Texto escrito ali por 25 de Maio, ainda sem algumas novidades em termos de acórdãos e novas convocatórias de greves. Já agora… não me venham dizer que os mais velhos já esqueceram a questão da “vinculação dinâmica”. Há quem salte de causa em causa, de nenúfare em miosótis, mas também há quem seja teimoso.
O fio do horizonte
Chegado a esta altura do ano lectivo, paredes meias com o final das aulas, mas longe de terminar o ano escolar, o maior desejo de qualquer professor é que tudo decorra com a maior das normalidades e que estas semanas, absorvidas nem sempre nas tarefas mais atractivas ou entusiasmantes da função docente, se esgotem com tranquilidade. O que infelizmente está a ser negado, não apenas a docentes, mas de igual modo a alunos. Em termos gerais à própria Educação, nomeadamente no sector público.
Já escrevi com algum detalhe sobre a desnecessária perturbação causada por uma apressada experimentação em provas de aferição em suporte digital. Algo que ficou patente com as conclusões que se podem tirar do desempenho dos alunos portugueses nos mais recentes testes do PIRLS (Progress in International Reading Literacy Study). Portugal participa nestes testes, que medem a literacia dos alunos do 4.º ano em domínios como a Literacia da Leitura, desde 2011, quando obteve um resultado global de 541 pontos, bem acima da média global e com um desempenho significativamente superior em relação a países comparáveis (PIRLS 2011 International Results in Reading, p. 43). Cinco anos depois, o desempenho tinha piorado para 528 pontos, passando Portugal do 19.º para o 30.º lugar do ranking e ficando pouco lugares acima do ponto médio da distribuição, sendo dos que apresentaram uma evolução mais negativa entre 2011 e 2016. Na altura, esta situação foi atribuída, em grande medida, aos efeitos das políticas restritivas dos tempos da troika em Portugal.
Chegados a 2021, com toda reversão de políticas ao nível do currículo e da avaliação (interna e externa) das aprendizagens dos alunos, seria de esperar uma inversão da tendência, apesar dos efeitos disruptivos do primeiro ano da pandemia. O que não aconteceu, com o desempenho a descer para os 520 pontos. Sendo que se verificou que os alunos que fizeram a prova em suporte digital apresentaram resultados piores do que os que a fizeram em papel, no seu formato tradicional.
A justificação da continuação do declínio dos resultados com um alegado suporte digital pouco adequado, já foi desmontada de forma detalhada por João Marôco em artigo no jornal Público de 21 de Maio de 2023, com recurso aos materiais da IEA (International Association for the Evaluation of Educational Achievement). A longa transcrição justifica-se, porque qualquer paráfrase não faria a devida justiça ao autor;
“O leitor poderá confirmar — como não poderia deixar de ser — que os alunos podem navegar nos blocos de texto, para trás e para a frente, como com as páginas de um livro; marcar passagens do texto, com um marcador amarelo, exatamente como se estivessem a fazer um teste em papel; podem ver ou esconder as perguntas para reler o texto, ou as partes marcadas a cor, antes de responder; rever as respostas e alterá-las. A IEA faz testes de avaliação educacional há mais de 60 anos. Todos os seus testes são pré-testados e validados pelos países participantes.
O presidente do Iave, responsável pela tradução e aplicação do PIRLS — e que brevemente irá certamente disponibilizar o vídeo deste texto, com tradução portuguesa devidamente validada pelos especialistas nacionais do Iave e confirmada pelos revisores da IEA — afirma, segundo o que o ministro disse, que os alunos não conseguiam navegar no texto quando apareciam as perguntas, que a janela das perguntas tapava o texto impedindo a sua leitura, que não seria possível andar para a frente e para trás no teste digital como acontece num teste em papel. E isto — uma prova em formato digital, mal feita; não um confinamento; ou políticas educativas erradas; ou flexibilidade e metodologias obsoletas; ou a pouca valorização da leitura em ambiente familiar; ou outra coisa qualquer — explica a pioria dos resultados de 2016 (em papel) para 2021 (em digital).”
Um mínimo bom sendo deveria conduzir, no mínimo, à tentativa de diagnosticar com rigor – e não com conclusões escritas à partida – as razões do declínio dos resultados ao longo de uma década. Não basta ter uma ideia sobre o fenómeno ou refugiar-se em argumentações restritas à retórica política. Seria importante compreender o que se tem passado, o que funciona ou não, para além de um “achismo” muito marcado por preconceitos ideológicos. Como professor de alunos do 5.º ano, é muito importante que me seja fornecida informação fiável sobre o desempenho dos alunos que não encontro nos chamados RIPA ou REPA (Relatórios Individuais ou de Escola das Provas de Aferição), que se limitam a uma descrição muito simplista do que os alunos fizeram ou não e que tem um potencial de exploração muito limitado, distante dos relatórios das “antigas” provas de aferição ou provas finais que existiram até 2015.
A introdução de duas quebras em poucos anos no formato das provas que vinham a ser feitas, de forma razoavelmente coerente, desde o final dos anos 90 do século XX, torna praticamente impossível fazer análises diacrónicas com algum significado. Tanto porque mudaram os anos em que são realizadas, como por terem sido alterados os critérios de classificação do desempenho e mesmo a nomenclatura e agora o próprio suporte em que se realizam, é muito complicado “aferir” verdadeiramente a evolução do desempenho dos alunos e definir uma estratégia de trabalho, a médio prazo, numa lógica de progressão vertical ao longo dos ciclos de escolaridade.
Para além disso, a calendarização das provas, realizadas ainda durante o período lectivo e não numa época específica, após o final das aulas, causa uma perturbação prolongada nas escolas, ao estender-se por mais de um mês, em que professores deixam de dar aulas para ir vigiar ou classificar provas e os alunos deixam de ter aulas, para as realizar, sem que isso tenha um reflexo na sua avaliação final. Há quem diga que, deste modo, se reduz a pressão de quem realiza as provas, mas também é válido que, assim, o empenho com que são feitas pode ser muito relativizado.
Mas a tranquilidade da vida escolas não se mede apenas pelo bem-estar dos alunos, por muito importante que seja, pois não podemos sistematicamente menorizar ou considerar de tal modo acessório o bem-estar dos professores, ao ponto de o tornar um detalhe ou um aspecto a sacrificar, como se não fosse igualmente indispensável para a “saúde” das organizações escolares e da própria Educação. Sem alunos não haveria Educação, é comum ser dito, mas duvido que sem professores possa existir mais do que um simulacro dessa mesma Educação.
E o grande problema, que se prolonga demasiado no tempo, é que tranquilidade do trabalho dos docentes tem sido profundamente afectada pelo modo como decorreram mais de oito meses de negociações sobre o novo modelo de concurso e vinculação, assim como sobre questões ou a recuperação integral do tempo de serviço prestado. Negociações que culminaram na aprovação de diplomas que a esmagadora maioria dos docentes considera negativos para a sua estabilidade profissional e que são a forma errada de lidar com a evidente falta de docentes. Porque a chamada “vinculação dinâmica”, com tudo o que tem de lotaria no concurso de vinculação em lugares de quadro de agrupamento/escola, é o inverso do que tem sido discutido e posto em prática em outros países onde se verifica o mesmo problema.
Não encontro, neste momento, no horizonte, qualquer sinal de tranquilidade para a vida nas escolas, em grande parte porque se tem optado por políticas que pretendem construir um “sucesso” de fachada, desvalorizando uma avaliação externa das aprendizagens que permita comparações diacrónicas robustas em termos metodológicos, em especial no Ensino Básico. E em simultâneo porque tem havido uma clara opção política por continuar a desvalorização e desqualificação da condição docente em Portugal.
Opção partilhada por muita gente, demasiada gente, ora no campo da situação, ora no da oposição, coreografando divergências quando, nas últimas décadas, convergiram de modo muito claro. Do lado das “esquerdas” há quem disfarce que pactuou, desde o final de 2015 com a encenação de uma “inclusão” por decreto e com a desvalorização do papel do professor, e quem, do lado das “direitas” tenha partilhado o discurso do excesso de professores desde 2005. Por isso, temos hoje uma oposição incompetente e incoerente na área da Educação que, em diferentes momentos, por acção ou omissão, foi cúmplice do que agora temos, devido a uma assinalável falta de prospectiva crítica. Uma falha que nos deixa cada vez mais fugidio um horizonte de tranquilidade nas escolas.

