A publicação dos rankings levou a diversas trocas de opiniões e argumentos com gente amiga que tem uma posição diferente da minha há muito, mas com quem é possível renovar o debate sem cair apenas nos lugares-comuns do costume, mesmo se essa é a tentação da maioria dos comentários críticos nas redes socias. Neste caso, vou concentrar-me no aspecto que passou pela associação da crítica à divulgação de rankings às teses desenvolvidas por Michael Sandel no seu livro A Tirania do Mérito, ao longo do qual explicita, em mais páginas do que o necessário para compreendermos a tese sem nos entediarmos com a insistência, a sua rejeição dos ideais meritocráticos, que ele apresenta como base de uma forma de legitimação da desigualdade, da hierarquia e da desvalorização de uns indivíduos em relação aos outros, através da comparação dos seus desempenhos em determinadas áreas mais ou menos valorizadas em dado contexto histórico. A tese é mais elaborada e contempla a crítica a diversas variantes da meritocracia, devendo muito à obra The Rise of the Meritocracy (1958) de Michael Young, embora pudesse ter ganho mais consistência (e menos redundâncias) se tivesse lido um pouco do que Bourdieu escreveu sobre temas conexos ou mesmo a obra L’Inégalité des Chances (1979) de Raymond Boudon, já para não ir a The Status Seekers (1959) de Vance Packard.
Mas passemos ao argumento central que passa pelo que Sandel e seguidores consideram ser o mal original da “meritocracia” nas sociedades contemporâneas, ou seja, por levar ao exacerbar da competição entre os indivíduos para atingirem o “topo”, seja do poder político, do poder económico ou da vida académica, deixando para trás o que ele designa como “bem comum”. Antes de mais, Sandel acaba por recusar todas as variantes da meritocracia, incluindo as que promovem a redistribuição das recompensas desiguais (até o Rawls leva umas belas cabeçadas) de acordo com os “méritos”, deixando-nos sem qualquer alternativa credível que não seja uma formulação vaga em defesa de uma “igualdade” global que tem tanto de mítico como a boa e velha “sociedade sem classes”, que deu no que sabemos. Nesse aspecto, também me fez lembrar as partes em que Tim Harford descreve um sistema “ideal” de economia de mercado no seu The Undercover Economist, embora com a vantagem deste assumir o carácter irrealista e utópico de tal idealização.
Vamos lá por partes:
A meritocracia, como Sandel reconhece, surgiu como alternativa ao governo “aristocrático”, definido por grupos sociais praticamente estanques e em que o privilégio, resultante do nascimento, fechava por completo o acesso ao topo a quem não fizesse parte de um grupo restrito de famílias, que se reproduziam no poder ao longo do tempo. No entanto, Sandel considera que essa mudança, trazendo um potencial de esperança de mobilidade ascensional aos indivíduos, trouxe consigo o lado negativo de corroer a auto-estima dos não vencedores, dos que não conseguem protagonizar uma alteração positiva do seu estatuto. Sandel chega ao ponto de considerar que aquilo que podemos considerar “estabilidade” das sociedades não meritocráticas provocava menos ansiedade e estados depressivos (Alain de Botton anda também por aqui) em todos os que, sabendo o seu lugar (fixo) na sociedade, não ficavam frustrados por permanecerem na base. O que é um argumento que me custa bastante a digerir e acho que o deveria ser ainda mais para quem defende uma sociedade aberta, liberal, democrática, republicana e laica, já agora.
Porque, com defeitos e qualidades, aquilo que se entende por “meritocracia” – e a competição que lhes está associada entre indivíduos e grupos – está na essência do que é a democracia, o liberalismo político e a própria lógica da ética republicana do acesso e exercício dos cargos de governação. A Democracia é o sistema que permite a disputa eleitoral em busca dos “melhores” governantes (pensemos o que pensarmos do seu estado actual) desde Atenas e da Roma Republicana, através da comparação dos “méritos” dos candidatos existentes. O Liberalismo, na sua acepção política iluminista que está na base das revoluções anti-absolutistas, baseia-se no princípio inalienável da liberdade individual de procurar alcançar o “melhor” possível para si e os seus (o que até podemos considerar como “felicidade”, outro conceito típico dos iluministas), sem que essa liberdade esteja limitada pelos tais privilégios (ou falta deles) de nascença. E a República é a forma de governação, com base no mecanismo “competitivo” das eleições, que postula a rotatividade dos ocupantes de todos os cargos políticos e de uma ética do seu exercício que, pelo menos na pureza dos ideais, renega liminarmente o nepotismo clientelar.
Eu compreendo a atracção por associar a “meritocracia” apenas a uma deriva neoliberal exacerbada, que parece alimentar-se e em simultâneo reproduzir de forma crescentemente dramática, as desigualdades, que serão legitimadas pelos tais mecanismos de “comparação” entre os méritos (ou “talentos”) individuais. Mas isso é muito simplista e parece ignorar a possibilidade de não se definir apenas um tipo de “mérito” ou uma forma de o avaliar e de em vez de “desigualdade”, vertical e hieráquica, adoptarmos uma lógica de “diferença” horizontal, que até está dentro do mesmo espírito do tempo que vivemos (cf. The World is Flat de Tomas Friedman ou o mais antigo The Horizontal Society, de Lawrence Friedman – apelido igual, autores diferentes).
Compreendo também a sedução que muitos podem sentir por não se publicitar que os indivíduos não têm todos as mesmas capacidades nas mesmas áreas, académicas no caso dos rankings, em nome de uma ilusão de “igualdade”. Mas, mais do que uma idealização irrealista, sem sustentação na realidade humana, essa crença num estado natural de não competição é negada pelos próprios mecanismos da evolução dos seres vivos e das sociedades humanas. O “progresso” nasceu da competição, da concorrência, da busca de soluções “melhores”, mesmo que não consideremos que foram sempre as “certas”. Há quem não perceba que essa espécie de mítica comunidade primordial, onde todos têm o mesmo valor, é a base de todos os projectos político-sociais que desaguam em distopias. A indiferenciação não é libertadora, muito pelo contrário. Corresponde à anulação dos indivíduos, diluídos numa massa onde todas as cabeças são cinzentas, nem sequer umas mais escuras e outras mais claras. Pior mesmo só defender a ignorância em relação às diferenças, em tempos nos quais- paradoxalmente – se aceita o direito à afirmação de todo o tipo de identidades, ditas “alternativas” à norma dominante.
Talvez fosse boa ideia pensarmos que tudo isto está ligado, mas não da maneira que pode parecer a uma primeira vista. As aparências iludem. Assim como as boas intenções têm povoado mais o Inferno do que o Céu. Até o próprio Marx admitiu, n‘O Capital (cap. 7, secção 2), que “o caminho para o Inferno está pavimentado de boas intenções”.
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