Quero acreditar que era a falta de alternativas que me fazia ver esta série. O “boneco” era giro e tenho por aí uma réplica em formato pequeno junto à do Garfield (afinal o Alf adorava gatos, certo?), mas o resto era fraquinho…
Dia: 18 de Julho, 2021
Deixaram Os Miúdos A Tomar Conta Da Loja
Os “referenciais” do Escola 21|23 são um manancial imenso de materiais para nos rirmos do estado a que isto chegou em matéria de “operacionalização” dos sonhos delirantes de alguns governantes e respectivos cortesão. Quem se der ao trabalho de, a partir do outro post, descarregar os documentos e analisar as suas propriedades, descobrirá a sua autoria, pelo menos em termos da estrutura orgânica que os terá preparado. Indo ao site da dita “Equipa” e apreciando o perfil dos seus elementos poderá “aprender” muito acerca do modo como muita coisa tão velha como qualquer teoria construtivista da Educação, se apresenta como novidade.
Mas eu também já fui jovem e também já achei descobri coisas, só que ia tendo o cuidado de não pensar (defeito da formação histórica) que era o primeiro ou estava no grupo da fuga da frente que tinha descoberto a pólvora seca. Nunca fui a pessoa mais humilde do mundo, mas sempre me faltou esta forma de pesporrência que permite produzir documentos oficiais e “orientadores” do trabalho da rede de escolas públicas com imensas falhas, truncagens ou desactualização dos dados que se pretendem apresentar como modelos a seguir. Sei que haverá quem ache que são coisas menores, mas o amadorismo, o copy/paste, são demasiado evidentes para se deixarem passar em claro. Se fosse um qualquer trabalho de 2º ciclo de estudos bolonheses mereceria, mesmo em instituição de rigor mediano, forte puxão de orelhas aos autores.
Reparemos num exemplo quase ao acaso, pois foi o primeiro ficheiro que abri esta tarde, o “ROTEIRO – Promoção de abordagens curriculares interdisciplinares” que surge integrado na dimensão (ou será “eixo” ou “programa” ou qualquer outra coisa) “Aprender Integrando – 1.2.6.”.
Por mera diversão, em primeiro lugar, vou apontar uma incongruência relevante entre duas passagens do documento. Na página 2 declara-se que “neste modelo de organização pedagógica, os tempos de cada disciplina ou de cada componente que compõem a matriz curricular-base passam a ter um papel secundário.” O que nos levanta algumas dúvidas naturais sobre a forma de organizar os horários de alunos e docentes, não pela complexidade do modelo em si, mas pela obsessão na contagem ao minuto do tempo lectivo dos docentes. Mas mais adiante percebe-se que a promessa de +Autonomia tem limites e na página 3 pode ler-se que “o desenvolvimento do DAC não implica a alteração do horário semanal de cada uma das disciplinas envolvidas, no entanto as escolas potenciam este trabalho de diferentes modos”, seguindo-se umas propostas que quase conseguiria levar a sério, se não soubesse como se constituem certos “bancos de horas”.
Em segundo lugar, só para que se perceba até que ponto um documento criado em 9 de Julho está já desactualizado e terá sido copiado de qualquer coisa anterior, na última página (5) do documento explica-se no “Cenário #2” dos exemplos que “no âmbito do Projeto Piloto de Inovação Pedagógica e da flexibilidade curricular, o AE de Cristelo, organizou parte da sua atividade letiva em torno de 7 Referenciais de Integração Curricular (RIC) apostando numa forte dinâmica de investigação e interdisciplinaridade, com foco no trabalho colaborativo entre docentes e alunos, com grande desenvolvimento da autonomia. Para mais informação aceda aqui, para exemplos de planificações de RIC aceda aqui“. Os links são fornecidos no documento e ao segui-los chegamos ao site do Agrupamento referido, podendo ler-se que “ao longo dos últimos anos os RIC sofreram algumas alterações e são hoje 4, nomeadamente: RIC 1: ECO-Cozinha Pedagógica; RIC 2: Nós e a Europa; RIC 3: Entr’Artes e RIC 4: Jogos Olímpicos 2040″.
Não vou discutir a relevância destes 4 RIC (e algo se poderia dizer acerca de um par deles, muito em especial), mas percebe-se facilmente que nem existiu o cuidado de seguir os links fornecidos para verificar se o seu conteúdo não tinha sido entretanto modificado. Alguém deve ter recebido um ficheiro com os links e vai de os colar sem sequer confirmar o que lá está. Os referenciais foram alterados de 7 para 4, mas isso agora não interessa nada… o que interessa é o “paradigma”.
Já agora recomendo vivamente a consulta das grelhas produzidas para os “Planos de Trabalho para os RIC” que são um mimo em matéria de registo e monitorização das atividades. Resta saber se não haverá depois um por aluno. Para quem estiver com natural preguiça dominical deixo-vos um deles, assim como o respetivo “Cenário de Aprendizagem” que tem um cronograma que revela até que ponto tudo isto é “flexível” desde que caiba em quadradinhos.
(não quero com isto, em nenhum momento, menorizar o trabalho d@s colegas do Agrupamento de Escolas do Cristelo, muito em particular daquel@s a quem estas coisas são impostas a bem da imagem das lideranças)
Domingo
É dia de descanso mais do que merecido, mas é impossível esquecer que chegou uma catadupa de referenciais do chamado “Plano de Recuperação das Aprendizagens”. São documentos especialmente divertidos, se nos abstrairmos de quase por certo implicarem a produção de mais uma enorme quantidade de papelada inútil para as aprendizagens dos alunos. Passei os olhos por aquilo é um chorrilho de chavões arrancados às sebentas da formação inicial de professores bolonhizada e generalista. Há parágrafos que parecem ter sido escritos por um aqueles programas onde se inserem padrões de linguagem e frases e depois eles produzem um texto automático.
Comecemos pelo roteiro “Começar um ciclo – 1.2.2.” que é todo bom, começando assim:
Começar um ciclo requer especial atenção por parte da escola e implica o envolvimento dos alunos, dos encarregados de educação e do pessoal não docente. Uma transição bem-sucedida deverá proporcionar, em cada fase, as experiências e oportunidades de aprendizagem que permitam aos alunos desenvolver as suas potencialidades, fortalecer a sua autoestima, resiliência, autonomia e autocontrolo, criando condições favoráveis para que tenha sucesso na etapa seguinte.
Aos velhos professores em exercício, formados quase todos no tempo dos afonsinos, nada disto ocorreria, porque a importância do início de um ciclo de estudos é algo que não ocorre naturalmente a quem leva décadas disto. Porque quase todos pensamos ainda que os nove anos da escolaridade básica são um contínuo sem etapas. É preciso alguém jovem para se lembrar de tal.
Mas há muitos outros nacos de prosa que merecem destaque pela forma como realçam coisas fulcrais, nucleares e potenciadoras de um trabalho docente em condições, algo que sem um “referencial” ou um “roteiro” feito por malta quase em cueiros seriam por certo ignoradas. Cheguemos à página 3 e deleitemo-nos com a profundidade analítico-sintética plasmada na seguinte passagem:
Uma articulação bem-sucedida exige a comunicação entre docentes e trabalho colaborativo, o que implica a promoção de encontros pedagógicos entre docentes dos dois níveis de educação/ensino para:
– análise e mapeamento dos documentos curriculares dos dois níveis (Orientações Curriculares para a Educação Pré-Escolar e Aprendizagens Essenciais do 1.º ano do 1.º CEB) para um conhecimento mais profundo e potenciador da articulação das aprendizagens a desenvolver;
Havendo um mapeamento potenciador de uma articulação estamos salvos da ignorância e da obscuridade. Está quase tudo resolvido, porque a Luz que se derrama sobre as escolas e a mente tacanha dos professores obsoletos a partir deste modo inovador de encarar a articulação vertical do currículo abre caminhos nunca imaginados para as aprendizagens a recuperar.
Mas o que é mais interessante – e está muito bem pensado – é a forma como ao longo do “roteiro” se repetem passagens, com esta ou aquela mínima alteração, para que os docentes com défice de atenção e conhecidas carências de memória, possam consolidar as suas próprias aprendizagens. A passagem acima era do “cenário 1”; a que se segue é do “cenário 3” (página 4):
A articulação curricular bem-sucedida entre ciclos e níveis de ensino requer comunicação entre docentes e trabalho colaborativo para:
– análise e mapeamento das Aprendizagens Essenciais dos diferentes anos/ciclos/níveis de ensino para um conhecimento mais profundo e potenciador da articulação das aprendizagens a desenvolver;
Reparem que há o cuidado de resumir um pouco o que já foi transmitido, de modo a concentrar o essencial da mensagem a absorver pelos docentes que podem ter-se deixado distrair na leitura anterior.
E depois surgem exemplos de boas práticas, entre as quais está uma “investigação” que permitiu elaborar um quadro que “sintetiza algumas medidas que, segundo os autores, favorecem o acolhimento, acompanhamento e integração dos alunos, na mudança de ciclo”. Hoje deixo-o completo para que todos possamos aceder ao “estado da arte” dos conhecimentos sobre a matéria.
Pessoalmente, acho um repositório fascinante e “inovador”, apenas me ocorrendo salientar que poderiam ter sido usadas as funcionalidades do Word que permitem centrar o texto no plano horizontal e no vertical, porque para um professor já com a capacidade de entendimento diminuída, fico sem perceber se a “sistematização” se aplica também à “orientação”. Por outro lado tenho dúvidas sobre o que significará a expressão “expressões usadas” em relação aos “indicadores”. Sublinho, porém, a importância de clarificar que “tranquilizar” significa “tranquilizá-los”, o que se deve aplicar apenas aos alunos rapazes, mais rebeldes. Num contexto inclusivo como o que vivemos penso que se fosse para aplicar às raparigas se justificaria uma linguagem mais gender neutral. Pelo que também ouso sugerir que não seja tanta vez usada a expressão “os alunos” porque transmite uma mensagem errada, herdeira das estruturas de uma linguagem patriarcal que, deste modo, perpetua uma ideologia, mesmo que implícita, de dominação do masculino sobre as restantes formas de identidade de género que merecem uma representação equitativa neste tipo de documentos oficiais.
Penso eu de que.