A DESILUSÃO DE ABRIL E E EM QUEM SE ADMIRA
O meu Serginho e pai, tem 91 anos feitos em março. Digo tem e não tinha, porque ele estará sempre connosco e todos os dias 23 de março somará mais um ano à sua existência. Retirando as mazelas da idade e um ou outro problema de saúde que, por mais grave que fosse, recuperava como um jovem adolescente. O Serginho será sempre recordado como um grande Homem – excelente marido, pai, avô, bisavô e amigo.
Sempre o conheci como um contador de histórias que descomplicava a vida com um sorriso. Tinha um apurado sentido de humor e uma memória fabulosa o que o tornava imbatível em datas, nomes e acontecimentos de vida e históricos. Na política era muito difícil, mas muito difícil mesmos chegarmos a consenso. Era um social democrata acérrimo ainda que nunca tenha sido levado na enxurrada das filiações partidárias mas mantinha-se firme nas suas convicções por mais que lhe dissesse que, chegados ao poder, eram todos iguais. Para mal dos meus pecados, era incondicionalmente fã de Marcelo Rebelo de Sousa. Nas conversas referia-se a ele como primo, mesmo não o sendo. Quando se cruzavam o “primo” vinha à baila e Marcelo alinhava na brincadeira o que o deixava feliz e acrescia mais uma estória ao seu longo rol. Em comum apenas tinham o nome Rebelo, as raízes minhotas e a ideologia.
Mesmo em férias, era frequente o pedido: “- Filha, dá para jantarmos mais cedo? É que hoje é dia do Marcelo.” Aqueles momentos eram de uma veneração que me tiravam do sério! Se ficava com ele a ouvir o “primo” dava discussão na certa, por isso aproveitava para escapar e ir fumar o meu cigarrito à beira rio, o nosso amado rio Minho. Se, no regresso, eu não puxasse o assunto ele também não o fazia. Havia entre nós um respeito tácito. Déssemos nós asas e lá vinha ele com os argumentos pró Marcelo.
Assim se manteve o meu Serginho imutável até anteontem. Fui passar a tarde com ele e a determinada altura disse-me: ” – Eu já nem sei a quantas ando.”. Lembrando-me da sua memória histórica disse-lhe: “- Ontem foi 25 de abril! Quer falar disso?”
A resposta foi seca: “- Não! Desiludiram-me muito.”. E a toque de foice, revisitou a vida desde os tempos de criança em Vila Nova de Cerveira, em que “os adultos se serviam” dele para o contrabando com Espanha em tempos de guerra. Das vezes em que se atirou ao rio e alcançou a margem a nado para fugir da guarda. Ou quando ainda nem a quarta classe tinha e o levaram para o posto da guarda fiscal de Caminha e lá passou a noite. Da ida para Angola na esperança de uma vida melhor. De como já com quatro filhos, em escadinha – 1, 2, 4 e 6 anos, resolveu ir estudar. De como chegou a gerente bancário e de como contratou o Zé Caquim, um garoto que a troco de um salário melhor lhe fez prometer que, paralelamente ao trabalho no banco, teria que estudar e, como uns anos mais tarde foi à sede do BCA a Luanda e um senhor de fato e gravata, o chamou em alto e bom som: “- Sr. Gerente, Sr. Gerente, sou o Zé Caquim. Fiz o que lhe prometi, estudei e agora estou aqui a trabalhar.”. De ouvir a rádio Sul Africana em busca de informação fiável porque em Angola só chegavam rumores de uma revolução na metrópole e o medo da PIDE fazia congelar as manifestações de felicidade. Da descolonização apresada e de como chegou a Portugal com uma mão à frente e outra atrás e quatro filhos para alimentar e, como dizia, estudar.
O mais velho, tinha entrado para faculdade em Angola, mas não poderia ser readmitido cá, porque não tinha feito o malfadado serviço cívico. Indignado, rumou a Lisboa e de como no ME encontrou “uma alma caridosa” que o ajudou a formalizar a reclamação. A viagem não foi em vão! Os mais novos, um no oitavo, eu no sexto e o casula no quinto ano, seguiam a sua adaptação a uma outra escola, a uma outra realidade. Para dar de comer aos filhos, mantê-los aquecidos e a estudar, foi trabalhar para Barcelos e a mãe, em Gaia, fazia o milagre da multiplicação dos pães diariamente, a roupa e os cobertores ia buscá-los ao IARN (Instituto de Apoio ao Retorno de Nacionais). “Os filhos só tinham que estudar! O trabalho de quem estuda é estudar!” – ouvi-o vezes sem conta. Agora, aos 91 anos voltou a dizê-lo.
Deixei-o falar. Estava tudo certo. Mas comecei a perceber alguma agitação. Contrariamente ao que nos habituara, o discurso fluía mas na negativa. Tentei mudar de assunto: ” – Vamos agora falar do seu primo Marcelo?”, propus.
Ele, que sempre o vira como um ídolo, que à menor possibilidade era tema de conversa os seus encontros – de quando se cruzaram na Praia dos Salgados, no Algarve e conversaram e no mês seguinte voltou a tagarelar com ele em VNC. As fotografias da praxe que fazia questão de referir e o meu comentário, também ele da praxe: “- Pai não me faça passar estas vergonhas. Qualquer dia é conhecido como o emplastro do PR.” A resposta foi rápida como sempre: “- Não filha, a haver um emplastro é ele. Eu estava na praia quando ele chegou. Eu estou na minha terra e ele aparece de novo. Sem dúvida, o emplastro é ele!”. E tudo acabava num sorriso maroto.
Dia 26 não, a provocação não lhe demoveu a tristeza e semblante manteve-se carregado: ” – Não, não quero falar do Marcelo. Também me desiludiu. Se tiveres com ele diz-lhe que ultimamente está mais para o socialismo do que para a social democracia. Diz-lhe que me desiludiu.”. Assim farei, prometi.
Aconcheguei-lhe os lençóis, dei-lhe uma das mãos, com a outra fiz-lhe um cafuné e ele adormeceu sereno. Voltou a receber miminhos do “filho do meio” ao final do dia e adormeceu em paz.
Deixou-nos na madrugada do dia 27.
E porque promessas, são promessas, um dia cumprirei o seu pedido. Olho no olho, como o Serginho nos ensinou. Promessas de uma filha a um pai em fim de ciclo, são para ser cumpridas!
F. R.