Todas as épocas ou períodos históricos tiveram as suas peculiaridades e paradoxos, não é coisa nova. Mas ao vivermos num dado contexto, é natural que se sintam mais os que nos rodeiam, aqueles que sentimos instalar-se de forma insidiosa num quotidiano em vale tudo e o seu contrário, como criticar a discriminação das designações identitárias que se acham ofensivas, mas depois arranjar categorias em crescendo para as identificar e marcar as suas diferenças. Assim como vale uma enorme de encenação de oposições e alternativas políticas, em que tudo depois se mistura e equivale, como escreve hoje António Barreto. Temos pessoas hiper-rigorosas na definição de conceitos mas que depois tudo relativizam e equivalem quando isso lhes interessa, sendo evidente o caso da guerra na Ucrânia, em que se chega a debater se é uma “guerra” ou não, se existiu “invasão” ou uma “operação especial”, mas depois se mistura tudo, como se não existisse invasor e invadido, agressor e invadido, como se um ataque militar concreto com ocupação de território fosse equivalente a um receio imaginado de uma proximidade. Com a pandemia e as vacinas já tínhamos experimentado esta relativização do que será o “conhecimento”, do que devemos admitir como “ciência”, recuperando teses que se pensavam quase enterradas no ridículo da História da Ideias.
O problema é que a erosão dos valores em grande parte das sociedade democráticas liberais, com o acompanhamento do discurso sobre a irrelevância da busca da “culpa” (ainda há dias vi um psicólogo na televisão a explicar de forma beatífica que a busca da culpa não facilita a cura), conduziu a uma situação que em vez de se identificarem com clareza consequências em tempo útil os culpados dos erros da governação e dos negócios, se passou para a crítica do próprio sistema democrático como responsável pelas suas más práticas. Agora, fruto de leituras apressadas e superficiais de um livro da moda em alguns ambientes intelectuais, critica-se a meritocracia como responsável pelos problemas de auto-estima e depressão de quem não tem “sucesso”, não fornecendo alternativas credíveis e ignorando por completo que as situações individuais (ou de grupo) que potenciam os estados depressivos, de ansiedade ou mesmo pânico, atingem de forma por vezes mais intensa pessoas com evidente sucesso (o caso de Andrew Solomon é dos mais significativos, quer na sua singularidade, como na pesquisa que desenvolveu sobre o tema). E determina-se uma inclusão por decreto que todos sabemos ser meramente retórica. E fala-se muito em equidade e justiça social, quando à vista de todos, no dia a a dia, se sabe que isso é cada vez mais uma mera mistificação política.
Sim, há momentos na História em que se nota uma maior desorientação nas sociedades e o mundo ocidental atravessa um deles, sem margem para dúvida. A incerteza e insegurança nasce, não exclusivamente mas em grande parte, de um discurso político sobre o “século XXI” que sublinha os traços mais voláteis dos tempos, para justificar medidas que precarizam e desregulam o mercado de trabalho e o funcionamento dos serviços públicos. Se a chamada “direita liberal” foi desenvolvendo esse discurso de forma consistente desde o início dos anos 80, a pseudo “esquerda da 3ª via” aderiu a ele de braços abertos desde meados dos anos 90. quanto aos “radicais esquerdistas” já vimos, em diferentes momentos, que em termos organizacionais preferem adaptar-se às circunstâncias para ganharem umas migalhas do que serem coerentes. O que deixou um largo campo aberta à uma “extrema direita” que vive da confusão entre os desmandos e negociatas dos governantes e políticos do centrão e a natureza do regime democrático. Assim como os demagogos pretensamente em busca de uma “utopia” – na área da Educação sempre existiram, mas ao menos há umas décadas pareciam sinceros – aproveitam as crescentes desigualdades para justificarem uma ideologia da indiferenciação para os 99%, como se o sacrifício da classe média permitisse reconstituir uma mítico proletariado perdido, só que agora mais domesticado e anestesiado por gadgets low cost.
A frustração, a depressão, a apatia, nascem da sensação de se ter perdido o controlo sobre a definição do futuro e da própria vida (há muito material a esse respeito, ficando por aqui e aqui apenas breves introduções ao tema). O que acontece quando a governança se fecha sobre si mesma em práticas endogâmicas. De meados do século XVIII para cá isso deu força a ideologias revolucionárias, crentes na possibilidade do progresso graças à capacidade humana para melhorar a sua vida, através do controlo do meio envolvente (natural, social, político). No presente está a conduzir à apatia ou a aproveitamentos demagógicos de quem apenas quer o seu lugar à mesa do poder estabelecido. A apatia é tão fomentada pelos tecno-políticos cinzentões, como pelos homens providenciais que apenas querem o “povo” atrás de si, sem contestar o “chefe”. De Sócrates a Ventura passou-se pouco mais de uma década. Um agravou de forma quase irremediável a crença no “modelo”; o outro limita-se a aproveitar a incapacidade de regeneração e auto-responsabilização dos que vieram depois do “engenheiro”. Pelo meio, andam os vendedores de felicidade, versão cosmopolita new age ou multicultural, tipo ubuntu.
“Há sempre alguém que resiste. Há sempre alguém que diz não”!
De facto, a guerra da Ucrânia é de uma enorme simplicidade. Só existe invasor e invadido. A história que se lixe, o contexto é uma treta, os planos de décadas para a guerra tb não existem, a NATO não tem nada a ver, a paz é sempre apresentada como impossível e as” propostas de desanuviamento escorrem das secretárias das chanclarias”. Nada mais simples (simplório?).
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Quando o Paulo refere que “temos pessoas hiper-rigorosas na definição de conceitos mas que depois tudo relativizam e equivalem quando isso lhes interessa,” bem conpreende o sentimento generalizado entre os professores. O relativismo interesseiro, neste momento, é omnipresente…
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O “relativizar” tornou-se um anátema nos tempos que correm, em termos políticos e comunicacionais.
Einstein, no ampo da física e da ciência, demonstrou que o espaço e o tempo deixam de ser absolutos e passam a ser relativos.
Ainda cancelam a teoria.
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Ainda bem que há quem mantenha uma saudável ligação entre a Física e a vida comum.
Mas, por exemplo, o espaço e o tempo “não deixaram” de ser absolutos e “passaram” a ser relativos.
Porque sempre o terão sido, mesmo antes da criação humana das categorias de “tempo” e “espaço” que, em boa verdade, em si mesmas não existem. Provavelmente (olha a piscadela à teoria quântica), existe apenas movimento. De partículas, de ondas ou de algo que as combina. Se vamos por esse caminho, ao menos que façamos com um relativo rigor.
No entanto, se me perguntar como vai do Rossio ao Marquês e eu responder que são seis e cinco da tarde é capaz de achar que eu estou a gozar quando, quiçá, estou apenas a “relativizar” a linguagem.
Mesmo se o que escrevi é sobre a ambivalência dos que escolhem uma posição conforme as circunstâncias, o tal “relativismo interesseiro” a que se refere o Jorge. E ainda bem que eu tenho andado a escrever sobre questões (MPD, gestão escolar, teorias curriculares e pedagógicas algo requentadas) que me “interessam” apenas no plano teórico e não prático. Caso contrário, ainda poderia pensar que era uma picadela do género… “ahhh… és contra o modelo de gestão escolar, mas andas a fazer o curso de administração escolar” ou “mas aceitaste um cargo na direcção”. Ou ainda… ah, pois, és contra as novas regras da mobilidade, porque te afectam directamente, pois estás farto de as usar.
Ufa… ainda bem que não se trata disso.
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“Ainda bem que há quem mantenha uma saudável ligação entre a Física e a vida comum.”
E eu nem uso o GPS!
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Eu também não… até porque se o espaço é todo relativo, em vez de ir dar à Betesga, acabava no Poço do Bispo 😀
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A parte humorística ajuda-nos a manter a perspectiva. Por isso, não esquecer efeito borboleta, afinal a teoria do caos está instalada. Por falar em ciências relativamente exactas… 😉
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Só é pena que os avisos do Chomsky não tenham sido levados mais a sério. Agora, quando vêem o presidente russo a ironizar na justificação das suas acções, queixam-se que queriam uma ordem internacional baseada em regras. É capaz de o vir a ser. Já as regras podem diferir de imperador para imperador e de pirata para pirata. Para Chomsky não era complicado perceber nem era preciso grande aparelho conceptual para explicar (a importação dos conceitos das ciências ditas exactas para as ciências ditas sociais deu sempre mau resultado). O método baseava-se em medir o afastamento entre os discursos proferidos e os actos praticados, compararando a aplicação de diferentes critérios a situações similares.
Vale pois, como sempre, a lei do mais forte. Aos mais fracos restará tentar inverter os valores dos quais só se lembram quando estão em sarilhos. Um paradigma com 2000 anos de sucesso relativo.
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