Dia: 4 de Novembro, 2021
30 De Janeiro
Mais um pouco e poderíamos esperar por 2023. São três meses para fazer tudo à medida de alguns interesses. Gaba-se muito a celeridade de outros modelos (como o inglês), mas nunca se aplica quando se pode. Verdade se diga que os actuais líderes do PSD e CDS também não dão um grande exemplo. Por isso, vamos andar com três meses de promessas e medidas apresentadas como exclusivas do governo PS, porque o Parlamento irá em breve a banhos. Até o deputado liberal estava feliz, porque assim pode ter mais amigos na fila.



Este Mês, No JL/Educação
Ainda não encontrei cópia em papel, pelo que nem sei o que la anda em redor. Esta é a versão original, não acordizada.
O todo e as partes
Esta estórinha vem em segunda mão. Foi-me contada há anos pelo meu colega e amigo João Santos, que já se livrou do quotidiano do manicómio, mas que me continua a abastecer de episódios e memórias, sempre que a pandemia e outros permeios não o impedem. Contou-me ele que nos seus primeiros tempos de professor teve um colega que quando chegava às reuniões de avaliação e era necessário preencher a canónica “síntese descritiva” ou equivalente, para fundamentar o nível atribuído, escrevia ou ditava algo como “parece-me que o aluno merece nível três” (ou outro, conforme os casos). O que levantava alguma celeuma entre quem achava que se deveria ser mais detalhado e específico em tal matéria mas que, ao fim de todos estes anos, me parece um modo tão ou mais adequado do que qualquer de encarar a avaliação do trabalho dos alunos. E, permitam-me, a forma mais genuinamente “holística” de proceder a uma tarefa complexa, mas que só ganha em clareza e honestidade se aprendermos a simplificá-la.
Vem este episódio quase caricatural a propósito da enorme confusão conceptual em que mergulhou a avaliação dos alunos, em especial do Ensino Básico, nestes anos de “autonomia, flexibilidade, diferenciação, inclusão & etc”, em que muito se diz e escreve, mas raramente com o cuidado de articular as partes num todo coerente, optando-se pelos remendos ao sabor do momento. Exactamente como se passa depois, na prática, com a dita avaliação.
Comecemos quase pelo princípio, que é vício que resulta da formação histórica, ou seja, pelo Decreto-Lei n.º 17/2016 de 4 de Abril, no qual se visava “estabelecer os princípios orientadores da avaliação das aprendizagens nos ensinos básico e secundário, de acordo com as orientações de política educativa consagradas no Programa do XXI Governo Constitucional”. O diploma, como todos os normativos fortemente ideologizados, tem um preâmbulo auto-justificativo que merece que nele nos detenhamos um pouco para melhor percebermos onde se acentuou a deriva actualmente em aceleração. De acordo com o dito preâmbulo, após auscultações (informais) várias “consolidou-se a evidência de que o modelo a adotar teria de ter subjacente um conjunto de pressupostos, nomeadamente que as dinâmicas de avaliação visam a melhoria das aprendizagens e o sucesso escolar dos alunos, que a avaliação contínua deve ser o instrumento por excelência da avaliação interna, devendo os instrumentos de avaliação externa atuar como recurso que potencie a avaliação interna realizada na escola”.
Esta passagem, perante a evolução dos resultados dos alunos nos últimos 25 anos, com o quase contínuo crescimento dos níveis de sucesso, poderia ser apenas redundante, mas é mais do que isso porque, de uma forma habitual nestas matérias, dá logo a entender que quem discorda do “modelo” é porque está contra tão benignos “pressupostos”. Mais adiante sublinha-se “a dimensão eminentemente formativa da avaliação e considerando que um modelo de avaliação é tanto mais exigente quanto contemple mecanismos de introdução de uma maior qualidade no ensino e na aprendizagem, na medida em que fornece pistas claras para conduzir a uma melhoria progressiva das práticas a desenvolver e dos desempenhos de cada aluno, defende-se que o rigor e a exigência se constroem pela diferenciação pedagógica assente numa intervenção precoce no percurso das aprendizagens”.
Tudo isto acaba por ser retomado e parafraseado no Despacho normativo n.º 1-F/2016 de 5 de Abril que “regulamenta este novo regime de avaliação e certificação das aprendizagens desenvolvidas pelos alunos do ensino básico” e fico por aqui, por agora, na transcrição para benefício de todos e para que não se instale em definitivo o tédio.
Em 2018, como complemento à publicação do decreto-Lei 54/2018 de 6 de Julho, a Direcção-Geral da Educação publica um Manual de Apoio à Prática, subtítulo da obra Para uma Educação Inclusiva, com autoria partilhada por mais de uma dúzia de especialistas na matéria, em que se sublinha de forma repetida a importância de uma visão “compreensiva, holística e integrada” no apoio aos alunos e na avaliação do progresso das suas aprendizagens, pois só “adotando uma visão holística que considera os aspetos académicos, comportamentais, sociais e emocionais do aluno mas também os fatores ambientais (designadamente da escola e da sala de aula)” (p. 46) é possível mobilizar a informação indispensável para reequacionar o processo de ensino e aprendizagem. E da sua avaliação, já agora.
A primeira contradição encontra-se quando se defende que as escolas devem ter autonomia na definição dos seus referenciais para a avaliação dos alunos, assim como flexibilidade na forma de os aplicar, mas depois surge um documento como o chamado PASEO (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória) que, fazendo-se lei através do Despacho n.º 6478/2017 de 26 de Julho se assume como “um referencial educativo único que, abrangendo as diferentes vias e percursos que os alunos podem escolher, assegure a coerência do sistema de educação e dê sentido à escolaridade obrigatória”. Compreende-se que seja importante a referida coerência mas, nesse caso, a autonomia das escolas existe apenas desde que obedeça a tal referencial único. Aliás isso, fica bem claro nos números 1 e 2 do diploma quando se determina que o PASEO é o “referencial para as decisões a adotar por decisores e atores educativos ao nível dos estabelecimentos de educação e ensino e dos organismos responsáveis pelas políticas educativas [e que] este Perfil constitui-se como matriz comum para todas as escolas e ofertas educativas no âmbito da escolaridade obrigatória, designadamente ao nível curricular, no planeamento, na realização e na avaliação interna e externa do ensino e da aprendizagem”. A “autonomia” só existe dentro de uma matriz fechada.
A segunda contradição é a que resulta de se defender uma Educação “integral” e de matriz humanista (parafraseando diversos autores desta corrente de ideologia pedagógica) e a avaliação dos alunos como indivíduos “no seu todo”, de acordo com uma perspectiva “holística”, mas depois se promova de forma imperativa um modelo de avaliação segmentado por rubricas que se enquadra mais na corrente da “avaliação analítica”. Fala-se num novo paradigma, o “paradigma pedagógico da comunicação” e na necessidade de dar feedback permanente e de qualidade aos alunos, pelo que é preciso recolher todo o tipo de informação. É o caso do projecto MAIA que advoga, entre outras estratégias, o recurso a rubricas como “um procedimento bastante simples para apoiar a avaliação de uma grande diversidade de produções e desempenhos dos alunos” (Domingos Fernandes, Rubricas de Avaliação. Folha de apoio à formação – Projeto de Monitorização, Acompanhamento e Investigação em Avaliação Pedagógica (MAIA). Ministério da Educação/Direção-Geral da Educação, 2001, p. 4). O problema é que ao segmentar excessivamente a informação, se perde a dado momento a visão de conjunto, acabando por tanta soma de rubricas nos devolver um todo que lembra uma espécie de frankenstein. Mesmo que se avise para os riscos (“as rubricas podem ser mais ou menos eficazes e úteis para avaliar certos objetos”, p. 5). Para além de que na prática tudo isto acaba por se traduzir num excesso de registos que em muitos casos dificilmente traz ganhos acrescidos a uma forma tradicional de corrigir/classificar o desempenho de um aluno. Ao pretender-se que “as rubricas deverão incluir o conjunto de critérios que se considera traduzir bem o que é desejável que os alunos aprendam e, para cada critério, um número de descrições de níveis de desempenho. Ou seja, para um dado critério, poderemos ter, por exemplo, três, quatro ou mesmo cinco indicadores ou descritores de níveis de desempenho”, temos o caminho aberto para a uma “grelhificação” do actos educativos, em que o registo parece ganhar maior importância do que qualquer outra variável. Pode recolher informação útil, mas, um pouco como com quem usa big data sem o algoritmo certo, pode acabar por obscurecer o mais importante. E, quase por certo, não avalia o aluno como um todo, mas apenas como uma soma de imensas partes.
Claro que podemos tentar ter o melhor de vários mundos, combinando os contributos de diferentes teorias e metodologias. Aliás, esse seria o caminho mais certo. Só que assistimos, tantas vezes, a uma miscelânea que tudo empilha e confunde, retirando verdadeira autonomia pedagógica às escolas e tempo útil ao trabalho com os alunos. Afinal, queremos que os alunos aprendam ou que fique registado que aprenderam? Confesso que prefiro o “parece-me que…”
5ª Feira
Há coisas fascinantes nesta forma de governar a Educação. Em tempos, achou-se que as reuniões de avaliação podiam ser tratadas como reuniões administrativas, para efeitos de quórum. Mas agora dizem (dgae) que prazos e procedimentos relativos à add não devem ser considerados actos administrativos, para assim fugirem às regras do CPA. Falam em falta de “enquadramento legal” quando tudo está bem explícito na legislação aprovada por estes mesmos senhores ainda no poder. E é sempre emocionante receber uma comunicação de um serviço do ME a dizer que aquilo dos decretos é só assim a modos que para servir de sinalização no nevoeiro.