Afinal… De Quem É A Culpa Da Falta De Informação E Fiscalização?

O ME gosta muito de lançar anátemas sobre alguns temas ou “problemas” (já o fez com a falta de professores, algumas mobilidades), mas a verdade é que foge às suas responsabilidades de regulação do sistema. Em vez de enviar “comissários pedagógicos” às escolas verificar se o MAIA anda a ser aplicado, que tal usar a minguada IGEC de um modo mais útil para o interesse público?

A “culpa” é mesmo (só) dos rankings?

Ainda Há Quem Se Mexa

Segue-se um pedido de parecer ao CG feito por uma colega que se sentiu lesada pelo horário atribuído. Contrariamente a quem acha que todos os CG só têm um papel decorativo, foram desenvolvidas diversas diligências e elaborado o parecer em causa, de que mais abaixo colocarei um excerto.

Sou docente do quadro do nosso agrupamento, grupo 500, Matemática, com 60 anos de idade.

Como tal, a componente letiva a que estou obrigada no horário é de 14 horas, pois tenho direito, segundo a legislação em vigor, a 8 horas de redução da componente letiva, direito consagrado no Estatuto da Carreira Docente, artigo 79º.

No horário que me foi distribuído no início do ano letivo, o serviço atribuído nessas 8 horas de componente não letiva era codjuvação em sala de aula às turmas do 12º ano, duas horas semanais por turma. Em reunião com o nosso diretor e a representante do meu grupo de recrutamento, reclamei, por considerar que me estava a ser atribuído serviço letivo na componente não letiva, em desrespeito do consagrado no estatuto.

Foi-me dito que o serviço era apoio a alunos, embora decorresse dentro de sala de aula, e, como tal, estava dentro da componente não letiva. Posteriormente recebi um novo horário em que a designação« coadjuvação» fora substituída pela designação «apoio».

Fiz uma reclamação por escrito, à qual o nosso diretor respondeu, dizendo que o serviço em causa se enquadrava no ponto 3 alínea m) do artigo 82 do ECD. Ora, a alínea referida diz «apoio individual a alunos com dificuldades de aprendizagem», o que não é o caso: o apoio não é individual, pois estou presente na sala de aula e solicitada por qualquer aluno que o necessite, nem nenhum dos alunos de qualquer das turmas tem dificuldades de aprendizagem diagnosticadas. (em anexo coloquei a parte do estatuto onde se encontra este artigo)

Mais ainda, é esta a interpretação dos sindicatos da Fenprof, que convocaram uma greve ao sobretrabalho, que abrange, tal como indicado nos pré avisos entregues, «eventual serviço letivo que ultrapasse a componente letiva a que o docente esteja obrigado» como sejam «atividades de coadjuvação e de apoio a grupos de alunos». (em anexo coloquei parte da página do pré-aviso onde se encontra referida esta situação).

Além disso, a decisão de pôr estes apoios no meu horário na componente não letiva enferma também de falta de coerência, uma vez que há colegas deste agrupamento, e até do meu grupo de recrutamento, que têm um serviço semelhante ao meu e que, pelo menos nalgumas horas, está enquadrado na componente letiva. Ou seja, além do desgaste físico de ter de passar 8 horas semanais dentro de uma sala de aula, para além do horário que deveria efetivamente cumprir, sofro também o desgaste psicológico de ter de o fazer por uma decisão que além de desrespeitar a lei me parece arbitrária.

Continuando convencida de que o horário que me foi atribuído é ilegal e desrespeita um dos meus direitos consagrados no estatuto, o direito à redução da componente letiva, tomei outras diligências: recurso hierárquico, denúncia à Inspeção geral de Educação e apelo ao Provedor de Justiça. Até ao momento, nenhuma destas diligências teve resposta, a não ser a confirmação de recepção.

Sendo que esta decisão foi tomada pelo nosso diretor, sem ter sido a isso legalmente obrigado e sem esta decisão ter sido ratificada hierarquicamente, apesar das reclamações que fiz, sabendo embora que a distribuição do serviço docente é da competência e da responsabilidade do diretor, entendo que devo fazer um apelo ao Conselho Geral.

Apelo a que, no desempenho das suas competências, o Conselho Geral emita um parecer ou recomendação sobre esta situação no sentido de, no próximo ano letivo, os apoios a grupos de alunos e coadjuvações, a existirem, sejam enquadrados na componente letiva de todos os docentes a quem forem atribuídos, e que na componente não letiva seja distribuído a todos os docentes serviço efetivamente não letivo.

Respeitosamente,

Fica agora aqui a parte substantiva da acção do CG deste agrupamento de escolas. A mim, em particular, há uma parte que diz muito, pois corresponde ao reconhecimento de uma competência ao CG que, em outros tempos, os serviços do ME se eximiram a reconhecer explicitamente, remetendo para a lei. Que eu tinha razão na interpretação que fiz altura 😀 eu já sabia, pois sei ler e interpretar uma lei.

(…)

Domingo

A publicação dos rankings levou a diversas trocas de opiniões e argumentos com gente amiga que tem uma posição diferente da minha há muito, mas com quem é possível renovar o debate sem cair apenas nos lugares-comuns do costume, mesmo se essa é a tentação da maioria dos comentários críticos nas redes socias. Neste caso, vou concentrar-me no aspecto que passou pela associação da crítica à divulgação de rankings às teses desenvolvidas por Michael Sandel no seu livro A Tirania do Mérito, ao longo do qual explicita, em mais páginas do que o necessário para compreendermos a tese sem nos entediarmos com a insistência, a sua rejeição dos ideais meritocráticos, que ele apresenta como base de uma forma de legitimação da desigualdade, da hierarquia e da desvalorização de uns indivíduos em relação aos outros, através da comparação dos seus desempenhos em determinadas áreas mais ou menos valorizadas em dado contexto histórico. A tese é mais elaborada e contempla a crítica a diversas variantes da meritocracia, devendo muito à obra The Rise of the Meritocracy (1958) de Michael Young, embora pudesse ter ganho mais consistência (e menos redundâncias) se tivesse lido um pouco do que Bourdieu escreveu sobre temas conexos ou mesmo a obra L’Inégalité des Chances (1979) de Raymond Boudon, já para não ir a The Status Seekers (1959) de Vance Packard.

Mas passemos ao argumento central que passa pelo que Sandel e seguidores consideram ser o mal original da “meritocracia” nas sociedades contemporâneas, ou seja, por levar ao exacerbar da competição entre os indivíduos para atingirem o “topo”, seja do poder político, do poder económico ou da vida académica, deixando para trás o que ele designa como “bem comum”. Antes de mais, Sandel acaba por recusar todas as variantes da meritocracia, incluindo as que promovem a redistribuição das recompensas desiguais (até o Rawls leva umas belas cabeçadas) de acordo com os “méritos”, deixando-nos sem qualquer alternativa credível que não seja uma formulação vaga em defesa de uma “igualdade” global que tem tanto de mítico como a boa e velha “sociedade sem classes”, que deu no que sabemos. Nesse aspecto, também me fez lembrar as partes em que Tim Harford descreve um sistema “ideal” de economia de mercado no seu The Undercover Economist, embora com a vantagem deste assumir o carácter irrealista e utópico de tal idealização.

Vamos lá por partes:

A meritocracia, como Sandel reconhece, surgiu como alternativa ao governo “aristocrático”, definido por grupos sociais praticamente estanques e em que o privilégio, resultante do nascimento, fechava por completo o acesso ao topo a quem não fizesse parte de um grupo restrito de famílias, que se reproduziam no poder ao longo do tempo. No entanto, Sandel considera que essa mudança, trazendo um potencial de esperança de mobilidade ascensional aos indivíduos, trouxe consigo o lado negativo de corroer a auto-estima dos não vencedores, dos que não conseguem protagonizar uma alteração positiva do seu estatuto. Sandel chega ao ponto de considerar que aquilo que podemos considerar “estabilidade” das sociedades não meritocráticas provocava menos ansiedade e estados depressivos (Alain de Botton anda também por aqui) em todos os que, sabendo o seu lugar (fixo) na sociedade, não ficavam frustrados por permanecerem na base. O que é um argumento que me custa bastante a digerir e acho que o deveria ser ainda mais para quem defende uma sociedade aberta, liberal, democrática, republicana e laica, já agora.

Porque, com defeitos e qualidades, aquilo que se entende por “meritocracia” – e a competição que lhes está associada entre indivíduos e grupos – está na essência do que é a democracia, o liberalismo político e a própria lógica da ética republicana do acesso e exercício dos cargos de governação. A Democracia é o sistema que permite a disputa eleitoral em busca dos “melhores” governantes (pensemos o que pensarmos do seu estado actual) desde Atenas e da Roma Republicana, através da comparação dos “méritos” dos candidatos existentes. O Liberalismo, na sua acepção política iluminista que está na base das revoluções anti-absolutistas, baseia-se no princípio inalienável da liberdade individual de procurar alcançar o “melhor” possível para si e os seus (o que até podemos considerar como “felicidade”, outro conceito típico dos iluministas), sem que essa liberdade esteja limitada pelos tais privilégios (ou falta deles) de nascença. E a República é a forma de governação, com base no mecanismo “competitivo” das eleições, que postula a rotatividade dos ocupantes de todos os cargos políticos e de uma ética do seu exercício que, pelo menos na pureza dos ideais, renega liminarmente o nepotismo clientelar.

Eu compreendo a atracção por associar a “meritocracia” apenas a uma deriva neoliberal exacerbada, que parece alimentar-se e em simultâneo reproduzir de forma crescentemente dramática, as desigualdades, que serão legitimadas pelos tais mecanismos de “comparação” entre os méritos (ou “talentos”) individuais. Mas isso é muito simplista e parece ignorar a possibilidade de não se definir apenas um tipo de “mérito” ou uma forma de o avaliar e de em vez de “desigualdade”, vertical e hieráquica, adoptarmos uma lógica de “diferença” horizontal, que até está dentro do mesmo espírito do tempo que vivemos (cf. The World is Flat de Tomas Friedman ou o mais antigo The Horizontal Society, de Lawrence Friedman – apelido igual, autores diferentes).

Compreendo também a sedução que muitos podem sentir por não se publicitar que os indivíduos não têm todos as mesmas capacidades nas mesmas áreas, académicas no caso dos rankings, em nome de uma ilusão de “igualdade”. Mas, mais do que uma idealização irrealista, sem sustentação na realidade humana, essa crença num estado natural de não competição é negada pelos próprios mecanismos da evolução dos seres vivos e das sociedades humanas. O “progresso” nasceu da competição, da concorrência, da busca de soluções “melhores”, mesmo que não consideremos que foram sempre as “certas”. Há quem não perceba que essa espécie de mítica comunidade primordial, onde todos têm o mesmo valor, é a base de todos os projectos político-sociais que desaguam em distopias. A indiferenciação não é libertadora, muito pelo contrário. Corresponde à anulação dos indivíduos, diluídos numa massa onde todas as cabeças são cinzentas, nem sequer umas mais escuras e outras mais claras. Pior mesmo só defender a ignorância em relação às diferenças, em tempos nos quais- paradoxalmente – se aceita o direito à afirmação de todo o tipo de identidades, ditas “alternativas” à norma dominante.

Talvez fosse boa ideia pensarmos que tudo isto está ligado, mas não da maneira que pode parecer a uma primeira vista. As aparências iludem. Assim como as boas intenções têm povoado mais o Inferno do que o Céu. Até o próprio Marx admitiu, n‘O Capital (cap. 7, secção 2), que “o caminho para o Inferno está pavimentado de boas intenções”.