Sábado

Respondia agora mesmo a pessoa amiga que estes são dias em que mal apetece sair e entrar em remoinhos de pessoas ou trânsito (por menores que sejam, mas sempre temos o acréscimo de domingueiros) para além de renovar os víveres “frescos”. Uma espécie de detox global, para recuperar o gosto pelos prazeres maiores, que ao longo dos dias, semanas e meses, se vão enevoando. E, ao mesmo tempo, tentar recuperar lucidez, para não entrar na espiral do “inda nos estampamos”. Há meses que não conseguia despachar dois livros em dois dias, enquanto o monte se vai avolumando, fruto do vício de ter aquilo que se espera conseguir ler.

Por muito que seja difícil ignorar situações como a que em seguida transcrevo, esperando que em breve possa ter acesso ao original do documento em causa. E é assim que se percebe que o descanso terá sempre de ser relativo e que nada impede que, um destes dias, aconteça a qualquer de nós coisa parecida, por mudança de itinerário ou delito de opinião, mesmo que mais fundamentada do que a da maioria dos “mediatizadores” da propaganda governamental para quem tudo isto são “pomenores”.

Estou com pena suspensa durante 5 anos por organizar a marcha no dia 11 de Fevereiro. Recebi há 3 semanas carta do MP a informar do facto e nem sequer fui ouvida. (…)

Um relambório de 3 páginas, completamente ridículo. Até elogios ao nosso comportamento contém, mas alega a senhora que o percurso foi alterado e a alteração não foi comunicada no tempo legal. Tivemos escolta policial e tudo. Ah, e até descrevem os materiais que usámos: tambores, cartazes, etc. Andam a torrar dinheiro com estas [tretas]…

Este Abril, No JL/Educação

Como ensinar a Liberdade?

Estava a escrever o texto para esta edição do JL/Educação sobre as agruras e instrumentalizações da formação contínua dos professores e ia a prosa já adiantada, quando me chegou mail a informar que um colega, com quem ainda recentemente estivera numa reunião online a debater a situação actual na Educação, tinha sido constituído arguido na sequência da organização de uma marcha de professores na cidade de Setúbal no dia 15 de Dezembro de 2022.

Ultrapassado o pasmo inicial, que só não foi maior porque algo similar já aconteceu a outros colegas, em outros pontos do país, nomeadamente a alguns organizadores de uma marcha similar em Oeiras, reparei que o texto que escrevia se destinava a ser publicado na edição de ABRIL, o mês que desde novo me habituei a associar à Liberdade. À conquista da Liberdade para Portugal. À vivência dessa Liberdade. A que eu assisti muito novo, quando ainda era petiz na velha “Primária”. Que eu fui experimentando, como aluno, ao longo da minha vida escolar. Que muitos professores (e professoras, claro, que o politicamente correcto agora nos quer inibir de usar o masculino como formulação universal) me ajudaram a compreender, pela palavra, pela explicação, mas principalmente pelo exemplo.

Que eu, como professor, sempre procurei ensinar aos meus alunos, não apenas como teoria ou facto histórico, mas como forma de estar na Escola ou fora dela, pois foi assim que compreendi melhor o seu significado: vivendo-a de forma responsável, exercendo os meus direitos e tendo em conta os meus deveres, de modo crítico, mas responsável.

Por isso me custa que em qualquer mês, mas em especial à beira do mês de ABRIL (que sinto ser necessário escrever com todas as suas letras em forma maiúscula), em Portugal alguns direitos cívicos, que se julgavam adquiridos de forma firme e consolidados num modelo de democracia liberal, estejam a ser repetidamente ameaçados.

Direitos cívicos que estão na essência das próprias noções de Liberdade e Democracia. Porque não existe outra forma de colocar a questão quando se trata da investida em curso contra o direito à greve e ao próprio direito à manifestação.

O direito à greve foi torpedeado em acórdãos de colégios arbitrais com argumentos que há pouco tempo quase todos considerariam impróprios de um regime democrático. No acórdão relativo ao processo 2/2023/DRCT-ASM é completamente desrespeitado o que se explicita como “necessidades sociais impreteríveis” no artigo 397.º da Lei Geral do Trabalho em Funções Públicas e parte-se para um exercício de previsão quando se escreve que a greve “redundará, num determinado momento, num prejuízo insuportável para o direito de acesso ao ensino e o direito de aprender”. Se nesse acórdão ainda não se determinam “serviços mínimos”, em acórdãos posteriores isso já acontece (caso do relativo ao Processo: 6/2023/DRC-ASM), de um modo que o direito à greve é esvaziado quase por completo de qualquer eficácia, logo, da sua finalidade primeira.

Mais grave, as medidas previstas em acórdãos explicitamente dirigidos a uma greve passaram a ser aplicadas a toda e qualquer greve no sector da Educação, numa extrapolação profundamente abusiva. Em termos públicos, as greves de professores foram classificadas por governantes como “atípicas”, “desproporcionais” e “imprevisíveis”, colocando-se mesmo em causa a sua própria “legalidade”.

Embora em parecer da Procuradoria-Geral da República ficasse expresso que não existem elementos factuais para considerar “ilegal” ou “abusiva” a greve dos professores, a narrativa oficial foi no sentido da demonização do recurso à greve e foram transmitidas às escolas leituras profundamente restritivas dos direitos dos grevistas, avançando-se em diversos casos para a marcação de faltas injustificadas.

Por isso, torna-se complicado explicar aos alunos, numa disciplina como História, o que é exactamente o direito à greve quando se aborda a legislação que resultou das revoluções de 5 de Outubro de 1910 e 25 de Abril de 1974. Porque pode sempre ter de se responder à questão… “mas se os professores estão em greve, porque estão nas salas a dar aulas?”

O que talvez possa ajudar a perceber a menorização sofrida pela História nos reajustamentos curriculares das últimas duas décadas: afinal, pode incutir ideias erradas ou desaconselháveis nos futuros cidadãos.

Mas não é apenas o direito à greve que tem sofrido um intenso assédio. O direito à manifestação também começa a estar na mira daqueles a quem incomoda a contestação social e laboral. E é aqui que volto à situação do meu colega que, a menos de um mês dos 49 anos da revolução de ABRIL de 1974 foi constituído como arguido por ter organizado uma marcha de professores, para a qual pediu as indispensáveis autorizações e fez as necessárias comunicações. E cito o testemunho que me enviou:

Fui convocado para prestar declarações na Esquadra de Investigação Criminal de Setúbal, ontem pelas 17.00h.

Atendido de forma cordial pelo agente responsável, fiquei a saber ao fim de poucos minutos, ter sido denunciado por um elemento das forças policiais (não me foi facultada a sua identificação). E fui denunciado por que motivo? Já lá vamos…

Muito bem! De facto, organizei uma marcha de professores pelas ruas da cidade, no passado dia 15 de dezembro de 2022, acompanhado por umas dezenas de voluntariosos profissionais da educação.

Ter-me-ei eu, esquecido de informar alguma das autoridades competentes, acerca da realização desta iniciativa, perguntam vocês! Pois, também eu me questionei, pois era a primeira vez que organizava semelhante evento!

A informação que me tinha sido fornecida uns dias antes (…) tinha sido a da necessidade de informar (não é pedir autorização!) a PSP e os serviços camarários, coisa que fiz, (…).

No dia da referida marcha, fomos acompanhados por um número significativo de agentes da PSP, que nos prestaram todo o apoio e deram inclusivamente, sugestões sobre o percurso a realizar.

E então? Perguntam vocês – de que crime estou eu a ser acusado?

O crime parece que se designa de “desobediência”, por ter desrespeitado um tal de artigo 4.º do Decreto-Lei 406/74 de 29 de agosto. E o que diz o artigo citado? “Os cortejos e desfiles só poderão ter lugar aos domingos e feriados, aos sábados, depois das 12 horas, e nos restantes dias, depois das 19 horas e 30 minutos”.

As manifestações de professores, por múltiplas que tenham sido, nacionais, regionais ou locais, têm-se destacado pelo elevado civismo dos participantes. Pelo modo ordeiro como decorreram. Claro que com palavras, cânticos, grafismos, que expressam crítica, desafeição, contestação. É essa a essência do debate democrático, não restrito à formalização bissexta da ida à urna.

Nenhuma manifestação, marcha, cordão humano, vigília, seja o que for, provocou dano a terceiros, conspurcou o espaço público, recorreu a qualquer acto de violência. O que torna ainda mais estranhas estas “denúncias” alegadamente feitas por agentes policiais.

É triste dizê-lo, mas num momento em que se gastam milhões nas comemorações dos 50 anos do 25 de ABRIL de 1974, é lamentável  que não se invista na vivência de uma Liberdade plena, com respeito pelos direitos dos cidadãos comuns, os de segunda, porque a Democracia que hoje temos vive-se a várias velocidades, da Educação à Justiça, da Saúde ao Trabalho.

E é ainda mais triste sentir que se pode voltar a sentir medo por expressar opiniões, mesmo quando isso é feito com civismo ou com base em demonstrações factuais. Que se pode voltar a um tempo de auto-censura com receio das consequências do que se diz, com o nome assinado e de cara à mostra, para evitar transtornos na vida pessoal e profissional.

Não é a primeira vez que sinto este tipo de intimidação, nem sequer difusa, no ar que me rodeia. Também já fui arguido, também já fui ameaçado por escrever o que era verdade, passível de demonstração factual. Sei os incómodos que causa a cobardia de denúncias deste tipo, em que quem as faz nem sequer se pode considerar lesado pelo acto denunciado. Nunca as fiz, mesmo quando me senti ofendido de forma que outros achariam caluniosa. Por isso, sinto como um ataque pessoal este tipo de tentativa de limitação da Liberdade que ainda temos. Não me deixa descrente da minha capacidade de explicar a Liberdade aos meus alunos, mas limita de forma evidente a capacidade de lhes demonstrar que ela ainda existe de forma plena no nosso quotidiano.

Porque sinto em ABRIL de 2023 que a Liberdade não é a mesma que prometeram em ABRIL de 1974 e parecia ter ficado garantida na Constituição de ABRIL de 1976.

Entretanto…

Federação Nacional dos Médicos (Fnam) admite novas formas de luta se não existem acções concretas. Próximas reuniões estão marcadas para meados de Abril.

Sindicato dos funcionários judiciais anuncia novo protesto entre a Páscoa e as férias judiciais do Verão.

(Expresso, 31 de Março de 2023)

Já Estes Resultados É Que Deveriam Fazer O Situacionismo Governativo Repensar A Sua Atitude

Porque neste momento parece inegável que se sente a ameaça que paira sobre o funcionamento de uma Democracia plena, em que os direitos só são reconhecidos quando dá jeito.

É um dos fatores que mais tem marcado o início do ano e que, a julgar pelos números, vai continuar a marcar. A contestação saiu à rua, com manifestações em massa e paralisações em vários sectores. Mas para os inquiridos na sondagem as greves não têm afetado particularmente o dia a dia (74% dizem-se “pouco” ou “nada” afetados). E um imenso consenso considera-as hoje tão ou ainda mais necessárias do que no passado — é o que responde a esmagadora maioria (87%).

Opiniões – Lia Ribeiro

ACUSO

Numa época em que os referenciais sustentam que a «escola tem um papel importante na construção de práticas de cidadania» (Aprendizagens Essenciais da Cidadania e Desenvolvimento), e que a «cidadania e participação» se constitui como um dos valores estruturantes do Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória,

Acuso

o Ministério da Educação e as restantes instituições envolvidas no Parlamento do Jovens (Assembleia da República e Instituto Português do Desporto e da Juventude), projeto por excelência que promove os valores da cidadania e da intervenção cívica, de obstar o acesso de alunos e docentes a este projeto. Na verdade, até ao ano transato, inclusive, alunos e professores que voluntariamente participavam nas sessões distritais/regionais e na sessão nacional tinham transporte fornecido pela organização que se deslocava às escolas para levar os participantes aos locais onde as sessões decorriam. No presente ano, o transporte deixou de ser facultado e, ou os municípios benemeritamente proporcionam esse serviço, ou alunos e professores têm de se desenvencilhar por conta própria. É decadente ver filhos a saírem a altas horas da madrugada para apanhar o transporte público em direção às várias sessões distritais que estão a decorrer hoje; é revoltante que pais e professores se viram obrigados a deslocar os jovens a expensas próprias, sem sequer haver cobertura do seguro escolar; é chocante constatar que alunos meus não puderem participar por não terem acesso a qualquer tipo de transporte, depois de meses em que estiveram empenhados num processo prévio que envolveu desde a elaboração de listas e de projetos de intervenção, até debates na escolas e eleições.

Por tudo isto, acuso as instituições públicas de serem as primeiras a dececionar os jovens e de servirem de maus exemplos de cidadania.

Acuso o poder central de hipotecar a formação cívica das futuras gerações – questiono-me se não o fará de forma deliberada – preterindo a aposta na educação a favor de indeminizações milionárias e de investimentos estéreis.

Acuso os opinadores encartados em temática educativa, que ultimamente se mostram tão inquietos com a perda das aprendizagens por parte dos alunos, em virtude das greves dos professores, de não denunciarem estes «crimes educativos», bem ilustrativos do papel despiciendo que o ensino vai assumindo na governação.

Lia Ribeiro

Confirma-se!

Não é nenhuma identidade falsa.

Há momentos na vida em que as nossas ações determinam para sempre a nossa postura, os nossos valores, a nossa imagem perante os outros.

Tenho assumido esta luta com muito orgulho, com muita honra porque luto por uma sociedade mais justa mais honesta, mais virtuosa para mim, para a minha família, para os meus alunos e suas famílias, para os meus colegas.

Luto porque acredito que juntos temos mais força, tornamo-nos melhores, e conseguimos mudar o rumo das coisas: rumo das coisas: injustiças, desigualdades, decisões erradas e errantes de poucos que comprometem o presente e o futuro de muitos.

Luto porque acredito que ainda há muito por lutar.

Hoje fui chamada à PSP de Porto Salvo pois estou acusada pelo ministério público de desobediência por ter organizado com os meus colegas uma caminhada num de dia de greve até a câmara.

Eu e todos os organizadores dos outros Agrupamentos que participaram nessa caminhada estamos acusados de desobediência, apesar de termos tido proteção e acompanhamentos da polícia.

Estamos acusados de desobedecer… a quem? … ao sistema? E isso eu não posso aceitar.

Por mim, por todos.

A revolta é muita.

A consciência de que vivo num país que quer sufocar a luta pelos direitos dos seus cidadãos é um sintoma muito grave de democracia ou falta dela.

Revolto-me. Mas não deixarei de lutar pelos meus, pelos vossos, pelos nossos..

Faz lembrar outros tempos em que muitos sofreram e morreram para conquistar esse mesmo direito. Não queiram transformar a DEMOCRACIA em DEMO-CRACIA

Ana Martins