O Texto Completo Do Público Online

Por acaso acho mal que textos não pagos fiquem com acesso restrito. E já lá vão mais de 13 anos de colaboração.

Uma Educação Mínima

Enquanto o ano lectivo terminava, os exames nacionais do Secundário arrancavam e se discutia quando sairiam as listas de colocação do concurso de professores, eis que é publicado de forma quase despercebida o despacho n.º 6605-A/2021. Os menos atentos pensarão: mais um despacho, não deve ser nada de relevante, mais um diploma a juntar a tantos, nem sequer é um decreto.

No entanto, apesar de escrito naquele tipo de linguagem algo circular que os leigos têm dificuldade em compreender. O sumário do dito despacho deixa alguns sinais de não ser um daqueles diplomas menores, que apenas pretendem “operacionalizar” ou “clarificar” um dado ponto de outro diploma que deixou espaços por preencher. Diz-nos o sumário do despacho 6605-A/2021 que “procede à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa”.

Como de referenciais (e guiões ou guias) andamos nós mais do que repletos, porque os há de todos os formatos para os mais variados temas (basta uma rápida pesquisa online para os descobrirmos para a Saúde, mas de igual modo para o Desenvolvimento, para a Educação Financeira, para o Mundo do Trabalho, para a Educação Ambiental, até mesmo para o Empreendedorismo), a primeira reacção pode ser a de indiferença.

Só que sob a superfície, conhecendo-se o modo operatório do actual poder na Educação, há campainhas de alarme logo sob a superfície. O primeiro deles é que num diploma com menos de 8000 caracteres, mais de 6500 são de preâmbulo explicativo. O que, mesmo para quem é moderadamente iniciado nestas andanças, significa que está ali uma justificação demasiado longa para ser inocente ou tratar-se de matéria pouco importante. Introduções deste tipo, que em muito ultrapassam o articulado, significam que não estamos perante um despacho qualquer.

E a leitura do parágrafo que se segue a tão longa dissertação, a que já voltarei, tira-nos qualquer dúvida, pois o signatário (o secretário de Estado Adjunto e da Educação passa a explicar que é “no uso dos poderes delegados pelo Despacho n.º 559/2020, de 3 de janeiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 11, de 16 de janeiro de 2020” que determina que a partir do próximo dia 1 de Setembro, todo o ensino não-superior passa a ser regido pelos princípio do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, pelas chamadas “Aprendizagens Essenciais”, sendo “revogados os demais documentos curriculares relativos às disciplinas do ensino básico e do ensino secundário com aprendizagens essenciais definidas”.

Ou seja, todos os programas em vigor até ao presente ano são revogados e substituídos por “aprendizagens essenciais”, justificando-se isso no dito preâmbulo com um trabalho que “obedeceu a várias etapas, sendo desenvolvido, desde o final do ano de 2015, através de um processo analítico, reflexivo e participado envolvendo um conjunto de iniciativas, das quais se destacam” uma análise nacional e internacional do currículo, um inquérito dirigido aos professores, que se afirma ter tido uma resposta “significativa” (embora sem quantificar o que isso “significa”) e um  congresso internacional.

E é assim que as “aprendizagens essenciais”, que correspondem à mesma lógica do que em tempos antigos se designava como “programa mínimo” das disciplinas que tinham exame no Secundário, se vai tornar o “referencial” para o nosso ensino básico e secundário. Neste sentido, este despacho é a pedra de cunha de todo o edifício iniciado em finais de 2015 com o fim das provas finais de ciclo e continuado com os “decretos gémeos” de 2018 (também publicados a 6 de julho). O que significa que vamos ter uma variante nacional da iniciativa dos Common Core Standards que tanto tem sido bastante nos E.U.A. devido à queda do desempenho da maioria dos alunos americanos.

Este despacho formaliza uma Educação Mínima, em que o essencial se torna não o mínimo aceitável, mas uma espécie de benchmark a alcançar. O mínimo denominador comum passa a ser o horizonte a alcançar e isso é “legitimado” porque as “Aprendizagens Essenciais foram sujeitas a uma avaliação no subprojeto Curriculum Content Mapping, no âmbito do projeto Future of Education and Skills 2030, da OCDE, tendo-se salientado o papel das ações estratégicas de ensino orientadas para o perfil dos alunos como garantia da prossecução dos objetivos e conteúdos curriculares que as suportam”.

Num tempo em que tanta gente escreve sobre a Educação e verte lágrimas de dor pela Escola Pública e pelos mais desfavorecidos, seria importante que entendesse o que esta lógica de Educação Mínima representa para a Escola Pública: a sua redução a um currículo de trivialidades, em que tudo o que não é “essencial” é apelidado de “enciclopédico”. Uma Escola Pública que em vez de democrática e inclusiva, se transforma voluntariamente numa escola para aqueles que não possam pagar a fuga para as escolas privadas, ou seja, que promove activamente o elitismo e a segregação. Se o lobby do ensino privado pudesse ter escrito um despacho para regular o ensino público, dificilmente teria escrito um diferente deste.

5 opiniões sobre “O Texto Completo Do Público Online

  1. Querido Paulinho, também acho mal que fiquem em acesso restrito. É melhor candidatar-se a diretor, berrar que nem um capado só quando não lhe mudarem o escalão e fazer umas aplicações para mercandejar usando dados pessoais alheios.
    Acabará rodeado de donas pombinhas a abanar plumas ao marajá.

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  2. Confesso que depois de ler este despacho fico ainda mais perplexa com o que resultou desse longo e fundamentado estudo. Estranho pois que as AE, em particular, as de História sobre as quais tenho trabalhado, esse produto de profunda reflexão, tenha resultado num referencial no qual se detetam vários erros:
    – incorreções de carácter didático (por exemplo, manda o bom senso que um conceito novo seja definido no primeiro momento em que é introduzido. Ora, surgem conceitos no Básico e no Secundário que são referidos no primeiro e segundo período, mas apenas definidos no terceiro período);
    – incorreções de carácter científico detetadas por especialistas e académicos;
    – introdução de perspetivas do “politicamente correto” que resvalam para um julgamento da História enxertadas de forma desconexa;
    – introdução de conceitos que, de tão imprecisos, resultaram em definições divergentes em diferentes manuais;
    – conteúdos repetidos;
    – opacidade nos conteúdos a lecionar, propensos a abordagens mais superficiais ou mais aprofundadas, à integração deste ou daquele conteúdo sem que se perceba se está ou não contemplado pelo referencial. Isto é mais grave no Secundário quando os alunos são sujeitos a uma avaliação que se quer objetiva e fiável sobre um referencial que não é nem uma coisa nem outra.
    A confiança nas AE é tanta que a minha filha que frequenta uma licenciatura em ensino numa das melhores instituições do país, recebeu instruções por parte dos professores das didáticas para planificarem as aulas com base nas metas e ignoraram as aprendizagens.

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  3. Ora aí está! Todos os caminhos vão dar ao mesmo sítio. Tantos diplomas legais e referenciais, tantas voltas e reviravoltas para ir dar ao mesmo: as “metas”. O que importa são as metas de sucesso, os números para a fotografia das estatísticas, claro está!. Para que isso aconteça, o caminho para lá chegarmos tem obrigatoriamente de ser fácil e facilitado ao máximo, a roçar o limiar do mínimo dos mínimos (nem sei se tal “conceito” existe ou até está previsto na matemática). O caminho mais fácil é também o que exige menos investimentos! É a lógica das empresas: o máximo de rendimento com o mínimo de custos (cortes e exploração na mão-de-obra, salários, meios de produção). Não importa a qualidade desde que a quantidade atinga os valores da vaidade e do orgulho de quem faz as leis e despacha as ordens .
    Dito isto, e não esquecendo que vivemos no século XXI, na dita era do mundo global, cada vez menos humanizado, mas mais virtual, digital, robotizado, em que tudo tem de acontecer de forma acelerada e em linha reta, doa a quem doer, eu acho que a Educação é encarada como mais um elo da engrenagem feroz e voraz da política e da economia, que põe as pessoas e as suas vidas, as instituições e as empresas a competirem desenfreadamente umas contra as outras.

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  4. Por muitas leis, decretos-leis e despachos necessários que se fabriquem, por muitos projetos interessantes que se plasmem no papel, por muito boas que sejam as intenções nos espíritos e nas cabeças de muitas pessoas, nenhuma nação será construída apenas com base nisso. Isso é apenas o mínimo. O “essencial” é apenas um nome chique para “mínimo”. Portugal é um país essencial porque tem o mínimo para oferecer. O mínimo público, porque o máximo é privado.
    Na base da filosofia de vida deste país, e por isso da educação e das mentalidades – entenda-se aqui apenas o que há para entender, e que são a filosofia e os interesses políticos e económicos que comandam esta nação – o que a maioria de nós entende e acredita que é “público”, não o é, como não foram os milhões de euros que vieram da Europa – do estrangeiro – aquando da entrada de Portugal na “Comunidade Económica Europeia”, atual União Europeia. Se tomarmos como exemplo o que se passa com a floresta, mas que certamente passa despercebido (ou está esquecido) à maioria dos portugueses – mais de 90% da floresta portuguesa é privada!!! – depressa nos apercebemos (ou nos lembramos) que há tantos setores da atividade cultural, educacional, social, económica, etc. que, paulatinamente, ou têm desaparecido, foram abandonados à sua sorte ou simplesmente foram entregues a grandes grupos nacionais e estrangeiros para que aproveitem os recursos existentes, potenciem o seu valor, desenvolvam as atividades, rentabilizando assim os investimentos. Quando penso na Educação, como um valor e uma riqueza humana que gera tantos outros valores e tantas riquezas, não consigo evitar comparar o que se passa nas várias geografias humanas e naturais do nosso país, como por exemplo, no Algarve, no Alentejo, na Beira Baixa, Trás-os-Montes ou no Douro, regiões de onde emigraram, e continuam a emigrar tantos portugueses com valor e qualificados, pela falta de trabalho, de dinheiro e de esperança. Mais de meio século depois, com a promessa do “Eldorado” do turismo, sobretudo os estrangeiros e os dinheiros privados, descobriram o potencial das belas paisagens, da apetecível gastronomia, dos valiosos recursos naturais, da natureza hospitaleira e afável dos portugueses, e a par de tudo isso, perceberam também que há uma grande falta de fé (exceto nos Santos e Santas) e um grande esmorecimento das pessoas face à falta de planeamento e de desenvolvimento dos projetos das promessas políticas. E ainda lhes oferecemos incentivos fiscais públicos! O critério que norteia o “público” e o “privado” compete com a necessidade.
    Mas o que é que os outros têm que nós não temos? O que é que eles sabem/podem fazer que nós não sabemos/podemos fazer? Eles têm sabedoria e nós só temos crenças?
    A Educação, que nem deveria ser pensada como coisa “pública” e coisa “privada” – uma mania muito portuguesa como a de dividir a terra em “quintais” – é só mais um setor que têm vindo a ser desvalorizado, desacreditado e desinvestido justamente para ir dando abertura a ricos caminhos privados – que o Estado é pobre e “mal” educado – como já acontece há muitos anos noutras cidades do país, onde há uma superior elite formada em colégios e escolas privadas e onde as históricas desigualdades sociais, culturais e económicas são abruptas, a montante e a jusante das vidas de uns e de outros. E para ajudar aos argumentos da privatização da Educação, temos ainda os resultados dos famosos rankings dos exames.
    Já se produziram tantos e profícuos documentos e normativos desde o Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, o da educação inclusiva – Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho – um inquérito dirigido a todos os professores, entre o final de 2015 e o início de 2016, um congresso internacional, em abril de 2016, sobre o currículo – “(…)Da conferência mencionada saíram as bases para três frentes de trabalho: o projeto de autonomia e flexibilidade curricular, entretanto consubstanciado como instrumento de gestão curricular no Decreto-Lei n.º 55/2018, de 6 de julho, o regime de educação inclusiva, refletido no Decreto-Lei n.º 54/2018, de 6 de julho, e a Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania. Todas estas iniciativas beneficiaram de uma ampla participação e debate público antes da sua aprovação.” (…) “As Aprendizagens Essenciais, homologadas em 2018 para o ensino básico e secundário científico-humanístico e em 2020 para o ensino secundário profissional e artístico especializado, apresentam uma estrutura comum, identificando domínios e temas, a sua ligação com o Perfil dos Alunos à Saída do Escolaridade Obrigatória e sugestões de abordagens metodológicas.” (…) in Despacho n.º 6605-A/2021.
    O mínimo, ou melhor, o essencial que se espera do máximo de trabalho teórico produzido é que se invista o máximo na Educação, mas ouvindo as pessoas que trabalham no terreno, que conhecem as necessidades e os problemas de um vasto território e de uma densa floresta que há muito carece de atenção, organização, planeamento e valorização. Para todos e para o bem de todos.

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