Concursos

Não são anos, mas décadas que passei a ouvir falar na necessidade de “estabilizar” o corpo docente das escolas. A cada alteração nos concursos, a justificação mais comum é essa, mesmo quando o que é legislado tem exactamente o sentido contrário. A “fixação” dos docentes é uma prioridade nunca concretizada. Parece que agora vem aí nova vaga reformista, no sentido da “fixação dos quadros” (leia-se, eliminação das hipóteses de “mobilidade”, algo já ensaiado por David Justino há quase 20 anos e que tão mal correu), para que fiquem de vez onde ficarem colocados. Como criatura rara que nunca concorreu a qualquer mobilidade (andando mais de um lado para o outro, em seu tempo, conforme os concursos, sem direito a “jeitinhos”), colocado quando calhava em tempos de contratado e professor na escola onde fiquei pela primeira vez no quadro, sou todo favorável a que se eliminem atalhos e coisas assim mais para o manhoso, lado a lado com outras que são gritantes injustiças.

Por isso, receio muito a simultaneidade desta preocupação do ME e o recrudescimento do apelo dos directores para terem um papel mais activo na escolha dos professores a colocar nas suas coutadas. Já várias vezes referi que não selecciono alunos e devo trabalhar com todos os que me surgem porta dentro, pelo que não percebo porque certas lideranças sentem tanta necessidade de escolher os professores que lhes entram pelos portões. Se um bom professor deve saber mobilizar todos os alunos para o sucesso, independentemente das suas características, acho que um bom director deve saber mobilizar to, os os professores para um bom desempenho.

Mas, ia eu dizendo, receio muito os “mecanismos” que possam vir a ser usados para garantir certas “fixações”, pois se há coisa que já observo é que quem tem as costas mais aquecidas, já consegue “fixar” quem bem entende, ano após ano. O que nem sempre tem sido possível é abrir vaga com retrato à medida. Até porque há quem já esteja há tanto tempo na fila que, mesmo com as ultrapassagens “extraordinárias” que se conhecem, nem sempre é possível meter a agulha no buraco do camelo. Ou algo assim.

É que, com as tais décadas de experiência em ouvir boas intenções “plasmarem-se” em péssimas práticas, nada me garante que não se esteja para aí a preparar um cozinhado meio esquisito. Em que se retribua o favor de aplicar com eficácia e arreganho certas medidas, com uma acréscimo de “autonomia” da acção dos senhores directores, em matéria de concursos “localizados”. E depois não digam que não avisei a tempo. Mesmo sabendo que há quem goste de dar a entender que, qual Cassandra, as minhas profecias não são de fiar, mesmo quando acertam no alvo.

A Sério?

Quem andou a afirmar isso nos últimos meses não eram apenas gente de má-língua e ressabiada com o sucesso imenso da Escola Digital?

Em janeiro de 2021, só 27% dos 99 mil meios digitais adquiridos pelo ME e entregues às escolas tinham sido distribuídos aos alunos, diz o TdC. Mais de 60% só chegará no próximo ano letivo.

5ª Feira

A Educação Mínima traz consigo uma espécie de atractivo suplementar, de “cenoura”, que é a dimensão do “jogo”, da “gamificação” da Educação, que se diz ir ao encontro dos interesses dos alunos. Porque alegadamente incorpora no processo de ensino e avaliação das aprendizagens elementos lúdicos que tornam a Educação menos aborrecida e chata e os conteúdos disciplinares mais apetecíveis, ao serem fornecidos com a aparência do entretenimento. Um pouco como agora se tornou regra dar informação à população de forma mais gráfica e espectacular, para que não seja tão chato ler notícias com conteúdos que exigem maior esforço e compreensão.

A Educação “gamificada” é uma versão um pouco parola da aplicação de algumas ferramentas digitais ao ensino e resulta da crença de algumas almas esclarecidas que a Educação, entregue a si mesma e à transmissão de conhecimentos, tem pouco interesse ou, como ainda ontem li no chat de uma formação, “não serve para nada”. Já escrevi isto há uns tempos noutro texto, na sequência de uma situação parecida, mas a verdade é que este é um “argumento” que se repete e lê e ouve várias vezes a pessoas que têm como função ensinar, mas acham que isso é aborrecido, se não for coberto com entretenimento.

A estratégia do “jogo” como complemento ou elemento do trabalho com os alunos traz vantagens, em especial quando usada de forma articulada com outras metodologias, mas querer que ela se transforme no elemento nuclear da Pedagogia é um exagero próprio de quem acha que há uma solução mágica para todos os problemas da Educação e que é por poderem “jogar” que os alunos ficam interessadíssimos por aprender. Pode acontecer e até acontece, mas é algo equivalente a passar a servir as sobremesas como prato principal só porque as crianças não gostam de bróculos.

A gamificação sem critério é a cedência à lógica do homo ludens, sobre cujas origens e traços históricos já há muitas décadas Johan Huizinga escreveu. Huizinga não é contrário às manigfestações humanas do jogo e considera mesmo que “É uma função significante, isto é, encerra um determinado sentido. No jogo existe alguma coisa “em jogo” que transcende as necessidades imediatas da vida e confere um sentido à ação. Todo jogo significa alguma coisa” (pp 3-4). E associa-o muito a fenómenos religiosos e às práticas mágicas dos povos pré-científicos (que na linguagem de então refere de modo bem mais directo como “selvagens”).

De acordo com Huizinga, a primeira característica fundamental do jogo é “o fato de ser livre, de ser ele próprio liberdade. Uma segunda característica, intimamente ligada à primeira, é que o jogo não é vida “corrente” nem vida “real”. Pelo contrário, trata-se de uma evasão da vida “real” para uma esfera temporária de atividade com orientação própria. Toda criança sabe perfeitamente quando está “só fazendo de conta” ou quando está “só brincando” (p. 11). Mas isso implica que é algo transitório, pois on jogo insinua-se “como atividade temporária, que tem uma finalidade autônoma e se realiza tendo em vista uma satisfação que consiste nessa própria realização. É pelo menos assim que, em primeira instância, o ele se nos apresenta: como um intervalo em nossa vida quotidiana” (p. 12).

E é por aqui que se começa a perceber que é um paradoxo achar que o “jogo” pode ser o núcleo central de uma metodologia pedagógica e não apenas o tal complemento de que falei. E existe ainda um paradoxo evidente quando se pretende que a gamificação faça parte de uma concepção colaborativa da aprendizagem. Mesmo quando feito em equipa, o jogo implica uma noção de competição e parte do seu interesse e do prazer que desperta baseia-se na disputa da vitória. E quem já tenha feito quizzes em aula dificilmente não terá confirmado isto, seja durante o jogo em si, seja quando (como no caso do Quizzlet) o jogo termina coma apresentação da classificação final e do pódio dos “vencedores”.

Huizinga, que correctamente não demoniza o aspecto da competição inerente ao jogo, explica:

“O que é primordial é o desejo de ser melhor que os outros, de ser o primeiro e ser festejado por esse fato. Só secundariamente tem importância o fato de resultar da vitória um aumento do poder do indivíduo ou do grupo. O principal é ganhar. O exemplo mais puro de uma vitória que não implica nada visível ou aproveitável, a não ser o simples fato de ganhar, é a que temos no caso do jogo de xadrez.
Jogamos ou competimos “por” alguma coisa. O objetivo pelo qual jogamos e competimos é antes de mais nada e principalmente a vitória, mas a vitória é acompanhada de diversas maneiras de aproveitá-la — como por exemplo a celebração do triunfo por um grupo, com grande pompa, aplausos e ovações. Os frutos da vitória podem ser a honra, a estima, o prestígio.

Mais adiante Huizinga apresenta o sofista como exemplo maior da palicação desta lógica do jogo à própria vida cultural.

O sofista possui duas funções muito importantes em comum com o tipo mais antigo de chefe cultural: a de exibir seus extraordinários conhecimentos, os mistérios de sua arte, e ao mesmo tempo a de derrotar seus rivais nas competições públicas. Nele estão presentes, portanto, os dois fatores principais do jogo social da sociedade arcaica: o exibicionismo e a aspiração agonística.”

A mim não é a competição que aflige, pois nem sou dos que estão contra quadros de excelência e rankings. Quem tem essa atitude é que deveria entender as suas incoerências. Não é de agora que aponto o paradoxo de se incentivarem as crianças a competir de forma agressiva no desporto, mas depois criticar esse mesmo espírito na Educação. O “jogo”, na forma como é analisada em termos históricos nas sociedades, pode mesmo ser importante na forma como os indivíduos são levados a interiorizar regras de conduta. Só que os tempos mudaram e o jogo digital é algo bem diferente dos jogos tradicionais.

Bourdieu passou brevemente pelo tema do jogo e do seu papel na forma como os indivíduos aprendem a interiorizar regras (Esboço de uma Teoria da Prática), no desenvolvimento do seu conceito de habitus e na sua análise dos fenómenos de dominação social, mas há quem defenda exactamente que é no conceito de homo ludens que deve radicar uma estrutura explicativa da dominação.

O que a mim preocupa mais é o aspecto anti-científico que se percebe nesta defesa da gamificação, bem como o fenómeno de alienação que pode representar em relação à realidade, tornando permanente o que era visto como um “intervalo”. A diversão como regra. A legitimação da recusa do esforço para conseguir alcançar um objectivo menos fácil ou compreender algo mais complexo. A ideia perigosa de que o erro é apenas um percalço e que tudo pode ser repetido, reescrito, puxado atrás e recomeçado, como se as consequências fossem nulas.

Por muito que se defenda o valor da “tentativa e erro” como método de avanço do conhecimento científico, parece-me difícil a defesa de concepções que aceitam a normalidade da repetição dos mesmos erros, como se deles não tivesse de resultar alguma aprendizagem colectiva que permita a sua não recorrência. Porque existe uma diferença entre o jogo “tradicional” (analógico, físico, em tempo linear) e os jogos digitais (em múltiplos planos, com possibilidade de reiniciar níveis, em tempo não linear).

A “gamificação” pode ser uma parcela do todo, mas nunca poderá ser o seu núcleo central. Pode ser uma entre várias estratégias, mas não o caminho único a seguir. Pose não ser um simples “intervalo”, mas não pode substituir a vida real. Aprender um jogo é útil e “lúdico”, mas não pode substituir outras aprendizagens, sob o risco de validarmos uma quase total alienação cognitiva em que para a maioria chega ser “utilizador”, “jogador”, “aprender” apenas o que é divertido. Aprender nem sempre é divertido e não pode ser sempre um jogo, na acepção muito limitada do termo que é adoptada por aqueles que acham que uma plataforma “gira” é a solução para o insucesso.

A Educação Mínima procura agradar ao homo ludens. Não chega e é, como com a redução ao homem que faz, um retrocesso em relação ao papel da Educação como factor de Progresso e não de mera rendição ao Momento.