da população, digam-me lá o que isto nos faz lembrar? (sim, é verdade, ainda se pode opinar… mas muitos já têm medo de o fazer!!!).

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    1. Agora imagem os filhos dos professores que estão em idade escolar, no primeiro ano, primeiro ciclo, sem autonomia… E não dão flexibilidade horária… Nem equipamento necessário … Isto é uma fantochada.

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  2. E para quem está de foram, ainda vamos estar em casa sem fazer nada, o que é mais incrível!
    Reinou sempre aquela conversa “querem é fechar as escolas para ficarem em casa”…de papo para o ar, claro.

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  3. Por causa deste transpor total de horários presenciais para aulas síncronas e mantendo-se o desfasamento (deve dar muito trabalho imaginar outras soluções) vou estar a tentar dar aulas síncronas cá em casa ao mesmo tempo que a minha cara metade, já que temos pcs fixos na mesma divisão da casa. Os filhos estarão noutras divisões. Vai ser uma festa!
    Por outro lado ao não se reduzir horários, os nossos alunos vão ter sete tempos de aulas seguidas. Cada tempo pode não ser totalmente síncrono, mas obrigará a que os alunos e os professores entrem em 7 aulas síncronas numa tarde! E muitos só com o telemóvel, pois aqui nestas paragens ainda ninguém recebeu computadores. Sinceramente quem “pensa” isto acha que os materiais aguentam? E acima de tudo acha que alunos e professores aguentam? Andavam muitos opinadores e ME a queixar-se que o ensino online não era nada e depois quanto mais horas, melhor?? Num momento em que ninguém vive feliz, todos se sentem desmotivados parece que pretendem fazer destes tempos um suplício ainda maior, um sacrifício de todo o tamanho para alunos e professores… Vivemos num país bipolar e a nulidade-ME não colocará qualquer espécie de ordem nisto. Cada escola, ou melhor cada direção fará como entender! E depois queixam-se que o ensino à distância é desigual?!

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  4. concordo e eu porei sempre os meus filhos em primeiro lugar e especilamente a segurança física deles, mesmo que fique mal vista porque dei menos aulas síncronas do que os colegas . Mas assim como os professores, há imensos profissionais em teletrabalho, Imagine quem atende chamadas em casa (call centers) a falar com clientes com os filhos a gritar. Ou imagine empregados de multinacionais em reuniões super formais. Ah, e os profissionais de saúde e outros que referiu não têm direito a ficar em casa.

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  5. Subscrevo as tuas preocupações, Ricardo! Gostava imenso que o ministério da (des)educação desse resposta às tuas questões, mas não vão fazê-lo, porque estão-se a borrifar para os professores. Estou-te grata pelo «grito de revolta». Bem-haja.

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  6. Imaginem uma família numerosa…

    Pais professores
    Filhos (todos) menores de 12 anos
    Filhos no 1.⁰ e 2.⁰ ciclos do ensino básico
    Filha mais nova com terapia em videoconferência
    2 portáteis pessoais para partilhar

    Esta é a realidade da minha família, decerto haverá mais, onde como é óbvio será impossível pais e filhos cumprirem o horário escolar recebido em setembro, não só porque os recursos tecnológicos são insuficientes, como também a Internet… (e fico-me por aqui, muito mais teria para escrever)

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