Assim O Defunto Nunca Mais Morre

É raro discordar do Paulo Prudêncio nestas matérias da Educação, mas hoje foi uma das excepções. Porquê? Porque acho que uma grande parte dos professores assimilou o “discurso dominante” sobre a falta de professores e decidiu, naquela do porreirismo nacional, evitar confrontar as coisas de frente, com medo de eventuais consequências do choque frontal.

Só algumas ideias curtas:

  1. Há 15 anos restringiu-se o acesso à docência a quem tivesse profissionalização e foram criados cursos de formação inicial afunilados apenas para a dita docência. E chegou-se a defender o conceito de professor “generalista” para dar aulas a todas as disciplinas até ao 6º ano. Era o projecto do SE Lemos. Tudo isso fracassou, porque a formação inicial de professores é uma área pouco atractiva, atendendo a tudo o que envolve o muito precário acesso à carreira, com condições vergonhosas para os professores contratados que preenchem necessidades temporárias ou são chamados para substituições.
  2. Mas continuaram a existir cursos de Línguas e Literaturas, de Química, de História, de Geografia, de Biologia. Quando comecei a dar aulas, foi assim que me iniciei e depois fiz a profissionalização. Foi assim que me tornei professor. E dezenas de milhar como eu. Nada impede que se volte a abrir a docência a quem vem de uma formação disciplinar específica e não apenas dos desacreditados e pouco povoados cursos de formação inicial de professores. Basta ver a evolução do número de formados no Ensino Superior e Politécnico. Até elevaria o nível médio dos conhecimentos científicos dos futuros docentes, embora se viva em tempo de “aprendizagens essenciais”.
  3. O recurso a “horas extraordinárias” para “tapar” a falta de professores é legítima, desde que as pessoas aceitem. Muita gente não está em condições de o fazer, por motivos físicos ou mesmo de resistência psicológica. Quem não entende isto, nem deveria começar a discutir o assunto. A saída é, de acordo com a lei, não aceitar ou nem dar essas aulas, pois a tal não pode ser obrigado. Não é preciso qualquer greve para isso. Chegaria às organizações sindicais esclarecerem isso junto dos professores e apoiá-los nas situações de tentativa de pressão abusiva das direcções.
  4. Se há necessidade de recorrer a horas extraordinárias (as que foram proibidas – lembram-se? – há coisa de uma década, exactamente para poderem sobrar mais horas para os professores que ficavam fora dos concursos) para conseguir ter alguém a leccionar é porque não há candidatos a esses horários. Pelo que… não será por faltarem a essas aulas “extraordinárias” que algum colega ficará por colocar. Dá para entender isso? Sim, é pena que os alunos fiquem sem aulas (como os da minha DT de há 2 e 3 anos que já então chegaram a ficar sem nota em duas disciplinas por falta de número suficiente de aulas para o efeito), mas esse é um problema cuja resolução não pode passar por sobrecarregar quem já está em situação de burnout. Quem estiver em condições e quiser, aceita. Quem não quiser e não conseguir, não deve aceitar, nem sentir o dever de cumprir o que é abusivo.
  5. Soluções? Há, mas não na base de remendos manhosos destinados a reduzir ainda mais os requisitos académicos para se ser professor. Passam por tratar de forma digna quem dá os primeiros passos na docência e, em simultâneo, não desprezar quem dela fez a sua vida profissional. Só assim será “atractiva” à entrada e permitirá adiar as saídas, se não for activamente “repulsiva” como agora é.

A responsabilidade pela actual situação é das equipas ministeriais (e respectivas cortes de conselheiros e especialistas) que amesquinharam a docência, recorreram a estratagemas sem sentido para condicionar o acesso ao seu exercício e consolidaram situações de proletarização material, desqualificação simbólica e desvalorização académica dos professores.

Querer agora que os professores resolvam um problema que não criaram, acerca do qual avisaram a tempo e contra cujas causas lutaram, é quase o mesmo que pedir a prisioneiros de um campo de extermínio que ajudem os seus kapos a reparar as canalizações do gás.

Estou a exagerar e a hiperbolizar?

Podem crer que sim.

Porque ou bem que o defunto morre ou bem que o tratam como deve ser, sem ser na base do paracetamol, caldos de frango de aviário e paninhos quentes na testa.

10 opiniões sobre “Assim O Defunto Nunca Mais Morre

  1. Concordo com o Paulo Guinote. A mortalha não pode levar mais remendos. Remendo em cima de remendo só faz perder tempo e agrava a decadência.
    Há que encarar as coisas, não aceitar horas extraordinárias porque não são obrigatórias e porque as tarefas que existem já esgotam que chegue. Desde maias a unbuntus, plataformas, reuniões intercalares e disciplinares, 30 alunos por turma…Já ninguém aguenta mais!

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  2. O número de professores que concluem os mestrados em ensino é inferior aos números do Pordata. Os números da Dgeec indicam 1500 professores formados por ano.

    O valor apresentado (3 mil e umas centenas), inclui licenciados em educação básica (que precisam de mestrado para exercer) e licenciados em ciências da educação (que não permite o acesso aos mestrados de ensino).

    Só vejo uma forma de atrair candidatos: a existência de uma razoável garantia de emprego após a conclusão do curso. Que se crie algo parecido com o internado médico.

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    1. O que é preciso é que continuem a fazer as licenciaturas nas universidades e que façam uma pós-graduação em pedagogia com estágio nas escolas.
      Tão simples e garante mais qualidade que essas ESEs que nunca deveriam ter sido criadas por inconsistência académica e científica.

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  3. Não discordo do que estava a dizer. Havia pouca rede. Eu estava a falar de um programa televisivo e tu do texto que estavas a escrever 🙂 Aquele abraço.

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  4. Horas extraordinárias só muito bem pagas.

    Os profs tem vergonha em falar em dinheiro … São mais tipo… Missionários.

    Eu cá sou capitalista.

    Paguem bem que resolvem logo o assunto da falta de profs.

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  5. Pois eu dispenso as horas extraordinárias, mal ou bem pagas. Não quero que adiem a minha saída, pelo contrário, quero que a antecipem! Sinto que a minha condição física e psicológica, por variadas razões, não me permite aguentar mais esta vida de professor, tal como está. Porém, para evitar apanhar com um corte de 40 ou 50% na aposentação, vou ter de andar a “arrastar-me” por aí mais cinco ou seis anos, apesar de já ter 39 anos de serviço!
    Deixem os velhos como eu ir embora, com uma penalização mínima, se fizerem muita questão, abram as nossas vagas de quadro aos contratados e aos outros que, entretanto, estão a trabalhar noutras áreas, e verão como essas vagas serão ocupadas rapidamente.

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  6. Na altura que nos encontramos acho impossível antecipar aposentações.

    Mas isso sou eu a pensar em grego.

    Ps- deixem-se de merdas e paguem muito BEM horas extraordinárias

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  7. Muito bem argumentado, Paulo.
    Com difícil contra-argumentação factual e com conhecimento de causa.
    É necessário não dar ouvidos ao comentadores de debates a quem se dá tempo de antena para expressarem a sua opinião.
    Opinião cada um tem a sua.
    Para se cuidar da Educação de um país democrático é necessário conhecimento, transparência e experiência.

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