Correndo O Risco De Incorrer Na Fúria Dos Deuses Das Leis…

… arrisco a publicação desta comunicação enviada aos ex-pares, por um primus inter pares que se distingue pela forma elevada como trata estes assuntos e considera que no momento do toque o professor deve estar de relógio em punho à porta da sala de aula. Nada como dar poder a quem tem contas por ajustar e muita vitimização para exibir. A verborreia é o que é, nem valendo a pena adjectivá-la, só sendo ultrapassada no pretensiosismo pelos maneirismos bacocos e por um paternalismo em matéria de “profissionalismo” que desperta um amarelo sorriso. A crítica a quem redigiu o Regulamento Interno nem sequer é disfarçada. Agora imaginem que o poder não é delegado, mas passa mesmo a ser próprio… nem os intervalos seriam permitidos aos professores… tudo em nome da Lei! Enegreci apenas as partes “legais” mais “negras”. E acreditem que há outra documentação bem mais “rigorosa” do que esta, incluindo as mais draconianas interpretações do que é um “102” ou mesmo uma “urgência médica” que possam imaginar. É esta a “nova” geração de proto-lideranças que resolveram claramente mal um passado incompleto.

Para: Docentes (…)

Cc: Conselho Geral; Conselho Pedagógico; Presidente do Conselho Geral

NOTA IMPORTANTE: OS COORDENADORES DE DEPARTAMENTO DEVEM REMETER ESTA INFORMAÇÃO A TODOS OS DOCENTES DOS SEUS DEPARTAMENTOS (COM cc. a subdiretor@********.edu.pt) E DEVE SER DEBATIDA EM TODOS OS DEPARTAMENTOS NA 1ª REUNIÃO POSSÍVEL (PODENDO SER-ME REMETIDAS AS OBSERVAÇÕES PRODUZIDAS QUE SERÃO TODAS RESPONDIDAS)

Ex.mos/as Senhores/as Professores/as e Educadores/as,

Lamenta-se, mais uma vez, ter de voltar a estes assuntos.

É muito desagradável ter de repetir estas mesmas observações que já antes foram feitas várias vezes.

Algumas vozes [sic]

Mas atitudes de pseudoresistência passiva, coordenada contra o que não admite grandes dúvidas em matéria de deveres profissionais, não vão demover-me de salientar o que parece correto e que, aliás, resulta da Lei e não de mera opinião.

  1. Sobre os problemas de justificação de faltas reencaminha-se a informação produzida em Novembro e que continua a ser ignorada por alguns/mas professores/as e educadores/as.
  2. Tem havido uma atitude pedagógica e dialogante, de quem tem a incumbência de aceitar justificações de faltas, para promover a conformidade às regras de base legal, mas, esgotando-se essa via, restará o caminho de injustificar faltas sem hipótese de correção, o que será evidentemente verberado então como sinal de tirania e abuso quando, na verdade, é apenas fazer cumprir regras, que se difundiram e relembraram largamente e explicaram exaustivamente, mas, mesmo assim, andam a ser displicentemente ignoradas.
  3. No domínio da pontualidade, constata-se que na EB23 se mantém o hábito de um elevado número de professores/as considerar que o toque da campainha é o sinal para iniciar a marcha até à sala de aula.
  • Na verdade, é o sinal para iniciar a aula e sinaliza o momento em que se pode começar a marcar falta aos alunos por atraso (salvo nos 1º tempos).
  • Se o toque marca o início do atraso do aluno, para este ser “objetivamente verificável”, o professor tem de estar na sala de aula para o poder verificar pessoalmente.
  • Cita-se abaixo o regulamento interno vigente. (Sem deixar de fazer a nota linguística de que é fascinante, pelo que significa simbolicamente, de se referir na sua redação a palavra “atraso”, que é gramaticalmente um nome, com o contraditório adjetivo “pontual”, para significar realmente “ocasional”, para além do uso dúbio de conceitos gerais e indeterminados).
  • Salienta-se que, apesar de haver tolerâncias aos primeiros tempos para os alunos, não há para os professores (o que talvez deva justificar revisão futura desta norma).

Espero sinceramente não ter de me voltar a debruçar sobre este assunto nestes moldes o que significará que houve considerável melhoria do nosso funcionamento.

Com os melhores cumprimentos,

(…)

subdiretor do agrupamento (no uso de competência delegada)

Extrato do regulamento interno Artigo 226.º – Falta de pontualidade

1. Aos alunos é tolerado o atraso pontual e justificado de dez minutos no início do turno da manhã e no da tarde, se for este o início das aulas do dia. Nos restantes tempos, a falta de pontualidade é justificada somente por motivos objetivamente verificáveis.

2. Verificando-se a chegada do aluno à aula após o período de tolerância, sem justificação plausível ou atendível, o professor deve marcar uma falta de pontualidade no registo próprio.

3. Atingidas três faltas de pontualidade, nas circunstâncias mencionadas no número anterior, cabe ao professor fazer a sua conversão numa falta de presença, com os correspondentes efeitos legais para esta previstos, informando, de imediato, o Diretor de Turma desse facto.

4. Sempre que o Diretor de Turma receba informação nos termos do número anterior deve, no mais curto espaço de tempo, dar conta dessa situação ao Encarregado de Educação.

A História Cercada – 2

Texto escrito antes do que foi divulgado há cerca de uma semana no blogue da FFMS, mas que acabou por ficar para trás, por causa da actualidade da guerra. O “díptico” acaba por aparecer na ordem inversa, mas percebe-se a ideia. É provável que ainda seja por lá publicado, mas fica desde já por aqui, nem que seja para dar a ideia de que sou relativista, mas apenas q. b.

A História enquanto área de estudo e descrição do passado humano, encontra-se mais uma vez num período crítico, cercada por tendências opostas que alegando a sua defesa, apenas a procuram instrumentalizar e esvaziar, quer da sua capacidade de descrição e compreensão do passado, quer do seu contributo para a contextualização do presente.

Por um lado, temos o retorno de movimentos nacionalistas, fortemente identitários e exclusivos, que procuram radicar na História as suas opções actuais no sentido de expansionismos, separatismos ou isolacionismos, enquanto por outro temos as tendências auto-proclamadas “críticas”, herdadas de um pensamento pós-moderno, pós-colonial, neo-feminista e o que mais possamos identificar, que reclama a rescrita da História à luz de um conjunto de valores contemporâneos que se apresentam como universais, no tempo e espaço, mesmo se servidos numa bandeja relativista. O que só é paradoxal até certo ponto. Em especial se cruzarmos tudo com as “guerras da linguagem” que se têm travado nas últimas décadas em torno do vocabulário “certo” a usar na comunicação e ensino da História.

Vou recuar quase um quarto de século (Maio de 1998) e recordar uma sessão, em Paris, da Conferência Internacional Vasco da Gama e a Índia, destinada a assinalar os 500 anos da abertura da rota do Cabo e da chegada dos portugueses por via marítima ao litoral indiano, em busca de “cristãos e especiarias”, sendo que aqueles já se sabia não existirem por lá, sendo estas o verdadeiro motivo de uma viagem longamente preparada. Na mesa, um historiador português exaltava o feito de Vasco da Gama e prosseguia com o elogio da singularidade da instalação lusitana no Oriente, que ele caracterizava como tolerante e pacífica, por comparação com as práticas posteriores de outras potências europeias. A assistência, formada por portugueses, franceses, ingleses, canadianos, australianos, indianos, entre outros, mantinha aquela compostura protocolar própria deste tipo de iniciativas que funcionam em circuitos fechados, quase sem verdadeiro debate, em que a cortesia é a de se cumprimentar muito os palestrantes, o seu contributo (sempre brilhante ou estimulante ou inovador ou…), cumprir-se a formalidade de uma questão mais ou menos técnica e quase sempre muito específica colocada por um elemento do público, e seguir em frente para o próximo utilizador do microfone. Coisa que comigo funciona mal, sempre com um défice claro nestas coisas do verniz académico. E questionei, chegada a minha vez, o orador sobre essa “singularidade” da presença portuguesa, pois, desde o primeiro momento, o Gama deixou claro que ou lhe arranjavam as especiarias ou descarregaria pólvora sobre Cochim, tendo cumprido a sua palavra até satisfazerem o seu pedido. Ou seja, os portugueses tinham sido tolerantes (e foram-no em muitas ocasiões, mas quase sempre por mero pragmatismo) desde que fosse feito o que pretendiam. Caso contrário, bombarda neles. O que era típico da época e da prática dos que se sentiam mais fortes.

Notou-se embaraço no inquirido, enquanto os sorrisos se espalhavam no rosto de vários participantes indianos (e não só). A resposta foi sendo dada com a lentidão e circunlóquios típicos nestas ocasiões até o “moderador” declarar que o tempo estava esgotado e era mesmo necessário passar à apresentação seguinte. No intervalo, senti-me fulminado por alguns dos presentes, enquanto era cumprimentado pelos outros, os sorridentes.

Pretendia eu com aquela intervenção apoucar a figura de Vasco da Gama e dos seus feitos, nomeadamente da sua viagem de descoberta de uma longa rota até então nunca feita por europeus? Estava a retirar-lhe a aura de um dos obreiros da grande abertura comercial do mundo que marcaria o século XVI? Nada disso. Estava apenas a tentar que fosse feita uma descrição equilibrada dos factos, interpretados à luz dos valores daquele tempo. O Gama fez o que tinha ido fazer, da forma como então era suposto ser feito, de acordo com as circunstâncias. Nos dias de hoje, podemos considerá-lo um “imperialista”, um “militarista”. Em 1498, esses conceitos nem existiam e as práticas que lhes associamos eram consideradas de outra forma, muito mais positiva, heróica mesmo. Devemos esconder isso, recorrendo a artifícios de linguagem, a conceitos contemporâneos, sem explicitar essa divergência de contextos?

A leitura do passado à luz do presente não é algo novo, mas já deveríamos ter ultrapassado essa tentação, em especial se o fazemos de forma selectiva. Porque ouço e leio muita gente a querer derrubar estátuas de “imperialistas” e “racistas” e a rever a História da Expansão europeia, mas não encontro uma vontade equivalente na caracterização de outras sociedades. Ainda me lembro do escândalo provocado pelo filme (certamente exacerbado na sua brutalidade quase demencial) Apocalypto de Mel Gibson, como se fosse ficção a existência de sacrifícios humanos nas sociedades pré-colombianas. Recentemente, foram descobertas centenas de crânios nas ruínas da antiga capital asteca [i], deixando pouca margem para dúvida a respeito destas práticas. Devemos ocultá-las, para não passarmos por produtores de visões “colonialistas”?

Em outras longitudes, estaremos preparados para caracterizar as grandes sociedades e culturas do Extremo-Oriente (China, Japão) como extremamente xenófobas no seu isolacionismo e enorme desconfiança em relação a todos os que não consideravam como seus durante séculos e séculos? Estarão os “purificadores” da História Ocidental, disponíveis para uma abordagem das relações entre os povos asiáticos (como dos africanos) à mesma luz aplicada ao Gama, a Colombo ou a Albuquerque?

E qual é o papel do professor de História perante isto? Perante os seus alunos? Qual é o seu “dever”? Perante alunos de diferentes idades, condições, credos, origens culturais? Procurar apresentar uma verdadeira “História Global”, com origem nos anos 60, em que todas as culturas merecem ser tratadas com igual dignidade, mas também com igual imparcialidade em relação às suas características? Ou fugir aos temas complexos, procurar versões assépticas, para ninguém incomodar, ninguém perturbar, ninguém ofender?

Nem de propósito… como reagir quando os alunos, mesmo muito novos, nos inquirem sobre os acontecimentos no leste europeu? Com toda a dificuldade que isso acarreta, procuro em muitos momentos seguir o que há 2500 anos Tucídides já descrevia como as exigências da sua missão, que era a do “historiador”, tal como ele ajudou a defini-la na prática. Que se aplicam a quem escreve, mas também a quem ensina, História e não tem dela a ideia de uma disciplina que só interessa instrumentalizar de acordo com os sabores e conveniências do dia.

“Deve-se olhar os fatos como estabelecidos com precisão suficiente, à base de informações mais nítidas, embora considerando que ocorreram em épocas mais remotas. (…) O empenho em apurar os fatos se constituiu numa tarefa laboriosa, pois as testemunhas oculares de vários eventos nem sempre faziam os mesmos relatos a respeito das mesmas coisas, mas variavam de acordo com suas simpatias por um lado ou pelo outro, ou de acordo com sua memória. Pode acontecer que a ausência do fabuloso em minha narrativa pareça menos agradável ao ouvido, mas quem quer que deseje ter uma ideia clara tanto dos eventos ocorridos quanto daqueles que algum dia voltarão a ocorrer em circunstâncias idênticas ou semelhantes em consequência de seu conteúdo humano, julgará a minha história útil e isto me bastará”. (Tucídides, História da Guerra do Peloponeso; Brasília/São Paulo: Editora Universidade de Brasília; e Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2001)


[i] “Feeding the gods: Hundreds of skulls reveal massive scale of human sacrifice in Aztec capital”, Science, 21 de Junho de 2018 (cg. https://www.science.org/content/article/feeding-gods-hundreds-skulls-reveal-massive-scale-human-sacrifice-aztec-capital, consultado em 27 de Fevereiro de 2022). Sobre os sacrifícios na cultura Maia, entre muitos outros exemplos, “Death as a human sacrifice awaited some travellers to a Mayan city”, Nature, 17 de Julho de 2019, (cf. https://www.nature.com/articles/d41586-019-02175-6, consultado em 27 de Fevereiro de 2019).