Vi ontem o programa A Prova dos Factos na RTP sobre o “caso Boaventura” e apeteceu-me escrever um longo texto a quente, mesmo se em termos substanciais a investigação pouco adiantou em relação ao já conhecido (embora os emails internos tenham um interesse acrescido na admissão do conhecimento de algumas situações). Depois pensei melhor e reconsiderei, esperando por esfriar a cabeça, se é que realmente ela tinha aquecido ou apenas recordado ambientes similares, há várias décadas, quando algumas destas figuras eram ainda apenas “estrelinhas” em ascensão.
No programa desgostou-me ainda o tom e conteúdo da intervenção do advogado convidado, extremamente relativizadora e como que a dizer “contratem-me”, como a demitida CEO da TAP contratou. Lamento, mas tanto cuidado em explicar que nada se pode fazer em termos legais e quase nada em disciplinares, por falta de prova, bateu-me em cheio nos neurónios que ainda se chocam quando alguém não nega o que aconteceu, mas apenas que possa ser provado, tipo valentim ou isaltino, mas em modo académico.
Mas adiante. A cabeça continuou quente, em especial ao ler gente que estimava intelectualmente, mesmo se desconheço em termos pessoais, a escrever algo como “quem pode acreditar naquilo, se o artigo está mal escrito e não segue as regras “científicas”? Parecendo não perceber que isso equivale a dizer que uma pessoa analfabeta nunca poderá denunciar nada ou que quem escreve com erros ortográficos não pode ter credibilidade. Ler isto ou coisas equivalente em gente alegadamente especializada em “Ética” continua a bater-me nos tais neurónios.
Por isso não vou escrever o tal texto longo, mas apenas alguns pontos sumários, sem um desenvolvimento que nos levaria a escavar coisas incómodas que conheci no passado, por observação ou audição directa, pois não sei se seria considerado pouco credível ou comprovado, pois já passou tanto tempo e… porque outro argumento que li é que se coisa não é denunciada aos berros nos 5 minutos seguintes é porque não aconteceu.
Vamos lá.
- Presunção de inocência e tal, ponto adquirido.
- O que se passa entre adultos, de forma consensual, não é connosco.
- Alguém pode ser maravilhos@ com a larga maioria das pessoas que com el@ convivem, mas pode ter práticas predatórias com uma minoria de pessoas com quem se cruzou.
- Podem existir interpretações conflituantes dos mesmos factos (vez o episódio em torno de Aziz Ansari).
- Há alun@s que praticam o assédio em relação a professor@s assim como o vice-versa.
- O assédio não é apenas de natureza emocional ou física, mas também ideológica e intelectual. Agora parece que se chama “extractivismo intelectual” a esta última forma de exploração que em tempos mais expressivos designei como “prostituição intelectual”, porque existe uma evidente componente transacional em alguns casos. E sim… tudo é feito de uma maneira que se percebe que ou se aceita (ceder trabalho sem ser referido, alterar conclusões de uma investigação, receber uma migalha do pagamento em troca de uma co-autoria em letra mais pequena) ou se salta fora.
- Existe uma “cultura de silêncio” sobre este tipo de situações no meio académico, em muitas instituições ao longo do tempo. Esse tipo de cultura é especialmente paradoxal quando envolve gente e contextos pretensamente “progressistas” e críticos das relações de poder e exploração do homem/mulher/etc sobre o homem/mulher/etc.
- Os jantares, convívios, retiros, etc existem e sempre existiram, em especial em certos ambientes académicos, uns de forma mais clara e aberta, outros de modo mais fechado.
- Há quem tenha beneficiad@ objectivamente desse tipo de “convívios” e “seduções” (em qualquer dos sentidos), pelo que não tem interesse em que certas denúncias se tornem públicas, porque lhes podem fazer recordar a sua “ascensão na horizontal”, independentemente do género e preferências. (li agora esta passagem de Bárbara Reis “Dizem-me que na academia há pessoas nervosas com o caso Boaventura de Sousa Santos porque imaginam que a sua vez chegará em breve”, com a qual concordo plenamente).
- Há quem tenha sido “vetad@”/”bloqueado”/”cancelado”, etc, por não aderir a tais práticas ou ter expressado dúvidas sobre a forma diferenciada de tratamento em termos de trabalho, acesso a apoio, bolsas, posições, etc. Digaos que foram os primórdios das “políticas de cancelamento”.
- Não me digam que o fenómeno existe, mas sempre em outras instituições, com outras pessoas, que nunca souberam de nada, que só se ouviram rumores, que nada disto é “sistémico”, porque isso me transmite a ideia de que anda(ra)m num mundo paralelo.
- Não me digam “já não me lembro”/”não disse isso nesse sentido”/”já foi há tanto tempo” ou coisas equivalentes, porque eu ainda me lembro bem de quem e quando (em contextos específicos e com certas figuras que ainda por aí andam, claro), só não tendo ficado muito interessado no como e onde. Se tivesse esse interesse, tinha lá estado.
- Isto acabou por ficar longo, mas nem queiram saber se fosse para desenvolver todos os pontos.