5ª Feira

Levei grande parte da minha idade adulta a ouvir uma crítica que, de tão recorrente, deve ter a sua razão de ser. A de que eu não sei ou não me interesso em estabelecer “compromissos” ou “entendimentos”, que não entro num “diálogo construtivo destinado a encontrar soluções”. Que não me envolvo na construção de “pontes”. A esta costumo responder com a graçola que nunca quis ser engenheiro, nem mesmo dos formados ao domingo. Quanto ao resto, confesso que concordo em parte com a crítica, mas só em parte. Se há coisa que dada altura eu fiz até em excesso foi entrar em diálogo com uma série de gente com cujas ideias estou em maior ou menor desacordo. ali a meio dos tempos do “Umbigo” até acho que meti o nariz em demasiados “debates”, devido à minha felina curiosidade, raramente ganhando grande coisa com isso e por “ganhar” entendam-se conhecimentos nas matéria em discussão ou de gente que estivesse mesmo com vontade de trocar ideias e não apenas de recrutar apoios ou novos membros para a sua agremiação ou grupo de pressão.

Confesso que foram muito poucas as situações em que tive a sensação do convite para discutir seja o que for, não fosse motivado por uma vontade de “envolvimento” em qualquer causa particular. Excluo desta observação, os convites de escolas onde fui conversar com colegas, sem qualquer agenda oculta de qualquer das partes. Mas em outros casos, percebia-se que aquilo era mais uma sondagem do que outra coisa. A “abertura” era, no mínimo, para pactos de não agressão ou alianças de ocasião. Algo em que sou manifestamente um inepto. Os “compromissos” só têm valor para mim se não corresponderem ao completo esvaziamento de uma das posições ou para a cooptação de alguém para ser usado como nome na lapela. Aceitei num par de casos, por convicção ou amizade, mas desconversei em todos os outros, fiz de distraído ou, quando isso parecia ser mesmo a única saída, explicitando com clareza toda a minha desafeição.

Se este verbete aparece nesta altura e tem um tom algo auto-complacente, é porque ouvi/li há uns dias qualquer coisa como “tu devias entrar num partido, porque é aí que se debatem as questões e há poder para tomar decisões“. E eu não respondi o costume, por cansaço: que há pessoas que só se sentem bem em organizações a partir das quais possa aceder-se a um qualquer poder e há as que não sentem qualquer tipo de apelo nesse sentido. Não sei se a pessoa em causa vai ler isto (ou quem assistiu à “troca”), mas se ler que se dane – lá está, não tenho vocação para “pontes” – porque acrescentou algo como “fazias bem, porque o país ganhava com isso” (e nem acrescento o porquê). Ora bem… é minha firme convicção que quem acha que o país precisa de si é porque está a mais de meio caminho no processo de achar que vale mais do que efectivamente vale e porque quererá chegar onde, por isso mesmo, não merece. De malta assim, anda o país cheio e estou firmemente convencido que não tem ganho nada com isso.

Quanto a mim, quando a minha ambição na vida for ser vereador, presidente de junta, secretário deste estado, consultor ou assessor, mais vale arrumar as botas e dedicar-me em exclusivo à arrumação da minha papelada.

Já agora… se é para um tipo se vender que não seja por tão pouco 🙂 se é para um tipo se meter no meio da “elite”, ao menos que seja para um nível de adãoesilva para cima.

Este Mês, No JL/Educação

Vem a seguir, destoando no tom, a prosas gémeas do SE Costa e de um dos seus directores do coração sobre as maravilhas do programa 21|23 e dos seus “eixos”. Há textos deste pessoal que, no seu tom gongórico, me fazem lembrar os panegíricos de outros tempos e outros regimes a toda e qualquer política promovida pelos Grandes Líderes do momento.

Auto e heteroavaliação

Vai terminando a custo um dos mais complicados e longos anos lectivos de sempre. Quem pensou em 2020 que tinha passado pelo pior, descobriu este ano que tinha sido apenas uma preparação para o que estava para vir. Esta semana ainda decorrem reuniões de avaliação dos alunos do 1º e 2º ciclo e continuam as tarefas típicas de qualquer ano escolar, acrescidas a cada rotação da Terra de novas obrigações que outrora se considerariam impensáveis de ser realizadas por pessoal docente que agora os poderes consideram qualificado para praticamente todo o tipo de função.

Já tivemos a parte do acompanhamento e vigilância dos alunos nos intervalos e refeições, agora temos a parte da recolha, triagem e arrumação de manuais escolares. Porque a “racionalização” dos recursos humanos nas “unidades orgânicas” outrora conhecidas como escolas fez com que o pessoal não docente (administrativo ou outro) seja deficitário, precário e não chegue para as encomendas, pelo que se considera que devem ser os professores a assegurar muito do que antes eram funções administrativas das “secretarias” (continuamos a chamar-lhes assim apesar das novas designações mais criativas e extensas), mais as novas tarefas que é preciso desempenhar e, como vida de professor é coisa descansada, vão lá receber computadores, manuais e chaves de cacifo e não se esqueçam de fazer matrículas e actualizar os dados dos alunos naquele belo sistema informático, mesmo muito intuitivo que é o E360.

Lá está ele sempre a queixar-se, parece que nunca está satisfeito, que nunca vê a parte meio cheia do copo de água fresquinha, que pensa que só deve ter direitos e privilégios e férias de três meses, como há alguma gente que gosta de escrever (e algumas até o chegam a pensar como se fosse mesmo verdade). Não o vou negar. Não consigo ignorar que as funções dos professores, não apenas em Portugal, sofreram uma enorme desqualificação ao serem-lhes sucessivamente acrescentadas obrigações claramente desadequadas às suas qualificações.

Mas se sou rápido nas críticas ao que outros decidem e fazem (ou melhor, decidem que outros devem fazer), também gosto de olhar um pouco para dentro e analisar aquilo que fiz ao longo do ano e avaliar até que ponto poderei ter contribuído de algum modo para a melhoria dos meus alunos, não apenas em termos de desempenho académico, mas também ao nível das atitudes. Não falo do que se coloca naquelas três páginas a que chamam relatório de auto-avaliação do desempenho docente, que esse é aquele espartilho no qual tudo e nada deve caber, para que sirva de base a uma classificação atribuída por quem nada observou de concreto ou sabe se mesmo aconteceu assim, como lá está ou não há forma de estar, por muito que se disfarce que se diminui a letra de trebuchet 11 para 10.

Falo de alguma forma de introspeção, quando ainda há energia ou motivação para isso. De fazer alguma auto-análise, de modo a perceber se terei algum crédito para apontar o dedo a inconseguimentos alheios, a incompetências organizacionais, a puros disparates da hierarquia decisora, em especial a central, que sobre todos derrama crenças particulares altamente discutíveis como se fossem verdades universais e intemporais. Só que, como nos tais relatórios de auto-avaliação, mesmo que em menor escala, tendemos sempre, em causa própria, a fazer alguma encenação do que realmente aconteceu, porque não há quem queiramos mais enganar do que a nós mesmos, mesmo quando se tem ainda aquela pontinha de consciência que nos sussurra ao ouvido interior que temos alguns deveres éticos e deontológicos a respeitar, mesmo que não estejam escritos.

Por isso, é importante que essa auto-avaliação tenha um contributo externo, beneficie do olhar exterior de quem efectivamente observou o nosso trabalho e esteve presente no nosso quotidiano, na parte que deveria ser a mais importante em qualquer tipo de avaliação do desempenho docente, a que se passa na sala de aula e no que de mais perto rodeia a prática lectiva. Porque eu sou dos antiquados professores que, mesmo achando que se deve cumprir com brio tarefas como escrever uma acta sem erros ortográficos ou de sintaxe básicos ou fazer um qualquer relatório final (quase sempre de utilidade duvidosa, mas já começa a fazer parte da paisagem), os professores deveriam ocupar a larga maioria do seu tempo em trabalho directo com os alunos e não no seu registo administrativo ou representação burocrática para a respectiva monitorização.

Tudo isto para referir que todos os anos, naquelas aulas em que já na recta final, quando estamos a tropeçar nas próprias palavras, sumariamos “auto e heteroavaliação”, gosto de pedir aos alunos que façam não apenas a sua avaliação, mas também a minha, a do professor, em termos quantitativos e curtamente descritivos, identificando uma ou duas qualidades que se consideram importantes e os defeitos que acham que devem ser corrigidos. De forma anónima, claro. Uma avaliação que, como se diz há umas décadas, tenha uma componente “formativa”, para que eu possa melhorar o meu desempenho ou, pelo menos, tomar consciência do que pensa quem me observa com maior proximidade e para quem, em primeira e última instância, o meu desempenho tem mais importância.

(momento adequado para um breve interlúdio explicativo: que não se confunda esta minha prática com uma adesão às teorias que postulam que os alunos devem ter um papel sistemático na avaliação formal dos professores, em especial quando isso é surge ao serviço de modelos essencialmente punitivos do desempenho docente)

De regresso à avaliação feita pelos alunos: em regra é generosa, muito generosa e tão mais generosa quanto a miudagem é mais nova e ainda não deixou que se lhe entranhassem alguns dos vícios que o sistema lhes transmite e o cinismo que acaba por lhe ser inerente. E mais do que na mera quantificação, é muito interessante a leitura das curtas considerações descritivas que fazem com um olhar que, como referi, é ainda muito limpo e puro, ingénuo, mas perspicaz.

Este ano, com metade dos meus alunos em isolamento na última semana de aulas, só pude recorrer à minha direcção de turma para recolher estas opiniões, embora a verdade é que é com eles que passo mais tempo todos os dias na escola (Português, H.G-P., Cidadania e Formação pessoal e Social, permite que estejamos juntos quase tantas horas juntos com o Sol no Céu como com os nossos familiares mais directos).

Mais do que estar a fazer aqui uma indulgente listagem de qualidades ou defeitos que possam afagar o ego e ajudar a minorar algumas dores profissionais, gostava de destacar que boa parte dos alunos, em vez de atribuir um valor, decidiu completar a pergunta “E o professor merece ter?” como se de uma frase declarativa se tratasse, apesar do curto espaço reservado para escrever.

E foram vários a expressar o mesmo tipo de pensamento: “descanso” ou “descanço”, conforme a proficiência ortográfica, ou “descanso de nós” ou mesmo “descansar e ganhar o euromilhões”. Sendo respostas anónimas, é enorme a tentação para descobrir quem escreveu esta última possibilidade para lhe subir as notas todas para o máximo.