A Andreia Sanches – uma das jornalistas com conhecimento específico na área da Educação e não apenas com vagas ideias – deixou-se seduzir pela ideia da “autonomia” das escolas e direcções para escolherem os seus professores. O tema não é novo, a bondae da ideia parece óbvia mas, como muitas coisas que parecem por demais evidentes, se calhar não é bem assim. Escreve a Andreia no Público:
Não é o mesmo ensinar em escolas situadas em territórios com altos níveis de abandono escolar, onde as crianças vivem em casas sobrelotadas e as famílias fazem contas ao que põem na mesa, ou ensinar em bairros de classe média e média alta, onde os pais dos meninos têm o ensino superior, há livros nas estantes da sala e explicadores que ajudam a preparar os exames. Há professores especialmente talentosos a ensinar nas primeiras, e que investem a sua energia e formação nisso; e outros que são muito bons nas segundas — mas que têm menos talento e/ou formação para contextos potencialmente mais desafiantes.
Que a distribuição dos profissionais seja cega, como em Portugal, quer aos interesses dos docentes, quer às necessidades das escolas, que tantas vezes perdem aqueles que mais fizeram a diferença ao longo do ano lectivo porque as regras assim o determinam, é um tema espinhoso há muito aflorado, mas que nenhum Governo quis debater a sério.
O primeiro parágrafo que transcrevo retrata algo óbvio: nem todos damos para as mesmas coisas. Como professor, há muito empo, numa zona “deprimida” e com imensos problemas sociais, muita “diversidade”, pobreza, etc, etc, já vi chegar muit@s colegas a quem isso aflige e chega mesmo a assustar, percebendo-se a dificuldade em “encaixar”. Mas como é que sabemos, antes de experimentar, se são os mais adequados ou “melhores” para este ambiente ou aquele? Muitas vezes, é mais a falta de vontade em enfrentar os tais “desafios” que afasta umas pessoas e a outras não. Será numa “entrevista” que um@ director@ ou membro de órgão de gestão, por vezes sem dar aulas há décadas, percebe essa eventual “adequação” ou “vocação”? A minha experiência pessoal diz-me que não é isso que se passa e que as “qualidades” mais apreciadas são outras.
Mas ultrapassemos essa parte, a do nepotismo que garante 98% a familiar em concurso com entrevista (ahhh… mas @ presidente do júri não foi el@) e que tantos conhecemos desde sempre.
Foquemo-nos em algo mais substantivo, até porque não é algo que não se conheça lá de fora, mesmo se há a ilusão de que é este tipo de “modelo” que funciona melhor, embora não seja mais do que o “fechamento” das comunidades escolares sobre si mesmas e o seu contexto envolvente.
Se as escolas tiverem autonomia para escolherem os seus professores – afinal, contrariando a “equidade” que se pede aos professores quando abrem a porta aos seus alunos – até que ponto não aumentarão as assimetrias entre as que conseguem cativar os “melhores” e as que ficarão com os “outros”? Sei que me dirão que o que está em causa é o “perfil” e a sua “adequação” à realidade de cada contexto. Que me desculpem, mas se assim for, haverá zonas do país que ficarão quase sem candidatos e irá agravar-se muito mais as desigualdades que já existem. A menos que achemos que há uma adequação, uma simetria, quase perfeita entre as necessidades de professores e o número de cada “tipo” de professor mais ajustado a dado contexto educativo, económico e cultural. Isto, pura e simplesmente, não é assim. E lá fora já se percebeu que as zonas menos favorecidas são as que sofrem mais.
(estou a passar por cima da questão das quotas que determinam que só 25% dos professores podem ser muito bons ou excelentes, independentemente do contexto e das dificuldades que enfrentam; o que, há que convir, desmotiva 75% dos que sejam obrigados ou escolhidos para esta ou aquela escola)
Mas há outra questão, que pode parecer contra-intuitiva para quem entranhou este discurso da “autonomia e flexibilidade, pseudo-liberal, pouco atento aos fenómenos potenciadores das desigualdades. Não será um sistema “cego” potencialmente mais justo e equitativo (recordemos… não é a “cegueira” um dos atributos mais associados a uma Justiça maiúscula, por ser imune aos “contextos” diferentes condições daqueles que perante ela são trazidos?) do que um que permite a escolha à la carte dos candidatos à docência? Não permitirá uma distribuição menos assimétrica dos talentos e méritos dos professores que, mesmo tendo muito jeito para dado perfil de alunos, se calhar prefere alinhar em outro tipo de “organização”? Não será o sistema da “autonomia”, paradoxalmente, o que acabará por tratar pior e de forma mais desigual os interesses dos alunos no seu todo, ao deixar nas mãos de uma ou duas pessoas a selecção de dezenas de docentes para cada agrupamento?
Nada como ler o que vai sendo concluído acerca deste assunto (THE RECRUITMENT GAP -Attracting teachers to schools serving disadvantaged communities), comparando as “evidências” no terreno com as evidências teóricas. Porque, não nos iludamos, os que estão a perder, perderão sempre mais.
• Reputation matters: more affluent schools seem to be attractive due to their ‘reputation’ while teachers in disadvantaged schools are most likely to leave because they are attracted by another school.
• Teachers overwhelmingly agree that teaching in schools serving more disadvantaged communities tends to involve harder work (92%) and requires more skills (87%). Teachers who currently work in disadvantaged schools agree most
strongly with this.
• Teachers typically prefer to teach classes with higher attaining pupils and with fewer behaviour problems. This poses problems for recruitment in schools with more disadvantaged intakes.
• Those who have currently chosen to teach in schools with more affluent intakes strongly wish to avoid schools with behaviour problems, even if this means working longer hours. It will likely be difficult to persuade these teachers to apply for jobs at any school where they fear behaviour is not under control. This is why sound whole-school behaviour policies, along with improving the external reputation of a school are important for improving its teacher recruitment.
Fala-se em “revolução” a este respeito da contratação directa pelas escolas de parte significativa do seu pessoal docente. Por deformação histórica, sei no que acabam quase todas essas “revoluções” quando as castas no poder se enquistam. Sendo que neste caso, já estão enquistadas e a “revolução” é apenas para a selecção dos “súbditos”. Se há quem assim escolheria os “melhores” para os alunos da sua escola? Ou quem julga serem os “melhores”? Acredito que sim. Mas isso apenas quereria dizer que para algum lado iriam os “rejeitados” por um sistema de decisão quase unipessoal que só tornaria ainda mais insuportável um modelo de gestão escolar profundamente centralizado a nível local. E seria um meio caminho para outras formas de “contratação local” que já existem para certas “ofertas educativas diferenciadas”.
A verdadeira “revolução” seria acabar com esses múltiplos centralismos de proximidade, opacos, que beneficiam da fraca visibilidade para atropelar procedimentos e dar mais valor a uma entrevista de meia hora ou menos do que ao portefólio profissional ou mesmo a anos de experiência neste tipo de funções.
A verdadeira “revolução” seria criar um código deontológico para a gestão escolar. E depois logo passaríamos para outras coisas.
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