A leitura das páginas 137 a 145 do “Relatório UTAO n.º 8/2019” (utao-rel-8-2019_pe-2019-23), combinadas com declarações públicas do gabinete do ministério das Finanças e de um secretário de Estado de que eu desconhecia a existência, são de deixar qualquer pessoa minimamente decente com os cabelos em pé por todo o corpo, a menos que tenha optado por um escanhoamento geral.
De acordo com tais declarações o cálculo feito pela UTAO é, e cito, “totalmente arbitrário” e o tal secretário de Estado que alguém deve ter desenterrado, algures, do seu anonimato merecido acrescenta que “quer em termos brutos, quer em termos líquidos a medida teria o valor extremamente elevado e seria a medida com maior impacto na despesa permanente”, o que é uma daquelas coisas que se pode dizer de tudo e nada, por ter muitos advérbios e pouca substância.
Mas o mais curioso (e grave) é que tais cálculos “totalmente arbitrários” foram feitos, de acordo com a própria UTAO apenas com base nos números fornecidos pelo Ministério das Finanças nas suas comunicações de propaganda. Ou seja, o gabinete do MF considera “arbitrário” o que é feito com base apenas nos seus próprios dados. E nesse caso, eu tendo a concordar pois considero que os números divulgados pelo MF são, para além de “arbitrários”, truncados e manipulados para condicionar o debate público.
Mas atente-se no que é escrito no relatório:
Isto significa que a correcção dos valores da propaganda do Governo é feita com base em dados não verificados na origem, pois a UTAO declara ser impossível fazer uma verdadeira auditoria por não ter acesso a “microdados sobre funcionários públicos” que, pelo menos no caso dos professores, existem e estão disponíveis na base de dados MISI@. Ou seja, contas mesmo a sério e rigorosas não são feitas por clara sonegação da informação que o governo tem e não partilha, nem com a UTAO.
O que significa, portanto, que a UTAO “tomou como boas” informações que estão manifestamente erradas, como as projecções de progressões salariais baseadas num total, no caso dos docentes, de 100.000 indivíduos, quando cerca de 20% deles não está em condições de progredir os 2,31 escalões que as notas do MF fizeram circular. E mesmo assim obteve números que revelam a mentira de Costa, Centeno, Santos Silva e tantos outros cortesãos mediáticos.
Ou seja, os valores apresentados pela UTAO, só com base nesse desvio, deveriam ser ainda mais baixos e é bom que se note que, em termos líquidos, reduzem para menos de metade os valores que os governantes mobilizados para a comunicação social, entrevistadores voluntários da causa e comentadores escolhidos a dedo têm apresentado como válidos.
Esta situação é tanto mais grave quanto, por todos os contactos que fiz, os microdados essenciais para contas rigorosas são negados pelo Governo a toda a gente, da comunicação social ao Parlamento. O que é absolutamente inaceitável num regime democrático, liberal, representativo, em que ninguém vota em secretários de Estado ou ministros, mas em deputados.
Ao que parece, o actual PM e a sua entourage (como em outras ocasiões) desconhecem ou fingem desconhecer que a soberania é delegada em eleições no corpo legislativo (Assembleia da República) e não no governo, que emana da conjugação das forças parlamentares, sendo que é o governo que deve explicar-se perante o Parlamento e não o inverso, como alguns pivôs televisivos e articulistas da quarta divisão constitucional querem fazer crer.
Não é aceitável que estejamos a debater um problema sério, grave, de direitos laborais e não só, com base em números artificiais, não verificados e, mais grave, errados mesmo quando tomados como válidos.
Estamos perante Propaganda e não perante Informação. Estamos perante uma completa distorção do Estado de Direito e das regras da Democracia, mas parecem estar quase todos à espera da tarde de amanhã para a selfie do “final de crise”, após abvorrecida e vergonhosa coreografia de (des)acordos ocasionais.