Filosofia(s)

Um artigo da Bárbara Reis sobre os exames de Filosofia despertou do coma algumas pessoas para o debate em torno da Filosofia, disciplina que quase tod@s deixaram trucidar e menorizar nas últimas duas décadas sem especial protesto, desde que a sua facção ficasse com a condução do respectivo programa e, já agora, da “formação” sobre o dito. cujo. Agora, discutem a importância que, em tempo útil, não quiseram ou souberam defender de modo eficaz, por vezes em troca da promoção de uma clique académica que, por exemplo, deixou praticamente desaparecer do programa uma História da Filosofia com pés e cabeça. Mais vale tarde do que nunca? Talvez, mas agora é mesmo muito tarde para andarem a discutir uma ausência, que é de um papel central no currículo da disciplina mais transversal de todas. Quem enfiar o barrete é porque o merece. Eu sou um mero retrógrado professor de História e hoje nem sei se vou ver a bola.

O Ângulo Certo

O presidente da Sociedade Portuguesa de Matemática chega muito perto do essencial quando afirma, acerca de mais uma mudança no programa de Matemática, neste caso no Secundário e com a novidade de passar a contemplar-se “programação” nos conteúdos, que “o problema é que tudo se resume à receita do costume: refundar programas do zero, não se sabe para quê nem porquê, mas rapidamente, muito rapidamente, cortina de fumo para esconder todos os outros problemas”.

João Araújo explica com alguma pontaria parte das questões (do interesse em introduzir programação no currículo desde cedo até à alegada extensão do programa anterior), só não estabelecendo de forma bem clara e sem receios a seguinte conjugação de factores que explica este tipo de opção, na lógica da demagogia costista na Educação:

  • Não há sequer professores para ocupar todos os lugares disponíveis para leccionar TIC no Ensino Básico, andando as escolas a recrutar praticamente qualquer pessoa com uma disciplina de Informática no currículo do seu curso.
  • Por isso, é inútil pensar que se arranjará pessoal para expandir a disciplina de Aplicações Informáticas no Secundário, adaptando-a – como seria desejável – às várias áreas do currículo, das Letras às Ciências.
  • Ao mesmo tempo, a Matemática é aquela habitual dor de cabeça (no Báscio ao Secundário) em termos de resultados, sendo recorrente as queixas de isso se dever à extensão dos conteúdos do programa, escondendo-se que o que está em causa é o tempo para os leccionar de forma conveniente.
  • Logo… nada como cortar conteúdos “tradicionais”, daqueles mais chatos e “trabalhosos” (para usar um termo a que muito recorreram os inquiridos este ano sobre quase todos os exames), e incorporar lá pelo meio a parte da programação, colocando professores de Matemática a dar uma coisa que para os distraídos (e alguns ignorantes) pode parecer próxima da Matemática, mas não é, e até pode propiciar estatísticas de maior “sucesso”.
  • E assim se finge uma Educação Digital sem professores de Informática e se combate a extensão do programa e o insucesso na disciplina de Matemática. Dois em um para a Educação Inclusiva de Sucesso e para o Currículo para o Século XXI.

A lógica da “Matemática para Todos” passa por considerar como “Matemática” qualquer coisa vagamente nas suas fronteiras (distantes). Por exemplo, no caso da História, seria o equivalente a retirar conteúdos mais complexos e “trabalhosos” e passar a contemplar matérias – numa lógica de aproximação do currículo à “realidade local” – como o jogo do pau, a renda de bilros ou as largadas (do Ribatejo a Barrancos, passando aqui pela minha zona) e chamar-lhe “Culturas Locais” no contexto de uma “História para Todos”.

Se juntarmos a isto, a sistemática crítica aos exames do Secundário e o simulacro de debate em torno de novas formas de de acesso ao Ensino Superior, ficamos com um quadro mais próximo do que se pretende com esta “modernização” do programa da Matemática. Basta ver as coisas pelo ângulo certo. A APM aplaude, como sempre, nestas circunstâncias.

O Caminho Por Cá Não Se Me Afigura Muito Diferente

No Secundário (que por Espanha corresponde ao intervalo etário dos 12 aos 16 anos), o desaparecimento da Filosofia como disciplina obrigatória, a crítica ao “modelo enciclopédico” e até uma revisão da forma de dar notas.

La reforma educativa sigue su camino legislativo, que llegan con el tiempo justo para que los centros preparen los cambios. ¿Desaparece la Filosofía? ¿Se podrá repetir? Claves para no perderse

Parece que passarão a existir apenas classificações qualitativas.

Para la titulación, el alumno debe alcanzar los objetivos de la etapa y, en cualquier caso, la decisión recae en los docentes. En vez de la repetición, que tiene un “carácter ineficaz y regresivo”, se potenciarán los mecanismos de detección temprana, de adaptación y reorganización pedagógica y de seguimiento de los alumnos.

Los resultados de la evaluación se expresarán en los términos de Insuficiente (IN); Suficiente (SU), Bien (BI), Notable(NT), o Sobresaliente (SB). En el caso de los ámbitos que integren distintas materias se expresará mediante una única calificación.

Vale a pena ler a descrição mais detalhada, de que apenas transcrevo um excerto. Atenção à nova disciplina de Educação em Valores Cívicos e Éticos:

Otras novedades que recoge la norma es que se eliminan las calificaciones numéricas, así como los exámenes extraordinarios, y se recuperan los programas de diversificación curricular. Según el nuevo currículo, se desarrollará una evaluación de diagnóstico en 2º de la ESO, con carácter informativo y orientador para los centros, los docentes y las familias. Al finalizar la etapa, todos recibirán una certificación oficial de los años cursados y el nivel alcanzado en las competencias clave. Si los alumnos han adquirido estas competencias obtendrán el título de Graduado en ESO.

Nuevas asignaturas

Asimismo, los alumnos de 12 a 16 años contarán con dos nuevas asignaturas sobre digitalización y emprendimiento, y la educación tendrá en toda la etapa una clara «perspectiva de género». Tal y como indica el texto, la materia de Tecnología y Digitalización deberá cursarse en los tres primeros cursos, mientras que en 4º, habrá otra asignatura sobre Digitalización, que será optativa. Según la norma, estas materias tienen por objeto «el desarrollo de ciertas destrezas de naturaleza cognitiva y procedimental a la vez que actitudinal». El Real Decreto pone algunos ejemplos de ello, como «el uso crítico, responsable y sostenible de la tecnología, la valoración de las aportaciones y el impacto de la tecnología en la sociedad, en la sostenibilidad ambiental y en la salud, el respeto por las normas y los protocolos establecidos para la participación en la red, así como la adquisición de valores que propicien la igualdad y el respeto hacia los demás y hacia el trabajo propio».

(…)

Con respecto a la nueva asignatura de Educación en Valores Cívicos y Éticos (que vendría a sustituir la Educación para la Ciudadanía del anterior Gobierno socialista), el Real Decreto establece que esta materia deberá «movilizar el conjunto de conocimientos, destrezas, actitudes y valores que permiten a alumnos y alumnas tomar conciencia de su identidad personal y cultural, afrontar cuestiones éticas fundamentales, y adoptar una actitud consecuente con el carácter interconectado y ecodependiente de su vida en relación al entorno». En este sentido, debe servir para «tomar consciencia de la lucha por una efectiva igualdad de género, y del problema de la violencia y explotación sobre las mujeres, a través del análisis de las diversas olas y corrientes del feminismo y de las medidas de prevención de la desigualdad, la violencia y la discriminación por razón de género y orientación sexual, mostrando igualmente conocimiento de los derechos LGTBIQ+ y reconociendo la necesidad de respetarlos».

También la asignatura de Biología y Geología continúa la senda de fomentar la igualdad de género y la diversidad sexual. Así, en clase se trabajará en la «diferenciación entre sexo y sexualidad» y en la «valoración de la importancia del respeto hacia la libertad sexual de las personas», así como se plantearán y resolverán «dudas» sobre «temas afectivo-sexuales, de forma respetuosa y responsable, evaluando ideas preconcebidas mediante el uso de fuentes de información adecuadas». Por otro lado, entre otras cuestiones, se estudiará «el funcionamiento de las vacunas y antibióticos».

Este Mês, No JL/Educação

Uma fuga à actualidade, talvez por cansaço com a falta de memória das gentes.

História como Cidadania

Há dias, aulas, mesmo semanas, em que me dá um especial prazer ser professor de História, mesmo em tempos de delírio burocrático, de instrumentalização do currículo por cliques académicas e de desvalorização da docência como profissão. Esses momentos repetem-se, felizmente, com alguma regularidade, quando abordo temas que podem e devem servir, de um modo especial, para que os alunos compreendam o mundo que os rodeia e o melhor consigam descodificar. Porque me devolvem o prazer de ensinar (sim, de ensinar, por anacrónico que digam que isso é), no que isso tem de mais pleno e gratificante.

Apesar do esquematismo dos programas, agravado com o reducionismo dos conteúdos que resultou das “aprendizagens essenciais” e da amputação da carga horária da disciplina de História, em especial no 3º ciclo do Ensino Básico, quem quiser libertar-se dessas amarras, tem à sua disposição temas que demonstram como a História (e em outra medida a Filosofia) é a área, por excelência, para abordar temas centrais para a formação dos futuros cidadãos. A História como campo de aprendizagem, estudo e debate do que é a Cidadania, para além das modas, sobrevive a custo, mas ainda nos permite oportunidades para a tal “descodificação” do mundo presente e do que (não) pode ou deve ser o futuro. E esse é um daqueles prazeres de que não abdico, reclamando a prática de uma autonomia que se conquista aula a aula e não se rende à lógica da representação burocrática.

Momentos em que para além dos conteúdos programáticos “essenciais” é importante transmitir aos alunos o contexto específico de cada época, algo indispensável para que percebam que as mesmas palavras não designam o mesmo ao longo do tempo ou através das sociedades. Que algo que foi seminal ou percursor, esteve longe de ser perfeito e que foi necessária uma longa evolução, para atingir uma versão melhor do que a original.

No 6º ano, apesar dos alunos ainda serem muito jovens, surge a primeira possibilidade de os fazer conhecer formas de organização política como o absolutismo e o liberalismo, as manifestas distorções de um e as limitações do outro. É sempre interessante explicar como aqueles que consideramos os fundadores de uma ideologia igualitária e libertadora, conseguiam sê-lo enquanto aceitavam e praticavam a escravatura, a completa exclusão das mulheres da vida pública e a limitação dos direitos de cidadania dos mais pobres. E demonstrar-lhes como podemos ter uma monarquia constitucional liberal ou uma república autoritária e ditatorial. Que as oposições maniqueístas simplificadoras nos podem induzir em erro. Que a ética não é apenas republicana. Que as eleições podem ter muitos e desvairados formatos, tudo dependendo do uso que lhes é dado. Que a representação popular pode assumir diferentes configurações, algumas delas profundamente atentatórias dos direitos individuais na sua prática.

Jornal de Letras/Educação, 26 de Janeiro de 2022

Claro que quando tudo se equipara e relativiza, considerando que há saberes que “não interessam aos alunos”, estamos a desprezar o dever do professor despertar nos alunos o interesse pelo que é relevante para a sua formação, mesmo se num dado momento isso não lhes possa aparecer como evidente. Como qualquer medicamento que nem sempre tem o sabor mais doce, o remédio para a ignorância pode surgir como desinteressante ou algo que exige um esforço indesejado.

O actual predomínio das teses utilitaristas da Educação (como algo que serve para preparar os indivíduos para o mercado de trabalho ou pouco mais) ou de concepções que centralizam o ensino/aprendizagem num alegado “Interesse dos alunos”, no sentido do que lhes surge como mais atractivo, conduziu ao empobrecimento do currículo, cada vez mais fragmentado e desarticulado.

Do que adianta um trimestre ou mesmo semestre de “Cidadania”, abordada numa perspectiva estruturalista, se fizemos desaparecer quase por completo do programa de História do 7º ano a descrição e análise do carácter inovador, mas incompleto, da democracia ateniense? Ou da forma como essa democracia podia ser esclavagista, misógina e imperialista? E porque se voltou a considerar desnecessário fazer a comparação entre Atenas e Esparta ou abordar a República em Roma, concentrando o que é “essencial” apenas no Império, como se a sua existência não fosse o resultado de uma evolução de séculos? Porque se considera “enciclopédico” explicar como evoluiu o conceito de cidadania em Roma, se muitos alunos não voltarão ao tema até ao fim da escolaridade obrigatória?

E o mesmo é válido para o 8º ano e o tema das Revoluções Liberais que, por causa da sucessiva redução de horas para História, ficou empurrado quase para final do ano lectivo, sendo dado em correria, depois de se abordar a Revolução Industrial. Que o programa é longo? Depende do tempo que tivermos para o tratar devidamente. Se espartilhamos a sua abordagem em semestres ou em duas aulas semanais de 45-50 minutos (ou num bloco de 90), é natural que tudo tenha de ficar pela superfície, inviabilizando a compreensão e a ancoragem das aprendizagens. Como ter tempo para demonstrar que a Constituição Americana (e a Bill of Rigts), que ainda hoje é idolatrada além-Atlântico como exemplo maior da defesa da liberdade, foi escrita por esclavagistas que defendiam o direito ao voto com base na riqueza? Como explicar que a Revolução Francesa não se reduz à tomada da Bastilha, à execução de Luís XVI e à ascensão de Napoleão, com umas pitadas de Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, sendo um processo complexo onde as virtudes de alguns princípios se concretizaram em momentos de terror e fanatismo?

O programa de História do 9º ano, correspondente ao século XX e ao início do século XXI (a quem quase ninguém consegue chegar), deveria ser abordado sem ser em formato digest, para que se percebesse a dimensão das tragédias que o marcaram, quantas delas em nome de concepções truncadas e manipuladoras do “bem comum” ou doi “interesse nacional” (como no fascismo e nazismo), assim como o tempo dos maiores avanços científicos e tecnológicos para a Humanidade foi o mesmo da massificação da destruição e mortandade, com a banalização dos genocídios. A História do século XX é essencial para a compreensão do presente, do que foi a luta pelos direitos humanos em regimes tidos como os mais avançados em termos democráticos (a luta pelos direitos civis nos E.U.A.) e o quase impensável preço em vidas humanas de projectos que anunciavam a instalação de utopias radiantes, em que todos viveriam em paz e harmonia, sem exploração do homem pelo homem (U.R.S.S., China).

Sim, é um terreno delicado e propenso a abordagens marcadas por preconceitos ou alinhamentos ideológicos, mas esse é um risco a correr se queremos que os nossos alunos acedam a conhecimentos nucleares para a compreensão do mundo que os rodeia. Como descodificar narrativas que manipulam conceitos e as próprias palavras se não soubermos como foi a sua formação e evolução? Como preparar os futuros cidadãos com abordagens descontextualizadas e por vezes anedóticas, como as que andam a fazer a existência de uma disciplina que faz lembrar, na sua simetria propagandística, a velha Educação Moral e Cívica do 1º ciclo de estudos do Ensino Liceal (Decreto-lei n.º 27.084 de 14 de Outubro de 1936) dos primórdios do Estado Novo? Dir-me-ão que o conteúdo é muito diferente, mas é difícil não reconhecer que o desejo de formar um “novo homem” na base de uma hora semanal de doutrinação nos valores do regime dominante num dado momento histórico, não é muito diverso.

A progressiva amputação das horas para leccionar a disciplina de História, com as consequentes queixas sobre a alegada extensão do programa, justificou a eliminação de vários conteúdos no âmbito da definição das “aprendizagens essenciais”. Essa amputação (de 9 para 6-7 tempos semanais, no conjunto dos anos do 3º ciclo) foi muito grave para a formação dos alunos em matérias relevantes para o seu conhecimento do funcionamento da sociedade e do sistema político, democrático e liberal, em que vivemos, como se foi formando e aperfeiçoando. Democracia que se foi consolidando, repelindo graves ameaças ao longo do século XX, algumas de regresso no século XXI, de um modo inesperado apenas para quem despreza o papel da Memória e considera anacrónica a aprendizagem do passado, porque é útil fazer passar narrativas ficcionadas sem o devido escrutínio.

A História passou a ser um alvo preferencial dos redutores do currículo, porque a Memória que ela nos devolve é incómoda para quem quer elevar o transitório a valor universal.

O Regresso De Uma Variante De Unidade Capitalizáveis (Para Quem Se Lembra Do Ensino Recorrente) E Mais Uns Truques À Conta Da “Flexibilidade”

Portaria n.º 306/2021 de 17 de dezembro

O preâmbulo é mais uma peça de propaganda. Mas interessam-me em especial estas partes (umas delas até podem servir para “resolver” a falta de professores em alguns grupos, à conta da “inovação” de “agregar” disciplinas):

Artigo 4.º […]

4 — […] a) A redistribuição, ao longo de cada ciclo ou nível de ensino ou ciclo de formação, das disciplinas/módulos/unidades de formação de curta duração (UFCD)/unidades de competência (UC) e respetivas cargas horárias previstas em cada matriz curricular-base, incluindo, no ensino secundário, sempre que aplicável, a alteração ao desenvolvimento anual, bienal ou trienal das disciplinas que integram a matriz curricular -base, sem prejuízo de as mesmas continuarem a ser consideradas, para efeitos de avaliação externa, como anuais, bienais ou trienais, respetivamente;

[…] c) A criação de novas disciplinas através de: i) Reafetação de tempos/horas fixados para as disciplinas constantes da matriz curricular-base, com definição de documentos curriculares próprios, aprovados pelo conselho pedagógico; ou ii) Junção das aprendizagens essenciais e dos tempos/horas fixados para as respetivas disciplinas na matriz curricular-base, combinando-os total ou parcialmente, constituindo -se estas novas disciplinas como disciplinas agregadoras.

d) A conceção, no ensino secundário, de um percurso formativo próprio, através da oferta de disciplinas integrantes dos diversos planos de estudos previstos nas portarias que lhes subjazem, nos termos previstos no artigo 6.º -A;

e) [Anterior alínea d).]

f) [Anterior alínea e).]

g) A opção pela constituição de turmas ou grupos de alunos de anos de escolaridade diferente, desde que do mesmo ciclo ou nível, sem prejuízo do cumprimento das aprendizagens essenciais, designadamente para efeitos de realização de provas de avaliação externa.

Esta última parte é, na prática, a constituição de turmas de nível, certo?

O Triunfo do Efémero

Lá seguiu o artigo para o JL/Educação de Setembro. Adivinho por aquelas páginas, loas e loas às novas medidas tomadas pelo grupo ideológico que governa e por lá escreve. Eu escrevi sobre o triunfo do efémero num currículo que cada vez se preocupa menos em transmitir às novas gerações o legado acumulado pela Humanidade em termos de Conhecimento e mais em divulgar modas transitórias e estilos de vida tidos como muito in e cosmopolitas. Dizem que é a modernidade e que a Educação se deve adaptar aos tempos, algo que ela, com bom senso, sempre demorou a fazer, para poder distinguir o trigo bom do simulacro plastificado, já para não dizer do joio.

Domingo

O despacho 6605-A/2021 é o elemento final (ou quase) do trabalho de “reconfiguração” da Escola Pública como Escola Mínima, depois de mais de uma década a transformá-la em Escola Low Cost. E Escola Mínima é aquela em que as aprendizagens disciplinares são secundarizadas em favor de uma competências transversais, de avaliação altamente subjectiva e cuja implementação se traduz numa fragmentação curricular dos conteúdos. Os saberes académicos são desvalorizados como “tradicionais” e resultantes de uma ilusão de saber global, sendo substituídos por conhecimentos mais ou menos utilitários, circunstanciais e locais. Como ouvi recentemente a uma orgulhosa liderança de uma escola que é “piloto” nesta lógica, “as aprendizagens disciplinares não são importantes”, porque o que interessa é que o aluno circule entre saberes transversais, resultantes das dimensões do canónico “Perfil”. Isto é apresentado como “moderno”, como “flexível” e adaptado a um século XXI que até agora não tem corrido nada conforme previam alguns visionários que tentam encaixar a realidade às suas caixas mentais desenvolvidas no final do século XX.

Esta Escola Pública Mínima não vai ser democrática, porque vai promover uma fuga ainda maior de alunos cujas famílias tenham alguns meios para isso para a rede privada. Vai ser inclusiva na retórica, mas apenas porque pretende nivelar pelos padrões menos exigentes e rigorosos; na prática, quem nela ficar terá como horizonte de conhecimentos aquilo que se define apenas como “essencial”. O que deveria ser tido como mínimo torna-se o padrão a alcançar. Claro que haverá excepções, porque continuarão a existir escolas que, em meios mais afortunados e exigentes, não cederão a esta tendência ou demorarão mais tempo a ser submersas por esta onda, que se sucede a várias outras, no sentido de uma desqualificação da Escola Pública como instituição destinada a transmitir os elementos fundamentais (diferente de “essenciais”) da Cultura e da Ciência que a Humanidade conseguiu erguer ao longo da sua História. A Escola Mínima privilegia os saberes meramente funcionais, úteis ao precariado, simulando uma certificação formal que o mercado de trabalho qualificado não reconhecerá. A Escola Mínima nunca poderá ser um “elevador social”, porque abdicou em definitivo de elevar, preferindo nivelar por baixo.

Neste despacho, pratica-se a adulteração da linguagem, enunciando-se conceitos e princípios que são esvaziados pelas práticas decorrentes do que é decretado. Não é honesto afirmar que “todos os alunos devem, ao longo dos seus 12 anos de escolaridade, desenvolver uma cultura científica e artística de base humanista, alicerçada em múltiplas literacias, no raciocínio e na resolução de problemas, no pensamento crítico e criativo, entre outras dimensões” se isso não tem qualquer verdadeira tradução num modelo de escola em que a compreensão do teorema de Pitágoras equivale a saber atravessar na passadeira ou em que a aprendizagem da tabela periódica equivale a saber o que é o “espírito do empreendedorismo”. E nem vale a pena falar de uma Filosofia reduzida a exames de escolha múltipla ou a uma História semestralizada em fatias polvilhadas de tópicos.

Por isso, os cursos de formação inicial de professores se baseiam cada vez mais num elenco de generalidades, estando praticamente ausente uma formação de tipo disciplinar/científico que vá além da leitura de uma qualquer enciclopédia temática para jovens. Para ensinar pouco ou nada, nada ou pouco é preciso saber. Muito menos qualquer tipo de pensamento crítico consistente, porque uma coisa é o exercício de uma crítica fundamentada e baseada em argumentos e outra a mera contestação da “autoridade” académica dos professores e conhecimentos.

Este despacho, se tivesse sido escrito por um grupo de trabalho criado pelos interesses privados na Educação, dificilmente seria diferente.

Centralismo Curricular

O maior exercício de terraplanagem curricular de sempre. E o inegável triunfo das seitas.

Despacho n.º 6605-A/2021

Sumário: Procede à definição dos referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa.

(…)

Assim, no uso dos poderes delegados pelo Despacho n.º 559/2020, de 3 de janeiro, publicado no Diário da República, 2.ª série, n.º 11, de 16 de janeiro de 2020, determino:

1 – Constituem-se como referenciais curriculares das várias dimensões do desenvolvimento curricular, incluindo a avaliação externa, os seguintes documentos curriculares:

a) O Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória, homologado através do Despacho n.º 6478/2017, de 9 de julho;

b) As Aprendizagens Essenciais, homologadas através dos Despachos n.os 6944-A/2018, de 18 de julho, 8476-A/2018, de 31 de agosto, 7414/2020, de 17 de julho, e 7415/2020, de 17 de julho;

c) A Estratégia Nacional de Educação para a Cidadania;

d) Os perfis profissionais/referenciais de competência, quando aplicável.

2 – São revogados os demais documentos curriculares relativos às disciplinas do ensino básico e do ensino secundário com aprendizagens essenciais definidas.

3 – O presente despacho entra em vigor no dia seguinte ao da sua publicação e produz efeitos a 1 de setembro de 2021/2022.

2 de julho de 2021. – O Secretário de Estado Adjunto e da Educação, João Miguel Marques da Costa.

3ª Feira

Uma outra tendência é a de considerar que, para além de prolongar o ano lectivo, se devem ter as escolas abertas no Verão, de novo com o pretexto das tais aprendizagens “perdidas”, que ninguém ainda me demonstrou que o foram por causa dos efeitos da pandemia e não um efeito natural da desorganização e atomização que passou a caracterizar o currículo do Ensino Básico, com o aumento do número de disciplinas e áreas disciplinares e a redução de alguns programas disciplinares a esqueletos para arranjar tempo para áreas criadas a gosto desta ou aquela clique próxima do poder.

Escolas STEAME E O Fim Das Humanidades (Por Troca Com E-Shops)

Estive a assistir a uma webinar daquelas internacionais em que se apresenta o currículo do futuro, com chancela da OCDE, baseado no projecto “STEAME: Guidelines for Developing and Implementing STEAME Schools”. No fundo, é o conceito STEM, a que acrescentaram o A das Artes para ficar bonito, mas continuando a deixar de fora as Humanidades e Ciências Sociais, enquanto consideram essencial o E final de Empreendedorismo. É a visão da OCDE para a Educação em 2030 que o SE Costa tanto gosta de espalhar por cá, enquanto finge dar muito valor às Humanidades, enquanto as retalha no currículo. Vejamos o que é dito:

Without Entrepreneurial skills it is not possible to innovate and expect impact to life and this is
missing from the current definitions of STEAM activities. Therefore, STEAME Schools is a new
educational approach that uses science, technology, engineering, arts, mathematics and
entrepreneuship as a reference point for guiding student research, dialogue, critical thinking and
entrepreneurial mind set.
The STEAME framework takes STEAM to the next level, enriching it
with creativity, criticism, research and innovation and skills related to entrepreneurship with
introduction to technology transfer into the economy for better life.

Uma das actividades para alunos de 15-16 anos é a criação de e-shops em 2 aulas de 90 minutos, na segunda das quais “every group of students designs and creates a customized e-shop, that formulates a real problem. In this way, they understand the mechanism of the market in action.”

Os resultados esperados?

After the project, learners will be able to investigate the market and become more competitive using new technologies. This procedure develops their critical mind and fosters their curiosity about new markets and about their future as entrepreneurs. Their communicative skills and their ability to collaborate will be
enhanced, as they will be obliged to make decisions as partners.
The result will be the virtual e-shop with the aid of spreadsheet for billing and pricing the product.

E ainda devem chamar a isto uma Educação Humanista.

(pois, as coisas em que eu me meto só para saber como será o futuro…)