Mas vivo em Portugal tal como ele é e não num de fantasia em que temos gente a criticar a meritocracia, quando ela se aplica aos outros. Gente que desvaloriza as acusações e denúncias de nepotismo, porque acham que os contratos que conseguem são sempre graças a amigos virtuosos. Que nos diz que o mal é falar dos abusos e não os abusos em si. Que a vergonha não é roubar é dizer que há quem roube.
Eu gostava de viver num país de corrupção mínima, mas vivo num país que continua pobre, que nunca conseguiu sair verdadeiramente de uma economia dual ou “subterrânea”, como a definiu, há décadas, Villaverde Cabral, só que a informalidade dos pequenos negócios semi-clandestinos de outrora passou para a esfera dos negócios do Estado ou para esquemas paralelos, que se dizem não ser ilegais, mas todos sabemos serem profundamente imorais. E embora tecnicamente se possa achar que o tipo que vai à garagem fazer uma revisão mais barata sem factura equivale ao que consegue um contrato do Estado com ajuste directo, porque se dividiu a coisa por duas ou três parcelas com valores abaixo do limite legal para concurso público, há uma diferença de escala substancial no rombo final nos dinheiros públicos. A “economia dual” é uma espécie de fatalidade, a par da corrupção, em sociedades pobres e com fortes índices de desigualdade nos rendimentos.
Podia ser diferente? Podia.
Deveria ser diferente? Devia.
Mas não é, lamento informar-vos. A realidade realmente “desafia” as crenças sobre uma generalizada e beatífica bondade humana. O que chateia é, tantas vezes, ver gente a enlamear- se por tão pouco, pois até parte dos nossos sacanas é de uma deprimente falta de visão.
Reparem que a conversa sobre os dinheiros da “bazuca” desapareceram do debate público no momento em que a rosa ficou maioritária e a laranja se voltou a acomodar à situação de parceiro de negócios. E rapidamente se perceberá que quase nenhum desse dinheiro se verá no “terreno”, porque ficou pelos “oleodutos” que conduzem a maior parte das verbas para os intermediários adequados na sua distribuição.
Eu também gostaria de viver num país onde tudo serve para negociatas, de golas antifumo a vistos dourados, passando por gente que mal se apanha em lugar de poder meter a mão (seja um director de museu presidencial, seja chefe de gabinete ministerial, seja autarca que formalmente não autoriza determinada obra, seja consultor que usa informação privilegiada, embora sem que se consiga provar com rasto documental, seja tanta outra situação), mete a mão até onde pode.
Há quem goste de se mostrar moralmente superior ao dizer que assume que todos são honestos, enquanto outros se horrorizam perante fundadas suspeitas sobre a gestão de proximidade dos recursos humanos (e outros) das escolas. Mas ou são muito ingénuos – o que duvido – ou vivem num mundo de fantasia – e então arranjem-me do mesmo que eles bebem ou comem ou fumam – ou apenas nos querem fazer passar por idiotas.
Se Portugal poderia ser de outra forma, ter quebrado este ciclo triste e secular de “cunha, cama ou cartão”? Poder, podia, mas não seria a mesma coisa. Aquele holandês de cabelo azeiteiro e tese plagiada errou no diagnóstico, porque “vinho verde e meninas de afectos remunerados” não retrata plenamente a nossa realidade. Se calhar foi o que lhe ofereceram e ele era mais cerveja e terceira via e desgostou-lhe. Ou achou curto. Provavelmente queria uma adega de Gaia e o convento de Odivelas só para ele.
Andar a clamar contra quem se limita a observar o que nos rodeia e aquilo que acaba por ser um elemento constituinte da nossa identidade, agrade-nos ou não, pode ser um exercício interessante de solipsismo, fantasia ou apenas sonsice, mas tem o problema de ter de, em muito pouco tempo, chocar com uma “realidade desafiante”. E dão-se “inconseguimentos”. Curiosamente, esse estado de negação é que me parece revelar algum desequilíbrio mental e uma evidente incapacidade relacional com este Portugal que só se envernizou para receber os turistas.
Estou a ceder a um errado determinismo, a um fatalismo decadentista? Não estou a ser “positivo” e a “puxar para cima”, a ser “parte da solução”? Por regra, sei que quem adere a esse discurso é porque espera que o “destino” lhe sorria em forma de um contrato ou subsídio atempado.
Bem andava o velho Fialho há mais de um século.
Coitado do Fialho, que deve “andar às voltas” no túmulo… Ou antes, sorte a dele, que está morto — e nós, julgando-nos vivos, é que “andamos às voltas”. Apenas nos falta o túmulo — ou não?!…
GostarGostar
Dr. Paulo Guinote está excelente!
Lido numa penada até me tira o ar!
A realidade num e crua de um país que não passa de um esgoto a céu aberto, tirada a régua e esquadro!
O Dr. Paulo Guinote é o melhor Cronista do Reino de Portugal e dos Algarves!
Obrigado por cada post desde o tempo do Umbigo, o melhor remédio para eu manter a minha sanidade mental!
GostarLiked by 1 person
“A realidade nua e crua”
GostarGostar
Tenho andado a explorar o “Ao desconcerto do mundo” e tanto eu como os putos temos conseguido identificar alguns dos maus dos nossos dias.
GostarLiked by 2 people
Estive a ler o artigo do Tavares e tive vómitos. Note-se que não estou grávido.
Estes liberais de pacotilha e a sua conversa do mérito desagua nisto: as castas ou elite ou lá o que é perpetuam-se assim. É esta a escola do mérito que defendem.
E o que ele diz sobre as universidades estrangeiras e o seu funcionamento foge um ticão à realidade.
GostarGostar
Este Tavares?
https://www.publico.pt/2022/09/28/opiniao/opiniao/universidade-catolica-benemerita-descendencia-2022191
GostarGostar
Pois, esqueci-me do filho da Sophia.
GostarGostar
Um dia estaremos na cauda da Europa. Falta pouco….
Mal governados, onde o factor C é o verdadeiro certificado de habilitações vamos agonizando lentamente …. lentamente…
GostarGostar
Assim aldrabadamente e demagogicamente, numa dicção tão aldrabada como os aldrabados argumentos, se engana quem gosta de ser enganado ou prefere não abrir os olhos.
Há caçadores de furacões nas américas, mas por cá há caçadores de unicórnios!
Atabalhoado: “vamos construir aeroportos “, “iniciámos um projecto importante para resolver o grave problema da saúde mental”, “estamos a resolver o gravíssimo problema da educação contribuindo para o sossego e bem-estar dos professores que não mais precisarão de andar de casa às costas”… MAS O que é isto? Huumm?
Há é a criação de mitos aldrabados, incompletos, truncados e manipulados que mediática e virtualmente se empolam para depois se encetar mais um talhão de negociatas e redes da famiglia de comensais.
Desde quando estes tipos se preocupam com a casa às costas, ou as costas açoitadas dos professores? O que fizeram foi claro: inventaram uma compaixão súbita para continuarem a matar professores, matando a democracia, arranjando mais umas negociatas e cunhas para os amigos.
O cúmulo do cinismo!
E assim se descredibilizam as instituições e se contibui para a subida do Chega pra Lá. Mas isto não interessa nada…o que se diz sobre buscas e corrupções é mera espuma dos dias, o importante é make offs!
Tenho vergonha de um país que não vê para lá da demagogia!
Falhei como professor, não consegui que este povo fosse capaz de discernir. Ou que, pelo menos, deixasse de querer fazer parte da seita do xico espertismo institucionalizado. Não consegui educar para a higiene. Mea culpa, mea culpa!
GostarGostar
Portugal perdeu lugares no ranking do combate à corrupção. A corrupção é, infelizmente, uma realidade com valores indesejáveis e com impacto no desenvolvimento do país. Todos sabemos disto e, talvez também por isso, somos dos povos que menos confiamos nos outros.
Querer implementar políticas que funcionam nos países nórdicos, por exemplo, fará sentido se os trouxerem para cá!!
Andamos sempre, muito modernos, a colocar-nos em bicos de pés, mas, apesar dos inegáveis progressos, há muito a fazer para que possamos, realmente avançar no que realmente faz a diferença. Todos nos vão passando e o desnorte do governo em matéria de educação é só mais um a juntar-se aos de uma maioria que se mostra impreparada para enfrentar os desafios, não do famigerado e badalado século XXI, mas os de 2022, 2023… É sempre a mesma história, é pena, e se fosse supersticiosa diria que é destino, mas não é, são séculos de história em que a subserviência se impôs como regra e os espirtos livres uma exceção!
GostarGostar