Este Mês, Pelo JL Educação

Há poucas semanas, um governante da área da Educação deu uma palestra numa instituição de formação inicial de professores, a convite de alguém com responsabilidades na instituição. Perante uma audiência que se supõe formada em boa parte por alunos da licenciatura e mestrado em Educação, potenciais futuros professores, o dito governante, pelo menos nos minutos de gravação da sessão a que tive acesso, apresentou a sua tese de que não se deve avaliar a qualidade de um professor ou a sua adequação à função com base na sua média académica ou na graduação profissional (que inclui o tempo de serviço, para além daquela média).

A teoria tem a legitimidade de todas as teorias para ser apresentada, mesmo que esteja errada ou se baseie em pressupostos enviesados. A questão está no público a que se dirige a mensagem. Neste caso, no essencial, está-se a dizer a alunos da formação inicial de professores que a avaliação do seu esforço, do seu trabalho e do seu desempenho ao longo de cinco anos de formação académica não constitui um critério adequado para considerar a sua qualidade como docentes. No fundo, que ma avaliação dessa formação, feita por professores certificados, num curso certificado a decorrer numa instituição reconhecida e acreditada oficialmente, é secundária em relação a algo como o um vago “perfil de competências”, a definir caso a caso, de acordo com o tipo de “projecto educativo” em desenvolvimento num dado agrupamento ou escola. Que a sua futura contratação ou mesmo vinculação ao quadro de uma “unidade orgânica” deverá depender mais do modo como se apresentar a um comité de composição desconhecida e variável, do que ao trabalho que desenvolveu ao longo de dois ciclos de estudos no Ensino Superior.

Pode parecer um disparate, uma completa falta de respeito pela própria instituição e pela sua oferta educativa, bem como pelos próprios formadores dos futuros professores, mas é realmente este o tipo de ideologia e preconceito que se anda a espalhar pela opinião pública – e pelos vistos, pelos próprios meios académicos – acerca do que deve ser considerado como o professor adequado ao “ensino do século XXI”.

De acordo com esta visão das coisas, um professor – e esclareço desde já que uso o masculino por comodidade da formulação e crescente irritação com o imperativo de uma linguagem neutra em termos de género – não deve ser avaliado pelo seu desempenho académico, pela sua experiência profissional, mas sim pela forma como fique bem na selfie ou entrevista feita para o cargo, como se uma escola fosse uma qualquer fábrica ou empresa, em que o patrão recruta quem bem entende, mais ou menos qualificação. Como se fosse uma espécie de assessor ou chefe de gabinete governamental ou autárquico.

Já em Setembro se podia ler, em notícia do Público, que se pretendia “encontrar um modelo que garanta que uma escolha com um perfil de competências seja também objectivo, rigoroso, criterioso”, o que entra em completo divergência com o desejo de total desregulação do concurso de docentes, atomizando-o em concursos locais, municipais ou intermunicipais. Mais grave, pretende-se que a gestão dos recursos docentes das escolas seja feita por uma espécie de conselho (inter)municipal de professores, com poderes para “alocar” os docentes, conforme o tal “perfil de competências”. Não é por acaso que não se esclarece se isso se aplica apenas aos professores que entram no sistema, se também aos que já nele se encontram vinculados.

Este “novo paradigma”, como agora é habitual designar-se qualquer proposta de alteração seja ao que for, corresponde a políticas de matriz neoliberal que é estranho encontrar num governo que se afirma de “esquerda” e defensor de uma Escola Púbica para todos, sendo maior a estranheza por não existir no seu recente programa, aprovado no Parlamento, qualquer referência neste sentido. Ou seja, enquanto no passado se recusaram medidas por não terem sido apresentadas ao eleitorado e à Assembleia da República, agora avança-se com alterações que ninguém sufragou ou validou.

O que está em causa verdadeiramente é o desejo de fragmentar por completo a profissão docente, beneficiando da saída de grande parte dos professores mais antigos e do desânimo de muitos outros que só esperam pela hora de saírem. Com a ajuda de um corpo de directores que, numa boa quantidade, podemos considerar de 2ª geração e que chegaram ao cargo, não na sequência de um trajecto anterior à legislação em vigor de modelo único de gestão escolar unipessoal, mas já de acordo com esse modelo com que, no essencial, se identificam. E todo querem corpos docentes domesticados nas suas escolas e sem capacidade de união e solidariedade em movimentos de contestação colectiva.

Neste objectivo, estão unidos tutela, alguns autarcas e uma proporção indefinida de directores que quando se manifestaram sobre estas mudanças, afirmaram a sua indignação por não terem sido, antes de mais, consultados. E eu não consigo esquecer que há casos que se querem apresentar como “isolados”, mas que são sintomáticos dos perigos deste novo modelo de contratação, vinculação e gestão do pessoal docente, como o daquele director que se apressou a defender um “novo olhar” sobre essa questão, para pouco depois sabermos de que forma no seu agrupamento se “agilizava” a contratação em regime familiar. Garantindo-se o cumprimento da lei, claro, como sempre acontece nestes casos.

Contra este estado de coisas, desenvolvimento a coberto de uma escassez de professores para substituições precárias, há que reconhecer a frontalidade do dirigente da ANDE (Associação Nacional de Dirigentes Escolares) que em declarações ao Público no dia 21 de Novembro apresentou as coisas de modo muito claro, sublinhando que as alterações não se destinam a resolver nenhum problema existente e que “os professores estão desapontados e até zangados [pois] são o único corpo da administração pública a quem não foi contado todo o tempo de serviço prestado no período do descongelamento e os professores do continente são os únicos sujeitos a afunilamentos artificiais na carreira que impedem o seu desenvolvimento profissional e a respectiva retribuição financeira.”

À data que escrevo, talvez por também não terem sido consultadas oficialmente, nenhuma organização parental se pronunciou sobre o assunto. Ficamos sem perceber se também esperam apenas por ter assento num qualquer organismo (inter)municipal destinado à definição do “perfil de competências” dos professores a contratar e vincular. Em especial dos “novos professores” para quem falou o governante que referi mais acima, cujo perfil deve obedecer às exigências dos novos tempos, de submissão hierárquica, flexibilidade laboral e desvalorização do seu saber académico.

Deseja-se que esses admiráveis professores novos, estejam imbuídos de uma formação para o século XXI que deve conter um conjunto de características que já se tornou fácil adivinhar.

O admirável professor novo do século XXI deve ser alguém desprovido de memória, para que não se lembre de tempos em que a independência profissional era algo com alguma substância e em que o espírito crítico não era um chavão demagógico para consumidores de “perfis”.

O admirável professor novo do século XXI deve ser flexível, para que se possa adequar a tudo o que lhe seja exigido, sem pretensões de resistência aos desmandos que lhe sejam impostos e sem qualquer capacidade de contestação dos dogmas que a “boa cartilha” de uma educação falsamente inclusiva lhe apresenta como a única possível.

O admirável professor novo do século XXI deve ter competências transversais, sendo desnecessário e menos contraproducente um saber disciplinar específico, porque isso é desnecessário num tempo em que é mero orientador de aprendizagens mínimas, sem qualquer tipo de avaliação externa consequente.

O admirável professor novo do século XXI deve ser um utilizador entusiasmado das ferramentas digitais, mas numa óptica da utilização pacífica e passiva para pesquisa ou preenchimento de formulários, e não da sua apropriação como um meio de emancipação e muito menos como recurso para reduzir o controle burocrático da sua actividade.

O admirável professor novo do século XXI deve ser adepto das teorias críticas e da visão emancipatória da Educação, mas apenas na perspectiva dos alunos, porque no seu caso deve, antes de mais, ser dócil, colaborativo e submeter-se, sem especial estremecimento de indignação, a tudo aquilo que lhes apresentam como inovação, mesmo se é teoria com cheiro a mofo, laca e muita memória de patchouly.

19 opiniões sobre “Este Mês, Pelo JL Educação

    1. Mas estamos neste momento perante a PACC?
      Na altura escrevi sobre o assunto, para o caso de não ter dado por isso.
      https://ionline.sapo.pt/artigo/336948/quatro-opinioes-sobre-a-prova-de-acesso-a-carreira-docente-?seccao=Portugal_i

      Assinei um manifesto “unitário” e tudo.

      Contra A PACC

      Até fui à “tevesão” e tudo.

      veja-se lá que até andei a ter de “bater” em quem gozou com os erros dos professores na dita prova.

      https://observador.pt/opiniao/investigador-rico-professor-pobre/

      Tenho mais ligações sobre a outra década.

      Agora escrevo sobre esta.

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      1. Paulo , danado. Não há nada que não guarde e, sobretudo, que esqueça. Já somos poucos assim. De facto, somos anteriores à PACC e não esqueço de muitos e muitos contratados , jovens na altura , que pouco se uniam , pouco se apresentavam em reuniões para serem esclarecidos… Agora, muitos estarão em QZP, e com o sério risco de ficarem eternamente no mesmo. Sim, a muita para aqui chamada desunião de professores vem de longe. Contudo, tenho a tal calma e paz que mencionas em outro post. Greve às candidaturas para o oitavo escalão ( quem se lembra disso?), greve à revisão do estatuto que levou a um ECD que subdividia o 7º escalão em 3 momentos ( e havia quem ali tivesse de parar), greve porque se perdeu tempo de serviço e diuternidades que só se se recuperaram faseadamente e em tempo largo, greve aos exames e todos s correrem para a escola porque havia serviços mínimos mas foram todos com medo da falta injustificada. E depois, muitos etc’s.

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      2. Caro Guinote,
        Só estava a dizer que, de uma forma ou outra, querem sempre vexar a classe!
        Não vai de uma forma, arranjam outra!
        Mas a bílis continua activa!
        Foi esse o meu propósito de relembrar a famigerada PACC!
        Não queria diminuir as suas considerações!
        Aliás, subscrevo todas!

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        1. Obrigado, Pedro,

          Mas o problema é que há quem tenha disto uma visão menos longa ou mesmo média.
          Há que, neste momento, não usar relativizações do que está a ser feito, á luz do que fizeram os “outros”.
          Não diziam que estavam mal e que haveria de se “reverter” tudo?
          Afinal, só reverteram verdadeiramente a avaliação externa.

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  1. É como ir a um lar de terceira idade dizer que os utentes só estariam bem se estivessem no seio familiar.
    Ps.
    Crato foi o último ministro que algo fez pela dignificação da profissão docente.
    A “PACC” agora ficará nas mãos de gente que nos odeia (mas pronto, são de esquerda, lol).

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    1. Crato nada fez pela dignificação da classe docente.
      Veja-se a sua entrada gloriosa e a sua saída silenciosa…
      Crato na matemática só destruiu o que levou anos a construir.
      Analisem-se os resultados internacionais …

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  2. Se o que pretendem, é a entrada no sistema de professores recentemente formados/acabados de formar, é melhor que ouçam primeiro o que estes têm dizer. A geração que está agora nos 55-65 pode estar desgastada, mas não se conforma. Quer-me parecer que a geração mais nova não está disponível para “ser colocada ao sabor de um dado perfil”, havendo outras opções.

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  3. “Conselho de Ética quer casas de banho descaracterizadas nas escolas”

    O Cristianinho, da prole do Mija-na-Horta, já avisou que, caso não haja urinóis, optará pelos lavatórios.
    A Tinita quer ser camionista quando for grande e anda a treinar para acertar numa garrafa. Pede que a escola desenvolva, nos cursos profissionais, um projecto de inspiração Tsara/Duchamps para descaracterizar um urinol conformemente às suas necessidades.
    O Fitas quer um programa de protecção de testemunhas para @s alun@s que pretenderem usar anonimamente as WC descaracterizadas.
    O grupo de Educação Física pretende que se descaracterizem as instalações sanitárias de modo a torná-las mais ergonómicas. Passarão a disponibilizar apenas um buraco no chão com dois apoios para os pés em cerâmica antiderrapante e um corrimão lateral fixado na parede.
    O Ministério da Saúde pretende, com um sorriso nas beiças, descaracterizar os corredores das urgências e transforma-los em enfermarias.
    O Governo pretende descaracterizar-se institucionalmente e assumir um cariz mais familiar. Para o efeito, encomendou um organograma, à independente Joana Vasconcelos, que recicle 974 tachos de alumínio.
    A oposição, por muito que recorra à maquilhagem, continua descaracterizada.
    A Comissão Europeia pretende descaracterizar a Europa, enquanto o Tio Sam aprova o maior pacote de legislação proteccionista de que há memória.

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  4. Não sei quem foi esse governante mas uma de duas coisas, pelo menos, acontece: é palerma todos os dias ou nessa palestra foi um verdadeiro idiota. Vejamos porquê. Na realidade o que disse foi: a avaliação dos alunos (dos cursos de ensino e, por conseguinte, de todos os outros) feita nas universidades, muitas vezes por professores catedráticos, é uma verdadeira treta ou quis assumir claramente, e de forma desavergonhada, que em breve qualquer Tiago Cunha da juventude xuxa, licenciado em qualquer bosta de vaca, será preferido pelos autarcas corruptos em detrimento de alunos brilhantes. É com políticos destes, medíocres, incompetentes e, muitas vezes, corruptos que se governa este bananal que depois de chegar à cauda da UE lhes dá o conforto de não ser possível afundar mais.

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  5. Acabou de definir o criterioso perfil de competências que virá a ser utilizado para a seleção de docentes nestas admiráveis escolas novas.
    Não sei se o Costa lhe irá agradecer.

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  6. “(…) porque no seu caso deve, antes de mais, ser dócil, colaborativo (…)”

    Só alteraria uma palavra: “colaboracionista” em vez de “colaborativo”.

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  7. Devo dizer-lhe que é bom saber que fica no “sistema” por mais uns anos! Parabéns por ser quem é!

    Eu comecei naqueles tempos remotos em que não havia professores e ainda estava na Faculdade…por lá fiquei durante doze anos seguidos, por gosto e para retirar de mim a “mácula” . Agora, chegou o tempo de sair. Só mais este ano. Vou “cedo” dizem…

    Poderia ficar mais um tempo? Sim. Mas…nem pensar!

    A “carta ao futuro” é muito incompatível com o meu modo de estar. Sou menos uma…

    Bem Haja!

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  8. Paulo, muito bom 🙌🙌repito-me! Pois! Concordo com as análises do Paulo, revolto – me todos os dias com o que antevi que ia acontecer a este país e tremo pelo futuro de todos. Como limpar esta escumalha apegada ao poder e que destrói o pouco que nos resta, de bom, dia a dia?

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