Uma conversa matinal com uma colega professora, em hora formalmente dedicada a apoiar alunos que acham, ou melhor, têm a certeza de não precisar desse apoio. Colega mais avançada na idade, ali perto das margens da reforma, mas que insiste em levar o seu trajecto até ao fim, apesar do desânimo que se foi entranhando ao longo dos últimos quinze anos, período em que tantos ideais que ainda sobreviviam foram completamente arrasados pela “boa governança” dos recursos humanos em Educação. Colega que não se inclui no lote de quem é suspeito de “padrões irregulares” em baixas médicas que não pratica. Que ainda se esforça por tentar ensinar o que muitos não querem aprender (Matemática), com a legitimação dos teóricos de que as aprendizagens só são significativas ou têm sentido se forem do “interesse dos alunos”, como se ao fim de uma década de vida, já se soubesse o que futuro pode exigir.
Conversa em modo de comparação de estados de espírito. E a admissão de, ao terminar a semana, essa colega se questionar sobre o sentido de voltar na semana seguinte, perante uma realidade que se avoluma na aspereza. Quando o discurso do “envelhecimento”, a par da evidência cronológica indesejada, agravou atitudes de desrespeito quase constante a partir de fora. Quando qualquer “explicadora” ou ocupadora de tempos livres se sente legitimada para dizer aos alunos que “a professora está errada”, mesmo se fez um 12º ano oferecido na base do “sucesso para todos”, nem que seja com 10 valores para despachar as estatísticas.
Respondo que a mim, essa sensação de inutilidade do esforço surge, não sei se pelo contrário, logo a abrir a semana quando, aberta a porta do carro, olho para o declive de acesso ao portão e observo como se evidencia a generalizada falta de civismo no espaço envolvente, por parte daqueles que deveriam a partir de casa dar o exemplo mas preferem exibir a truculência como se fosse um valor e uma injustificada arrogância como se isso compensasse as frustrações de um quotidiano precário e frágil. Do qual se pensa tirar desforço no pequeno mundo da escola, onde a quase todos é permitido descarregar tudo aquilo que, algures, fora dali, são obrigados a calar. Como se a Escola e os professores fossem alvos a abater para equilibrar todas as esperanças que lhes foram tolhidas. Mas, lá saio e faço o meu caminho, a cada 2ª feira, na certeza de dificilmente as coisas ganharem mais sentido do que no final da semana anterior.
A busca de sentido para o quotidiano escolar não é um exclusivo dos alunos, apesar do que algumas auto-nomeadas autoridades na matéria reclamam. Por vezes, com recurso a testemunho seleccionados a dedo à porta das escolas com inquéritos teleguiados. Muito pelo contrário, afirmo eu, que tenho escassa vergonha em admitir que busco um sentido para a vida escolar há mais tempo do que têm de vida quase todos os meus alunos, porventura todos, porque há uns que apenas se inscreveram para cumprir a formalidade de estarem doze anos na escola, mesmo que só lá tenham passado menos de metade, com muito boa vontade contabilística e ainda maior das autoridades que mandam arquivar as sucessivas “sinalizações”.
A perda de sentido da vida escolar tem, para os adultos que por lá andam, o peso acrescido do tempo passado e da consciência da escassez do tempo que resta para ver alguma mudança significativa, na direcção certa. Para os mais novos, essa carga é bem menor, e o horizonte de esperança bem mais alargado, mesmo se ilusório.
Ouvimos e lemos tanta coisa sobre a nossa profissão, sobre o nosso desempenho, sobre a nossa falta de adequação aos novos tempos, sobre tanta necessidade de formação, que a dado momento quase se interiorizam as acusações e se desiste de tentar compreender a incompreensão ou de tentar contrariar, esclarecendo, a ignorância. Aquela mais bruta que desagua na violência das agressões físicas, mas de igual modo a mais insidiosa violência psicológica e até moral de quem exibe pergaminhos académicos de “investigação” e “reflexão”. Não vale a pena, porque do outro lado se ergue um muro imenso de certezas inabaláveis.
Ao nível de alguma parentalidade, já se anda a lidar com uma geração que, em vários contextos sociais, cresceu sem saber lidar com o fracasso das esperanças e, na falta de coragem ou capacidade para contestar os verdadeiros responsáveis pela sua situação, descarrega nos professores as suas incapacidades de “sucesso”, aquele que lhes disseram, anos a fio, que era direito seu. Tudo isto a par de uma elite político-mediática que parece achar que o seu saber, o seu “olhar” externo sobre a Educação e a organização das escolas é mais objectivo e rigoroso, do que o daqueles que lá passam o seu tempo, hora após hora, turma após turma. Uma elite que, lá por ter passado pelas salas de aula como alunos e até eventualmente como docente ocasional, em biscate passageiro, considera que sabe tudo o que há a saber sobre o currículo, o trabalho em sala de aula, a gestão da indisciplina, os valores e atitudes a transmitir no contexto escolar.
Choca-me a forma ligeira, superficial, epidérmica, como há quem consiga ter tantas certezas quando passa o tempo a lançar dúvidas sobre o trabalho alheio. Pior ainda quando isso se passa com um manancial de “especialistas”, que gostam de se apresentar como “cientistas da Educação” de variada especialidade, da economia e gestão dos recursos humanos à organização curricular, em defesa de nichos de mercado que lhes garantam a sobrevivência e relevância junto dos decisores políticos. Gente que repete os mesmos chavões ao longo das décadas, colhidos em leituras dos seus tempos de formação, projectando no presente de agora, presentes de outros tempos, de que ainda não conseguiram curar as cicatrizes. Em alternativa, temos as novas gerações dos seus discípulos que, mal acabaram de sair do aviário académico, já prontamente se apresentam disponíveis para replicar, como “formadores” dos envelhecidos docentes, as sebentas que lhes foram servidas como o pensamento único e belo.
Sim, os tempos mudaram e os professores e o trabalho docente devem acompanhar as mudanças, mas seria interessante que fosse feita uma triagem com algum critério das mudanças a adoptar. Não me parece que o “professor do século XXI” deva ser uma espécie híbrida, combinando o burocrata cumpridor de todas as directrizes superiores com o funcionário do economato escolar.
Tanto discurso sobre a necessidade de formação dos professores para quê, exactamente? Para distribuir e receber manuais escolares, seguindo-se a exigente tarefa de apagar os rabiscos neles feitos para que posam ser reutilizados? Será para isso que se fez uma profissionalização ou mesmo um mestrado bolonhês em ensino? Para registar em tabelas de excel todo e qualquer registo, em forma de descritor, sub-descritor, indicador ou sub-indicador, numa demanda de pretensa objectividade, enquanto se defende uma avaliação “humanista”, “integral”, numa “perspectiva holística” do indivíduo enquanto um todo?
Há sentido no trabalho docente quando a maior parte do tempo é gasta, em actividades de tipo administrativo, sem qualquer vantagem para as aprendizagens dos alunos? Quando isso resultou da transferência para os docentes de tarefas que de modo algum estão no “conteúdo funcional” do seu estatuto profissional, apenas para poupar em pessoal não docente, na sequência da centralização dos serviços administrativos nas escolas-sede dos mega-agrupamentos e da “racionalização” (no sentido literal de aplicação de “rácios”) do pessoal não docente?
Viktor Frankl termina o seu posfácio de 1984, com o título aproximado de “Em defesa de um Optimismo Trágico”, do seu clássico Um Homem em Busca de Sentido, com a afirmação de que “o mundo está em mau estado, mas tudo ficará ainda pior se cada um de nós não fizer o seu melhor”. O problema é que cada vez há mais gente a fazer o seu pior e a obrigar os outros a nivelarem-se por essa sua mediocridade. O que só reforça o trágico em quem busca desesperadamente um sentido para docência reduzida a uma sua triste caricatura, que o pulular de “projectos” e pretensas “inovações” requentadas só acentua.
Um dos maiores disparates que por aí circulam, com origem conhecida, é o de termos “alunos do século XXI” em escolas organizadas como no século XIX, ensinados por professores do século XX. Tomara que assim fosse, pois, que me lembre, no analógico século XX não tinha de fazer nada destas tarefas que só servem para desqualificar a docência como actividade destinada a transmitir pelo menos o essencial do conhecimento humano.
Muito bom. Muito inspirado. Subscrevo.
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Muito bom
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Parabéns pelo texto, Paulo
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Neste momento, a escola é um imenso ATL, um centro de acolhimento para crianças e jovens.
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Sisifo, e de controlo e contenção de delinquentes, porque os centros educativos são muito caros.
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Muito bom, como sempre, mas leio o seu texto e a tristeza surge como efeito espelho…
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Comigo acontece o mesmo…
Obrigada por permitir que não me sinta sozinha, ainda que profundamente desiludida…
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Muito bom.
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Excelente texto, Paulo. Subscrevo- o na íntegra.
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Muito bom.
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Uma descrição bastante clara do que se passa no sistema educatico atualmente.
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Caramba!
👏 👏 👏 👏 👏 👏
Obrigado, professor Guinote.
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Excelente.
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Estavas verdadeiramente inspirado! Tudo o que está escrito deveria ser lido e devia ser motivo de reflexão dos que acham que sabem muito sobre educação!
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Os professores, conforme é dito, cumprem cada vez mais funções para “poupar em pessoal não docente, na sequência da centralização dos serviços administrativos nas escolas-sede dos mega-agrupamentos”. E o que acontece/acontecerá com a municipalização? Fica o tópico para reflexão.
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É isso…
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Excelente texto Paulo, obrigado!
Agora, para outro assunto, que até vem a propósito deste desalento.
Não há uma greve ao sobretrabalho? Não há greve às reuniões intercalares marcadas fora do horário pelo final da tarde dentro?
É que olho à minha volta e só vejo baratas tontas em correria para as reuniões… “Ai Jesus se chego atrasado…” porque levo taotao (digo eu de que…).
O que se passa nas vossas escolas?
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O mesmo. Lastimável. Depois andam pelos “cantos” a lamentarem-se que têm muito trabalho, que estão esgotad@s !!! Será que ess@s professor@s têm, de facto, condição intelectual para ensinar alguma coisa a alguém?
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Obrigada, Paulo.
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