Sábado – Dia 9

Ontem dediquei-me à tarefa (ingrata) de ir espreitar algumas reacções, em grupos de professores numa certa rede social, à posição comum tomada por um grupo de bloggers professores de que fiz parte, no sentido de saber se a lei do teletrabalho se aplica a nós. O texto era sóbrio o suficiente para que todos os envolvidos se sentissem identificados, pois remete apenas para as promessas políticas feitas, para as garantias dadas sobre o que estaria disponível no início do ano lectivo e, em suma, para o que diz a lei sobre o teletrabalho. Nada mais. Não é prosa adjectivada ou “sindical”, mas já sabia que iria desagradar a muit@s colegas rendid@s à Situação desde que subiram um ou dois escalões ao fim de uma década de congelador e assistiram a umas webinares sobre inclusão e/ou flexibilidade (ou às duas) e quiçá a mais uma sobre supervisão ou diferenciação pedagógica, porque poderiam estar enferrujadas as memórias dos tempos da profissionalização.

(calma, que este texto não é mais do que um desabafo pessoal… até porque o que vou referir surgiu em alguns casos na sequência de partilhas de um outro post meu de ontem em que falei de “araras”… pelos vistos terei sido pouco “corporativo” 🙂 )

Entre os “argumentos” usados para discordar da posição que o grupo assumiu gostaria de destacar uns quantos que se destacaram pela sua riqueza e sofisticação.

  • Um deles foi do tipo “ah… este não é o momento ideal para nos pormos com reivindicações dessas”. Sendo que o que se pede é o cumprimento da lei e nada mais. Ninguém pediu aumentos salariais, reduções de horário ou oferta seja do que for. Apenas que se cumprissem as promessas feitas de livre vontade em Abril de 2020 e as leis em vigor. Não percebi se o “momento ideal” para se lembrar a necessidade de cumprir a lei do teletrabalho seria durante o ensino presencial. Uma variante deste “argumento” é o de dizer “no princípio do ano é que deveriam ter colocado estas questões”. Só que as questões foram mesmo colocadas, só que ignoradas até que é mesmo impossível não as colocar de novo, porque as circunstâncias as tornaram inadiáveis.
  • Outro foi “mas é esse o principal problema que se coloca agora?” Não sei se é o “principal”, mas é um deles. As pessoas mais ilustres e esclarecidas que coloquem o “principal” (sendo que há meses que muitas pessoas, eu incluído, vieram a avisar para a falta de equipamentos para os alunos), que nós colocamos este problema “acessório” que passa por garantir que a rede pública de E@D não volta a ser garantida por meios privados e dependentes de uma infraestrutura (seja de computadores, seja de net) de que o Ministério da Educação parece ter alijado responsabilidades.
  • Uma terceira “indignação” foi a de alguém que questionou se, com tudo o que ganham”, “os professores não podem comprar um computador”. E eu fico sinceramente abismado com esta forma de pensar tão triste, tão pobrezinha. Ou seja, se um professor ganha 1000 ou 1200 ou 1500 euros, pode comprar um computador e colocá-lo ao serviço do ME. E ainda pagar a banda larga para que tudo funcione. Pena que sejam pessoas a quem nunca vi questionar se o ministro Tiago não ganha o suficiente para pagar a estadia em Lisboa, em vez de receber um subsídio de deslocação, que nenhum professor recebe quando fica deslocado a dar aulas a centenas de quilómetros do seu domicílio.
  • Uma quarta atitude, quando eu ousei colocar a cabeça de fora e comentar que só se pedia que fosse cumprida a lei que o próprio governo fez, foi acusarem-me de ter “uma agenda”. Bem… é verdade que até tenho várias, incluindo um par de Moleskines em promoção, uma do Batman e outra do Star Wars (tudo em saldos, que apesar de ganhar mundos e fundos, sou forreta). Mas quer-me parecer – sou um bocado lerdo, mas não tanto assim – que a insinuação é que eu estaria ao serviço de interesses tenebrosos e/ou a promover uma qualquer conspiração contra alguém. Não tinha dado por isso, até porque a ideia da posição comum não foi minha, mas se calhar há quem goste de avaliar as segundas intenções dos outros por aquilo com que esteja mais familiarizad@. Mas eu queria tranquilizar toda a gente: estou um bocado farto disto, mas continuo a não querer defenestrar seja quem for, muto menos invejo lugares que encararia como uma espécie de despromoção em relação a ser professorzeco. Ando há demasiado tempo nisto em nome próprio e à vista, para que ainda me apareçam com este tipo de acusação, tão pouco imaginativa.
  • Por fim, gostava de especificar melhor o meu uso do termo “araras” para designar cert@s coleg@s que comentam os assuntos de um modo automático e superficial, só na base do cartão, camisola ou afinidade pessoal ou ideológica com os poderes que estão. É indispensável esclarecer que tenho o maior respeito pelas araras e até mesmo por papagaios ou, num outro plano, por invertebrados, como formas de vida dignas de preservação e estima. O que me custa é o palreio de umas e a falta de verticalidade vertebral de outros quando se trata de defender os mais básicos direitos da profissão docente. A saída de muita gente mais velha da docência, boa parte com outra vivência política e experiência de vida, deixou-a (à docência) parcialmente orfã no que diz respeito a uma certa “cultura” crítica de debate e resistência. Mas é bem verdade que compreendo porque saíram e em muitos casos apoiei essa decisão, em nome da manutenção da sanidade que ainda lhes restava. Mas fazem muita falta nas escolas e nas salas dos professores. Pessoalmente, os “mais velhos” nunca me causaram urticária e foi com eles que aprendi muita coisa. Porque eram aves de outro porte.

(e quem não gostar do que lê por aqui, porque é pouco fofinho, tem bom remédio… há programas de manhã e de tarde na televisão com casos de vida muito interessantes…)

33 opiniões sobre “Sábado – Dia 9

  1. Paulo, isso é gente que não interessa. Não interessa nem às escolas nem aos alunos. Porquê? Porque, obviamente, nada percebem de “Cidadania” (que apregoam aos sete ventos), pelo que pouca diferença farão na vida dos alunos, com reduzido contributo para uma sociedade sã e evoluída…

    É aquele tipo de pessoa que vivia na Alemanha, Polónia e Áustria nazi que, mesmo com o cheiro dos crematórios nas ventas, assobiava para o lado e dizia desconhecer o Holocausto… Palavras para quê?

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      1. Dominam, sim. Tristemente. A ignorância encontra aí pasto abundante. Um dia, eventualmente, perceberão que foram enganados, chulados mesmo? Talvez nem isso. Esse nível de perceção requer alguma inteligência, o que escasseia cada vez mais nas escolas.

        Quando falar com “eles e elas”, diga-lhes, por favor, que recomendo este conto:

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      2. E que bem que o faz! Obrigado! Belo puxão de orelhas! Tenho 4 filhos em idades escolares diferentes e expus as minhas dificuldades em assegurar (só) as síncronas, porque os dois pc’s estariam a ser usados por eles os 4… a minha mulher: professora deMat. também tem aulas síncronas…a resposta do meu Diretor foi: “safa-te e arranja-te!”
        Formidável!

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  2. Paulo, não é por acaso que estamos como estamos. Em vez de nos unirmos, há sempre alguém a ver como fica bem na pintura. Da minha parte, agradeço, quando nos ajudas a dar voz publicamente ao que, muitas vezes, nos «abafam» nas Escolas. Somos cada vez menos os que questionam. De há uns anos para cá, muita gente vai na onda com muita facilidade. Daí nos tirarem tantos direitos e nos carregarem com tanto trabalho. Bem haja aos que não se calam.

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  3. Apesar do tom elevado, condimentado com bom humor, da resposta aos detractores, fico fisicamente mal-disposto ao tomar conhecimento destas opiniões dos nossos “colegas”. Na sala de professores da escola em que estou este ano, já nem tento contra-argumentar quando ouço dislates semelhantes, preferindo ligar os dados do smartphone (a rede wireless da escola não funciona) e vir a este ou outro blogue docente.

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  4. Aquilo que o Paulo refere é do conhecimento de todos, pois parece-me que é transversal.

    Há outra coisa que me causa urticária: o que fazem os agrupamentos/escolas/ministério com o dinheiro que estão a poupar com o confinamento? Graças ao que ocorreu entre março e junho, o meu agrupamento terá gastado (uso o futuro composto, porque soube isto, casualmente, pela boca do aluno presente no Conselho Geral) menos 20 mil euros do que no ano anterior, dinheiro poupado em aquecimento, eletricidade, papel, etc.

    Ora bem, quando, nas duas primeiras semanas de janeiro, se estava dentro das salas com temperaturas exteriores de 6 graus negativos, dá para perceber o que não se gasta só no item aquecimento, que é transferido para… as nossas casas. Assim sendo, as escolas estão a poupar milhares de euros, que serão os professores (e famílias dos alunos) a gastar do seu bolso.

    Repito: o que acontece a esse dinheiro?

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  5. Caro Paulo,
    A semvergonhice grassa, cada vez mais, também na nossa classe profissional.
    Como referiu, e eu reitero, trata-se de gente com poucos ou nenhuns escrúpulos, que eu jamais quereria como professores dos meus filhos.
    E sim. Também eu sinto, cada vez mais, a falta dos meus pares “mais velhos”. Gente bem formada, pessoal e profissionalmente, nada comparável a estas ervas daninhas que, cada vez mais, ocupa o espaço escolar.
    Por isso, caro Amigo, só lhe posso estar grato pelo serviço público de cidadania que a todos presta.
    Obrigado.

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  6. Análise lúcida e assertiva. É estranho que agora se esqueçam dos seus direitos aqueles que viram os seus direitos esquecidos! Que estranho povo este: “Não se governa nem se deixa governar”…

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  7. Mais uma vez agradecido a si…e pelos vistos segundo escritos
    Romanos, séc. III a.C.: “Há, na parte mais ocidental da Ibéria, um povo muito estranho: não se governa, nem se deixa governar!”

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  8. (e quem não gostar do que lê por aqui, porque é pouco fofinho, tem bom remédio… há programas de manhã e de tarde na televisão com casos de vida muito interessantes…)

    Esta até doeu!
    Nem ao meu pior inimigo desejo tal sorte!!!

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  9. Como compreendo o fenómeno. E nada tem que ver com opiniões e visões diferentes e legítimas. Tem que ver sim com falta de valores morais e éticos. O nepotismo dá-se a isto…

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  10. Antes de mais quero agradecer o seu esforço e dedicação! Bem haja!
    Em seguida , deixo uma má notícia e uma boa notícia. A má é que o professorado intelectual não ouve o professorado real. A boa é que o professorado real também não ouve o professorado intelectual. Professores são a cacofonia de dois surdos recíprocos.

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  11. A maior parte do trabalho individual da componente não letiva que integra o horário dos professores tem sido feita com o recurso ao computador pessoal de cada um. E não são raros os professores que há muito utilizam, nas próprias aulas, computadores, projetores e outros equipamentos pessoais. Há muito, também, que o professor cumpre essa componente do seu horário em teletrabalho, porque as escolas não têm as condições para que os docentes possam aí cumprir o seu TI. Então, esta posição comum serve agora para quê?
    Não se perde nada em relembrar as responsabilidades aos responsáveis. O Paulo fê-lo como já o fez tantas outras vezes. Sobressai da lista dos signatários como uma pessoa íntegra, coerente e corajosa. Outros haverá para quem esta posição é apenas (mais)uma birra.

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    1. Não é birra Madalena. Verifico pelo que escreve, “é apenas (mais) uma birra”, que a Madalena já conhece de quem fala e que não são de confiar. Concentre-se na ação particular em análise e não no carácter dos que desenvolveram a ação. Se continuamos a analisar os assuntos relacionados a partir dos maus, que os há em todos os nichos, estaremos, invariavelmente, a desconsiderar todo altruísmo que a classe de professores coloca, desde sempre, tal como diz (e bem), com a utilização do seu material para dar resposta ao que o estado não consegue fazer. Já para não falar das horas consumidas para a realização das tarefas profissionais que vão bem para lá do horário normal de qualquer trabalhador. E como o estado se tem comportado junto desta classe? Pois.

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  12. Ministrarei as lições na venda, espaço gentilmente cedido pelo Coxa, tendo os discípulos a oportunidade de visualizar atrás de mim não a habitual estante de livros auto-justificativa dos comentadores titulares mas uma rebuscada selecção de bebidas liquorosas habitualmente expostas no estabelecimento. O que não se faz pela ilustração dos povos e instrução da juventude.

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  13. É o gang que se alimenta da hipocrisia e da maledicência…sempre a querer estar bem com Deus e o Diabo… grupinho sempre preocupado em não levantar ondas, porque a mediocridade é gritante…

    Infelizmente, é o que há mais na classe. Muito por culpa de ser uma classe maioritariamente constituída pelo sexo feminino (que me desculpem as colegas que os têm no sítio, eu também sei muito bem que as há!).

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  14. Caro colega, acho esta achega de péssimo gosto. O género não é para aqui chamado.
    Quanto ao assunto do texto, não poderia estar mais de acordo! Esteja um professor no 1o ou no 10o escalão, não lhe deveria ser assacada a responsabilidade por arranjar material ou por pagar tudo o que é inerente ao teletrabalho.

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  15. ” …Pena que sejam pessoas a quem nunca vi questionar se o ministro Tiago não ganha o suficiente para pagar a estadia em Lisboa, em vez de receber um subsídio de deslocação, que nenhum professor recebe quando fica deslocado a dar aulas a centenas de quilómetros do seu domicílio.”

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  16. Felizmente ainda temos quem vai questionando …
    Com todo o respeito por tudo o que está a acontecer a muitas famílias desde há alguns meses, e que decerto se vai alongar, é certo que temos muitas famílias de professores já com 40, 45, 50, 55 (…) anos ou mais, que andam a contar os tostões há largos anos, situação que é ignorada por muitos. Com que legitimidade se poderá exigir às famílias que andam a contar os tostões há largos anos, que tenham material informático capaz de suportar o que exige o E&D. Lembro que foi chumbada (há alguns dias), no parlamento, a proposta para ajudas para alojamento a professores deslocados!!!
    Por muita boa vontade que se tenha, o dinheiro não estica, e as famílias de professores também incluem profissionais que não são professores (profissionais de saúde, profissionais dos lares, profissionais ligados à cultura e à restauração…) e que viram agravada a sua precária situação económica.
    Lá porque é necessário material que a entidade patronal não disponibiliza, que se deve recorrer da boa vontade de cada um, ou criticar a falta dela – “no convento, só sabe quem está lá dentro”.
    Não se trata de má vontade, nem sequer de ressabiamento (face ao tratamento com que os professores têm vindo a ser “mimados”), mas deve ficar à consideração de cada um disponibilizar, ou não, o material necessário para realizar o trabalho por conta de outrem.
    Em democracia, antes de mais, há que respeitar a decisão de cada um.

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