A Arte Da Representação

O ministro João Costa, deixado à vista de todos, sem se disfarçar na sombra de terceiros e mesmo estando sempre a alijar as responsabilidades próprias, demonstra o quanto deturpa os factos disponíveis e a realidade observável, não apenas pelos críticos, mas pelos próprios serviços do seu ministério, quando os estudos não são encomendados às entidades e equipas certas.

É o caso do mais recente relatório do IAVE, que constitui o volume II do Estudo de Aferição Amostral do Ensino Básico 2021, e que apresenta uma sucessão de considerações muito pouco favoráveis acerca do desempenho de um grupo de alunos que ou fizeram toda a sua escolaridade já toda no período costista (os do 2º e 5º ano em 2021) ou a sua maior parte (os do 8º). Se é verdade que as provas de aferição, nesta segunda encarnação, posterior à eliminação às provas finais de ciclo, são levadas a sério por muito pouca gente, a começar pelos alunos que sabem que não servem verdadeiramente para nada (menos os do 2º ano, coitaditos, que nem sequer percebem muito bem o sentido da coisa), não deixa de ser verdade que os dados recolhidos levantam muitas reservas sobre a natureza de um “sucesso” que o ministro não se cansa de proclamar a todos ventos e cantos do país e do mundo (medido pelo grupo de especialistas da OCDE que gostam de vir cá).

Afirma João Costa:

«Temos níveis historicamente baixos de abandono escolar precoce, com uma redução rápida e sustentada e temos níveis históricos de sucesso escolar», disse, acrescentando que «não fazemos este percurso a menorizar as aprendizagens; fazemo-lo com o mote de sermos cada vez mais exigentes naquilo que é a qualidade das aprendizagens».

João Costa referiu também que as escolas propõem «um currículo muito mais desafiante e ambicioso, em que ensinam não apenas coisas que se aprendem e se sabem, mas também o raciocínio, a resolução de problemas, a capacidade de pensar criticamente e de criar».

O problema é que isto não é verdade e é o próprio IAVE que o demonstra, usando os dados dos alunos que já experimentaram este maravilhoso e desafiante currículo e muitas das inovações e flexibilidades introduzidas desde 2016 e, em especial de 2018. Claro que depois sobra sempre para o “trabalho em sala de aula” a resolução das carências verificadas, não se questionando se é isso que as orientações superiormente delineadas nas “aprendizagens essenciais” e no inefável PASEO aconselham ou sequer permitem.

Que “os alunos do 2.º ano têm dificuldades em fazer sínteses de textos” não será novidade, pois nem sequer é suposto que o consigam fazer quando mal aprenderam a ler, levando com os anos da pandemia em cima. Agora as insuficiências verificadas nos alunos do 5º e 8º ano são bem mais problemáticas e contrariam de forma evidente o discurso fantasista de um ministro demagogo e que retorce a realidade à medida dos seus preconceitos.

Claro que a primeira escapatória é a de lançar a responsabilidade para os professores e recomendar “mais formação”, em especial a que é dada por quem quase não tem qualquer experiência de trabalho em sala de aula com alunos. A segunda é dizer que a culpa é da pandemia.

E a solução maior, claro, acabar com tudo aquilo a que se possa chamar “exame” ou aferição externa das aprendizagens com impacto na progressão dos alunos. Há que manter a populaça ignorante, mas ao menos que isso não dê muito nas vistas.

Há Quem Diga Que Tenho Uma Visão Alarmista Das Coisas…

… mas hoje, uma jovem colega contratada que para ter um horário decente tem de estar numa escola de Lisboa e na minha, dizia-me que o desempenho dos alunos do 8º ano dessa outra escola é bem pior do que o apresentado pelos da minha, chegando a demorar quatro vezes mais tempo [palavras dela] a fazer a mesma tarefa (e não é que fique melhor). E eu fico a pensar que, afinal, isto anda muito pior do que eu pensava, só que a propaganda anda forte, mas não se devia recomendar.

Mas Não Foi Isso Que O Shôr Ministro Disse!

Nova análise do Iave aos desempenhos das provas de aferição do 2.º, 5.º e 8.º ano de escolaridade dá conta de que fragilidades tendem a perpetuar-se.

Mas ele disse, ainda há pouco tempo, que:

Logo no início da sua intervenção, o ministro João Costa lembrou que Portugal apresenta hoje níveis “historicamente baixos” de abandono escolar precoce e “níveis também eles históricos no sucesso escolar”, referindo que desvalorizar o trabalho que a escola tem vindo a empreender, é estar não só a “menorizar as aprendizagens”, como a pôr em causa o “avanço proposto pelas escolas de um currículo muito mais desafiante e ambicioso”.

O Que Se Vem Perdendo

É um processo que se vai notando, quando aplicamos “instrumentos de aferião/montorição/avaliação” das aprendizagens com uma estrutura similar ao longo dos tempos. Percebe-se onde se verifica a erosão das capacidades em ternos de atitude, autonomia e capacidade de superação, mais do que dos conhecimentos, dos alunos. Não é coisa da pandemia, pois vem de há mais tempos e tem sido cumulativo o efeito. Nos miúdos do 2º e 3º ciclos do Básico (mas em extensão pelo Secundário) nota-se uma crescente dificuldade em gerir o tempo, em tentar ultrapassar a mais pequena dificuldade sem estar imediatamente a pedir “muleta”, a não utilização da informação recebida (posso escrever “memória” sem que me chamem antiquado?) em novas situações, em achar que o que estão a fazer tem ganhos para o seu futuro, académico e não só. Temos um “núcleo duro” de alunos que pelo seu perfil individual (ou social) mantém um desempenho acima da média e depois temos uma crescente descida dos “médios” para aquilo que está abaixo de um padrão mínimo desejável, mesmo pela bitola das “aprendizagens essenciais”.

A “classe média” mas escolas está em profundo declínio e, ao contrário das efabulações de um ministro perdido no labirinto dos seus preconceitos, cada vez os professores de adaptaram a trabalhar com alunos “não-bons” e a ajudar os políticos a produzir “sucesso” para mostrar lá fora e cá dentro. Em média, os alunos não aprenderam mais, nem sequer as aprendizagens foram mais significativas ou se desenvolveram competências novas e “do século XXI” para além de um verniz muito fino. Daí que se usem tantas artimanhas teóricas ou legais para continuar a alimentar um sucesso que se diz ser obtido sem ceder nas aprendizagens, ao mesmo tempo que se apresentam e implementam planos de “recuperação das aprendizagens” numa completa mistificação, disparada em vários sentidos.

O que observo com turmas até bastante razoáveis é que se eu usar um “instrumento de [ver acima]” equivalente ao que usei há 4 ou 8 anos para “aferir/monitorizar/avaliar” uma determinada aprendizagem, existem dois fenómenos (entre outros) que saltam à vista: uma maior falta de autonomia na resolução das tarefas e a necessidade de muito mais tempo para as conseguir completar, quando pura e simplesmente não desistem de o fazer. Adicionalmente, o triunfo prático das teorias menorizadoras da memória, porque se podem conhecer todos os heróis e vilões das séries de anime e os jogadores de futebol de trás para a frente e de baixo para cima, mas é inútil esperar que, no fim do 6º ano, a maioria recorde conceitos aprendidos no 5º ano ou tenha achado que deveria mantê-los presentes para posterior utilização.

Apliquei hoje uma versão bem pálida do que seria uma ficha global de final de ciclo (6º ano) a duas turmas e foi ver a multiplicação de questões por não tentarem sequer ler as perguntas ou entendê-las e precisarem de orientações quase directas para entenderem o que estava em causa (apesar de terem sido feitas tarefas similares nas aulas ao longo dos dois anos), a incapacidade de resolver a prova em 90 minutos (quando antes apenas 2-3 alunos por turma o não conseguiam fazer) e – mesmo tendo sido explicitada a estrutura da ficha e os conteúdos que seriam abordados – o quase total desinteresse em estudar/relembrar matérias dadas há mais de duas semanas.

Ao contrário de algumas opiniões que se destacam pela imbecilidade, este tipo de resultado desgosta em primeiro lugar quem fez a prova e a vai avaliar (classificar?), pois sente que levou mais de 350 aulas (se contar os tempos desdobrados em turnos) a desenvolver um trabalho que sói não é inglório porque – claro! – ainda há alun@s que mantém uma atitude de empenho, curiosidade, brio e prazer pela aprendizagem que dependem mais das suas características individuais do que de qualquer determinismo social.

Amanhã, serão necessários mais uns 30 minutos para completar a prova, pois poucos foram os que concluíram a parte final, de produção escrita. À qual impus muito poucas exigências e nem sequer coloquei número mínimo de linhas ou palavras, que é para não ter a folha polvilhada de algarismos (há quem chegue a numerar palavra a palavra). Apenas pedi que escolhessem para continuar, mantendo a tipologia e registo, um de três mini-textos que apareceram num exercício anterior da ficha. Que usassem maiúsculas, pontuação e fizessem parágrafos. Porque já isto quase parece exigência de professor que só está preparado para “bons” alunos quando não passa do mínimo dos mínimos ao concluir seis anos de escolaridade.

Acho eu.

Mas estou envelhecido.

E repito: a pandemia pode ter acelerado a descida, mas a bola de neve já vinha a escorregar há algum tempo. Inverter isto – em vez de os mascarar com vias rápidas para a conclusão dos vários ciclos de escolaridade e acesso a cursos de segunda linha em universidades e politécnicos em dificuldades – demora muito tempo e não vai lá com planos e formações coordenadas por cortesã(o)s do regime.