Este texto foi originalmente enviado para o Público há mais de uma semana. Como a espera se ia alongando e a actualidade mudando, preferi que fosse cancelada a publicação em vez de estar em marinada até não fazer sentido (a sugestão de que não valia a pena ficar mais dias na fila foi minha, não se trata de nada como na SICN, na 2ª feira, em que percebi claramente que me cortaram o pio, a sangue frio). E deste modo posso colocar a versão relativamente mais longa, não editada para caber nas medidas do espaço em papel e com uma frase adicional em relação ao original. É mais um daqueles textos que não me vai trazer grandes amizades, pelo que assim até fica com circulação mais limitada.
Nesta espécie de desconversa de surdos entre os que encaram a pandemia como uma realidade que deve ser combatida com os meios ao nosso dispor, do simples bom senso aos últimos avanços científicos e aqueles que a consideram um mero acidente de percurso, sem especial gravidade, muito empolamento mediático e aproveitamento político e comercial, estou do lado dos primeiros, mesmo se tenho poucas certezas estabelecidas.
No que se pode chamar a “gestão política da pandemia” existiram vários erros óbvios, uns nascidos do desconhecimento e ignorância, outros de um voluntarismo excessivo e alguns de evidente oportunismo mistificador. Não sendo especialista em Saúde, deixo as questões mais técnicas desta área para quem a função (e dever) de informar do modo mais completo possível a opinião pública, sem ceder demasiado aos interesses particulares ou a crenças ideológicas mais arreigadas. Mesmo se isso nem sempre se tem revelado muito viável, com muita gente mais preocupada em defender uma posição individual ou de grupo definida a priori do que em entrar em qualquer debate a sério.
Prefiro centrar-me nas questões relativas à área da Educação que foi a que, depois da Saúde, maior polémica despertou, nem sempre pelos motivos mais razoáveis. Nesta área notaram-se ainda mais as clivagens ideológicas e a irredutibilidade de preconceitos sem qualquer margem para ouvir a argumentação das partes em confronto e mudar as posições assumidas como as únicas aceitáveis. O encerramento das escolas chegou a parecer a questão central de toda a pandemia, com a discussão a ganhar tons de algum delírio e muitas acusações descabidas à mistura.
Interessa-me aqui revisitar o que desde o início me pareceu ser o argumento mais falacioso dos que defenderam o funcionamento das escolas, não interessa como, de governantes a opinadores mediáticos. O que se apresentou como fundamento mais forte para não encerrar as escolas foi o do pseudo “contágio zero” que nelas se conseguiria manter. De acordo com esta tese, defendida pelo ministro que já foi cientista e muita gente que deve ter falhado as disciplinas de Ciências no Básico e Secundário, nas escolas as crianças não seriam afectadas pela propagação do vírus e, mesmo que fossem atingidas, os sintomas nas idades mais jovens são escassos e os riscos de letalidade muito residuais, pelo que não se justificava que as escolas fechassem.
Não sendo o fecho das escolas e o indesejado regresso ao ensino não-presencial o que em tudo isto mais me incomoda, já me perturba a falácia criada e mantida de um mítico “contágio zero” que qualquer lógica mínima teria dificuldade em defender. Porque nem alguma vez houve “contágio zero” – e quem tem estado nas escolas sabe isso mesmo – nem era essa a questão fundamental. Porque o objectivo era quebrar cadeias de transmissão que podiam vir do exterior da escola e nenhuma “bolha” garantia que as escolas fossem oásis em tempos de pandemia, por muito que se tenha feito nesse sentido.
Com a população adulta por vacinar era importante que as crianças e jovens, que pouco padeceriam com a covid, não funcionassem como agentes transmissores. O que foi intensamente negado, com recurso a estatísticas sobre a incidência da doença. Só que, com os adultos vacinados percebeu-se que, com um caminho dificultado, o vírus passou a atingir de modo mais intenso a população jovem não vacinada. E de novo se ouviram as teses de que a vacinação é desnecessária (e mesmo perigosa), não devendo os mais jovens ter de se sacrificar em defesa dos mais velhos, a quem já se percebeu que as vacinas apenas dão uma defesa parcial. Porque são raras as crianças que morrem e que os casos graves ocorrem apenas quando existem factores de risco acrescido. E regressamos a uma variante da tese do “contágio zero”, mesmo quando já se sabe que isso é falso, mesmo entre os que se dizem “pela verdade”. Reabrir as escolas em todos os níveis de ensino está longe de ser sensato, como já foi sublinhado por diversos especialistas de que podemos gostar mais ou menos.
Só que a “verdade” é outra e passa por um dos lados não querer que as escolas fechem por inconveniências particulares e inclinações ideológicas e do outro porque seria impopular em tempos pré-eleitorais e porque continua por preparar uma demagógica “transição digital” na Educação. Por isso, podemos esperar por tudo, menos por decisões baseadas numa análise vagamente objectiva dos dados disponíveis, sendo muito mais práticos e fáceis (populistas) os chavões como o do “contágio zero”.