Educare (2013, 2015, 2018- )

  • Junho de 2013

Uma greve aos exames justa

Como pai e professor sou defensor dos exames como método de avaliação externa das aprendizagens que permite uma aferição do trabalho realizado ao longo de um ciclo de escolaridade.

Como pai e professor estou profundamente preocupado com a governação na área da educação e com aquilo que no meu entender coloca gravemente em risco os ganhos importantes conseguidos nos últimos 15 anos, conforme os resultados alcançados pelos alunos no 1º ciclo nos testes internacionais PIRLS e TIMMS 2011.

Como pai e professor considero que a greve aos exames convocada para o próximo dia 17 é um ato de defesa dos interesses de todos aqueles que estão preocupados com a qualidade da educação em Portugal e não apenas um protesto corporativo.

Lamento que por razões táticas de ordem política o Ministério da Educação e o Governo tenham arrastado um processo negocial com os sindicatos de professores para um calendário que tornou praticamente impossível uma outra solução que não fosse uma greve às avaliações aos exames.

Lamento que tentem apresentar esta greve como uma espécie de confronto maniqueísta entre o MEC e os sindicatos de professores, quando o que está em causa é um conflito assumido entre os professores o Governo.

Porque o que está em causa é o exercício por uma classe profissional dos seus direitos cívicos em defesa de uma causa de interesse nacional que assim deve ser apresentada e não como uma estratégia destinada a causar danos a terceiros.

Os professores não fazem greve contra os alunos mas em sua defesa. Não o fazem para perturbar as famílias, pois também são pais de alunos com exames, mas porque querem defender o pouco que resta de liberdade num país empobrecido e praticamente saqueado em nome de interesses financeiros que têm exaurido um Estado que se apresenta falsamente como “gordo” e em que os contratos só são para cumprir se tiverem sido assinados por quem transita entre os corredores do poder político e os gabinetes dos negócios privados. E que têm o negócio da educação na sua mira, agora que esgotaram outras fontes de receita.

A greve aos exames pode parecer corporativa e tem, por certo, alguns objetivos que só aos professores dizem respeito. Mas numa sua essência mais profunda o que está em causa com esta greve é a resistência contra uma investida de desgovernação que oscila entre os sucessivos erros de cálculo e as falhas de execução.

É por isso que, como pai e professor, farei esta greve e espero que os meus colegas a façam, os alunos a compreendam e as suas famílias a apoiem.

  • Setembro de 2015

Um ministro para todas as estações

Pedem-me que escreva sobre o perfil de um próximo ministro da Educação (vou por agora deixar de parte a Ciência e o Ensino Superior, que merecem pasta própria), o que é uma missão que tem tanto de tentador quanto de temerário em alguém que leva muitos anos de críticas cerradas à maior parte da ação dos titulares da pasta. Será que, após tanto tempo a ver tudo tão negativo, há espaço e disponibilidade para pensar a função ministerial no setor da Educação por um prisma positivo?

Certamente que sim e deste modo a tentação vence o bom senso, pelo que apresento em seguida alguns pontos que considero fundamentais, na dupla qualidade de encarregado de educação e professor que quer para a sua educanda apenas e tão-só o que deseja para os seus alunos, num ministro da Educação que encare o seu cargo como um serviço ao seu país, que transcenda os limites de um calendário eleitoralista, que esteja ao serviço de princípios fundamentais de solidariedade e coesão nacional e que seja impermeável aos grupos de pressão que cada vez mais condicionam, ou dirigem a partir de fora, muitas da decisões políticas no setor.

Comecemos pelo que muitos considerarão o fim, ou seja, pelo tipo de relação que o ministro deve estabelecer e manter com aqueles que são os responsáveis pela implementação com sucesso de qualquer reforma educacional a sério: os professores, a quem a última década deixou fortíssimas marcas de desconfiança e desafeição em relação à tutela política, tanto pelo perfil autoritário daqueloutra ocupante da 5 de Outubro como pela postura indiferente do atual.

Qualquer futuro ministro da Educação deve procurar, por todos os meios, recuperar a confiança dos professores que trabalham quotidianamente nas escolas, por forma a mobilizá-los para a sua missão sem ser apenas através da imposição de normativos ou do seu amesquinhamento público, no sentido de os condicionar perante a opinião pública e publicada e os obrigar a fazer aquilo em que não acreditam. Essa mobilização passa pela sua revalorização profissional e material, após uma década de acelerada proletarização e precarização, associada a um envelhecimento do corpo docente em exercício e a uma desmobilização dos jovens candidatos à profissão, mas também pela promoção de um sentido de união e comunhão de objetivos do topo até à base, sem procurar dividir para reinar, colocando professores contra professores, diretores contra dirigidos, contratados contra “efetivos”, quadros de zona contra quadros de escola, professores de um ciclo contra professores de outros ciclos ou mesmo promovendo a desunião dentro de grupos profissionais ou áreas académicas, favorecendo os que se deixam seduzir mais facilmente pela colaboração e os que a ela resistem.

Sem esse sentimento de união, de partilha no processo de tomada de decisão a nível de escola ou central, sem a recuperação de um espírito de colaboração entre todos, as escolas podem tornar-se “unidades orgânicas” mais “eficazes” mas a sua identidade organizacional específica, a sua “alma”, continuará num processo de erosão e desagregação que a macrocefalia da rede escolar e a cada vez menor proximidade entre os órgãos de gestão, a sala de professores e as salas de aula, ajudaram a desenvolver neste século. Um futuro ministro não pode encarar os professores como adversários políticos a abater ou como peças indiferenciadas de uma engrenagem regulada por fórmulas matemáticas.

Mas um futuro ministro deve ter também, e muito especialmente, em conta que o seu cargo se destina a tomar decisões que sirvam para que os alunos das nossas escolas façam o seu percurso escolar nas melhores condições possíveis, não sacrificando os seus reais “interesses” – tantas vezes invocados em vão nas lutas políticas – aos interesses particulares de agentes presentes no chamado “mercado da Educação”. Assim como famílias e alunos merecem – e é seu direito – um serviço público de Educação de qualidade, que não promova o agravamento de desigualdades, seja entre ensino público e privado (puro ou em parceria), seja no seio da rede exclusivamente pública.

Os currículos não podem ser definidos por nichos académicos ou editoriais, as regras e critérios da avaliação, nomeadamente a externa, não podem mudar ao ritmo das eleições ou humores dos políticos em trânsito, as escolas não podem dividir-se em ricas e pobres conforme o poder de persuasão ou pressão de autarcas ou as amizades dos diretores no interior da máquina do ministério. Os materiais escolares no ensino “obrigatório, universal e gratuito” não podem ser obrigatórios, universais e com custo exponencial; as refeições escolares não podem ser contratualizadas pelo valor mais baixo cobrado, em regime de oligopólio ou mesmo monopólio em algumas zonas do país. Os alunos não podem ser tratados como mais uma variável numérica onde já encerraram pessoal docente e não docente.

Se de acordo com o(a)s sucessivo(a)s ministro(a)s da Educação, os alunos é que são a razão de ser do ministério e são o centro da Educação, os seus “interesses” não podem ser “defendidos” apenas quando se trata de os colocar artificialmente em oposição aos dos professores.

Não me parece que seja do interesse dos “alunos” ou das suas “famílias” (nas quais me incluo) que a Educação tenha passado a estar ao serviço de políticas que promovem de forma consciente e ativa o agravamento de um país assimétrico, socialmente injusto, a duas ou três velocidades, e em que os serviços públicos abdicaram de promover o desenvolvimento e batem em retirada após análise de rácios redutores de custo/benefício, legitimando o despovoamento e reforçando diversas centralidades macrocéfalas. Políticas que, para além disso, têm colocado o funcionamento das escolas ao serviço da desregulação dos horários laborais dos pais dos alunos.

Um futuro ministro da Educação deve preocupar-se em chegar à pasta com o olhar “limpo” de pré-soluções infalíveis, para as quais se encomendam estudos comprovativos; não pode ser um peão nos jogos de influências em torno da mesa do orçamento e deve exigir transparência e equidade a todos os estabelecimentos de ensino que pretendam ter verbas públicas, não fazendo exigências apenas às escolas que tutela diretamente e permitindo a opacidade às que subsidia.

Um futuro ministro da Educação não deve chegar deslumbrado por sê-lo ou disponível para aceitar uma qualquer equipa de secretários de Estado definida por jogos de poder partidários. Ou tem poder para escolher quem o vai ajudar ou não serve como ministro, não passa de um diretor-geral com mais ajudas de custo.

Um futuro ministro da Educação deve ter a cortesia de ouvir os que o antecederam, mas não tem a obrigação de lhes herdar os traumas ou fantasmas. Não deve, por exemplo, continuar a pactuar com a redução e desqualificação dos serviços ministeriais com medo de “monstros” no aparelho.

Em suma, um ministro da Educação deve ter orgulho em o ser, mas não por ver o seu nome associado a mais uma “reforma estrutural” ou por ter conseguido enormes conquistas estatísticas em matéria de “sucesso”. Deve ter orgulho, isso sim, em prestar um serviço ao seu país, sendo que o país não pode estar melhor, quando as suas crianças e os seus jovens não o estão e crescem numa sociedade mais desigual e injusta, em que a Educação é considerada um encargo financeiro e não um investimento com futuro. Em que os alunos não são tratados como futuros cidadãos.

  • Novembro de 2018

Uma Mistura Explosiva – Parte I

Fala-se e escreve-se muito nos últimos tempos sobre Cidadania e a importância que tem a Educação para a sua promoção e para a formação de cidadãos responsáveis. No entanto, poucas vezes se fez tanto, em democracia, para a formação de uma nova geração de cidadãos incapazes de lidar com a multiplicação da informação disponível, através da desvalorização do Conhecimento e da promoção de “competências para o século XXI” que parecem pairar sobre um vazio imenso. Proclama-se a necessidade de uma Educação para o século XXI, mas despreza-se todo o trajecto cultural e científico que nos trouxe à actual era que se apresenta como sendo quase em exclusivo “tecnológica” e em que o contexto histórico é desprezado e os saberes “tradicionais” são assim qualificados como se isso fosse pejorativo.

Assistimos à promoção de uma Educação Mínima (talvez a possamos chamar de “aprendizagens essenciais”) que tem como efeito a promoção activa da Ignorância, disfarçada por retóricas que apresentam os “Conhecimentos” como algo “empilhável” e muito relativo, em que Ciência e Crença são apresentadas quase (ou mesmo) como equivalentes. Através de jogos hábeis de palavras apresenta-se como flexibilidade o que é truncagem ou amputação e como promoção do “pensamento crítico” o que na verdade é a sujeição a uma lógica transnacional para reformas curriculares que expurgam ou menorizam como a Filosofia ou a História, que se apresentam como “chatos” comparativamente ao apelo dos conteúdos fornecidos pelos meios digitais.

O resultado é a formação de uma maioria de cidadãos com um enorme défice para lidar com uma multiplicidade de informação que lhes surge por imensos canais, pois falta-lhes a capacidade para selecionar e dar sentido a essa informação, integrando-a no seu contexto.

Há perto de vinte anos, quando ainda a internet dava os seus segundos passos e era difícil imaginar como se fragmentaria e multiplicaria o panorama comunicacional global, Paul Virilio escreveria, com o pretexto do conflito no Kosovo, que “enquanto no passado eram a falta de informação e a censura que caracterizavam a negação da democracia pelo estado totalitário, o oposto é agora o caso. A desinformação é conseguida inundando os telespectadores com informação, com dados aparentemente contraditórios. A verdade dos factos é censurada pela sobre-informação (…). Agora, mais é menos. E em alguns casos é menos do que nada. A manipulação deliberada e os acidentes involuntários tornaram-se indistinguíveis” (Strategy of Deception. 2007, p. 48). E mais adiante acrescenta que “com a ‘libertação da informação’ na web, o que mais falta é significado ou, em outras palavras, um contexto em que os utilizadores da Internet possam colocar os factos e assim distinguirem a verdade da falsidade” (Idem, p. 78).

É falso que a “competência” para usar as tecnologias corresponda a uma capacidade de selecção de informação, a qual só se consegue com bases sólidas de conhecimentos e das técnicas/metodologias fundamentais para o estabelecimento do chamado “método científico” que permite distinguir o falso do verdadeiro, sem relativismos oportunistas, diferenciar o que é falsificável do que foi falsificado, separar correlações falaciosas do que são causalidades lógicas.

  • Dezembro de 2018

Uma Mistura Explosiva – Parte II

Cidadãos ignorantes são vulneráveis aos discursos que promovem o Medo. Porque não têm as ferramentas para ir além do uso das novas tecnologias e do acesso à informação, falsa ou não. Os populismos na sua variante puramente demagógica e falsificadora crescem em ambientes em que o aumento do acesso à informação (e mesmo à “cultura”) vai a par do crescimento exponencial de uma iliteracia/ignorância funcional. Em que a torrente “informativa” aumenta a insegurança e o Medo. Um Medo útil.

É de novo Paul Virilio que escreve que a “administração do medo, significa também que os Estados são tentados a fazer do medo, da sua orquestração, da sua gestão, uma política (…). O medo torna-se um ambiente no sentido em que realiza a fusão do securitário (…) e do sanitário” (L’administration de la peur. 2010, pp. 16, 47).

Um Medo que desperta instintos de defesa contra o desconhecido, o diferente, que não se consegue compreender, que é necessário conter, limitar, muralhar, censurar, apagar. E a “Sociedade do Conhecimento” torna-se, mesmo em países desenvolvidos, uma Sociedade da Ignorância que promove a exclusão do que é encarado como ameaçador. A Crença (irracional) supera a Ciência (racional). As soluções autoritárias baseiam-se nos medos irracionais e promovem discursos activamente anti-científicos. Apaga-se a Memória e faz-se acreditar que é possível recomeçar, todos os dias, em cada aula, em cada momento, todo um edifício que levou séculos, milénios a erguer.

Nem sequer existe qualquer preocupação em elaborar um discurso coerente, pois aposta-se no efeito de apagamento que uma informação pletórica produza nos indivíduos. As “redes sociais” que se elogiaram como grandes responsáveis pela expansão das reivindicações democratizantes durante a “Primavera Árabe” são as mesmas que se diabolizam como estando “a matar a democracia” (Jamie Bartlett, The People vs Tech. 2018), em especial quando, quase ex nihilo, se descobre que elas podem amplificar o fenómeno das fake news, dos “factos alternativos” e da “pós-verdade” (Mathew d’Ancona, Post Truth – The new war on truth and how to fight back. 2017).

A Educação é sempre parte importante da solução para romper qualquer ciclo vicioso em que os factos são truncados, manipulados e a “Verdade” é relativizada ou transformada em outra coisa. Assim como a preservação da Memória Colectiva é indispensável para qualquer “pensamento crítico” fundamentado.

Mas isso só é possível com uma Educação verdadeiramente “integral”, em que esse termo não signifique exactamente o seu oposto. Uma Educação assente em saberes fundamentais e não em selecções arbitrárias de conteúdos “essenciais”. O caminho para uma Cidadania plena só pode ser feito através da capacidade para contextualizar e comparar a Informação.

Mas isso não se alcança com uma Educação Mínima. Relativista. Generalista. Essa é a que oferece apenas o “essencial” para dar uma aparência de universalismo democrático. Cria uma ilusão. Disfarçada com uma linguagem de boas intenções. Mas que promove uma massa de cidadãos facilmente manipuláveis. Pelo bombardeamento de informação. A falsa. A do Esquecimento. A que aposta no Medo. Que justifica o aparecimento (ou eternização) de “salvadores” no Poder.

  • Janeiro de 2019

O Porquê das Coisas

Já terminara o meu curso de História há 2 anos quando li O País das Águas de Graham Swift. Consta da minha anotação – ainda as fazia, livros com dinheiro próprio eram ainda coisa rara – que o comprei em Julho de 1989, sendo que a ficha técnica indica a edição (da D. Quixote) como sendo registada em Dezembro do ano anterior. Li-o deliciado, como uma preciosidade que me devolvia o encanto que a História exercia sobre mim e justificara a escolha académica feita a contragosto familiar. Em forma de ficção, explica de forma magistral o que move quem quer conhecer mais sobre o que aconteceu, como podemos ler o presente e buscar a explicação acerca dos fenómenos. A pergunta “porquê” surge de forma frequente nas deambulações do professor Crick, nos diálogos que estabelece com os seus alunos, quase como uma obsessão.

“Meninos, não deixem de perguntar Porquê. Não parem com os vossos Porquê, professor? Porquê, professor? Embora seja mais difícil quanto mais vezes vocês o perguntarem, embora seja mais inexplicável, mais doloroso e a resposta nunca pareça ser a correcta, não tente fugir a essa pergunta – Porquê.” (p. 104)

Usei esta citação num dos meus primeiros textos publicados e nunca a esqueci enquanto professor: não se manda calar o aluno que questiona de forma interessada uma explicação que se está a dar, quanto muito pede-se para esperar um pouco, para ver se a resposta está logo adiante. Nos tempos em que vivemos, de nevoeiro imenso e uma realidade reconstruída na base de preconceitos difusos mas fortemente mistificadores e de representação burocrático-estatística do que acontece nas escolas, parece que os professores não o fazem. Desde sempre. Pelo menos, aqueles que se preocupam com as aprendizagens dos alunos, muito antes de artificiosos “perfis”. O diálogo é essencial e sem ele não existe relação pedagógica. Um diálogo destinado a esclarecer, aprofundar, confrontar perspectivas. Em qualquer século, o XXI ou outro qualquer. O estudo da História é muito importante para o compreendermos, talvez sendo por isso que se tornou uma disciplina a salamizar.

Questionar o que é enunciado e carece de explicação é tão ou mais importante quando saímos da sala de aula e entramos na esfera das decisões políticas, da forma como são tomadas, preparadas ou divulgadas.

Quando se anunciam ou apresentam como estando já em desenvolvimento medidas com implicações importantes, deve ter-se a humildade – ou “o espírito democrático” em politiquês – de fazer mais do que as fundamentar em estudos não identificados, remeter para uma fonte única (vivemos a tutela da OCDE, que se alimenta de dados fornecidos por quem depois os recebe como se fossem externos) ou mencionar “alguns países” onde já estarão em aplicação, sem os identificar com clareza e em que condições.

Há semanas, um governante (João Costa) anunciou em entrevista a um diário digital (Observador) e numa conversa numa televisão (TVI24) que se prepara um sistema destinado, na prática, a terminar com qualquer retenção dos alunos. Apoiou-se em frases do tipo “todos sabemos” ou “todos os estudos indicam”, assim como disse que “há países que já o fazem, que não têm retenções nas escolas”. Ponto final, sem que alguém perguntasse quais, desde quando, em que moldes e com que resultados. Não acredito (sou optimista) que medidas deste tipo sejam apresentadas sem algum estudo prévio.

É um imperativo questionarmos estas soluções, em especial quando se apresentam como uma espécie de modelo único. Porquê? E, logo a seguir, questionar se existe fundamentação empírica que não seja auto-referencial. A Democracia deveria ser isto. Mas parece que, por estes dias, perguntar sem guião previamente acordado é quase uma ofensa.

Porquê?

If there’s something you’d like to try
Ask me, I won’t say no, how could I?
(Morrissey, 1986)
  • Fevereiro de 2019

Da Utopia à Ficção Útil

Não é que considere errado o desejo de algo perfeito e por extensão socialmente justo e individualmente compensador. Pelo contrário, se não nos guiarmos por ideais, deixa de existir um rumo e sentido para as nossas acções. O que me irrita, que sou pessoa assumidamente imperfeita e por certo inadequada para viver numa qualquer ilha distante de profundamente aborrecida fraternidade, é que o recurso à “utopia” é tantas vezes feito para legitimar práticas que nos conduzem a realidades bem distantes de qualquer estado ideal de imaculado bem comum. Não é raro que a “utopia” não passe de justificação para a imposição de credos de facções ideológicas específicas que assim julgam ter conseguido o argumento decisivo para arrasar qualquer crítico.

Quem ousa criticar a “utopia”, o “sonho que comanda a vida”? Quem pode estar contra uma Educação Ideal, Integral, Humanista, Solidária, Inclusiva, de Sucesso? Só mesmo alguém naturalmente insensível, cruel e intolerante. Ou então, proponho eu como alternativa, alguém que tente ver, para lá da “narrativa das utopias”, o modo como se operacionaliza, no concreto, o caminho para os amanhãs radiosos.

Sempre encarei os activistas “utópicos” como sendo anti-sistema, anti-poder, como alguém que quer lutar contra o que está e o que é injusto, não cedendo à tentação de fazer parte da corte dos poderosos. Mas, nos dias que correm, encontro estes “fazedores de utopias” encostados ao “sistema” e ao poder que está, mais preocupados na sua manutenção e no aperfeiçoamento das engrenagens que tolhem a liberdade e a justiça que tanto proclamam, mas poucos praticam e muito menos admitem se for para contrariar os modelos únicos de virtude. É por essa altura que acho que o seu domínio é mais o da ficção. Da ficção útil à narrativa de um smart power, que esvaziou as palavras de sentido e que, para usar mais algumas ideias de Byung-Chul Han, aposta na promessa de mais liberdade e escolha (leia-se “autonomia e flexibilidade”) para nos tornar menos livres (Psychopolitics, Londres: Verso, 2017, pp. 1ss)

É curioso que raramente tenha lido estes “utopistas” sobre temas que, na sua terrena condição, tornam a vida nas escolas cada vez mais servil. Não os li ou ouvi sobre a forma como a gestão escolar se resumiu a um modelo hierarquizado, baseado na obediência e nomeação, com pulverização dos princípios democráticos, embora falem muito em trabalho colaborativo. Não os li ou ouvi sobre a prevalência dos critérios da “racionalidade financeira” no encerramento de escolas de proximidade e o desenraizamento precoce de crianças das suas comunidades, apesar de os ler defender profusamente medidas em defesa do “interesse dos alunos”, Não os li ou ouvi intervir de forma clara contra as sucessivas narrativas produzidas pelo poder sobre a carreira docente e os seus encargos, mesmo se fazem elogios frequentes, vazios de significado, em prol da dignidade docente. Dignidade docente que parece apenas ser reconhecida a quem adere às suas utopias particulares e se deixa doutrinar sem revolta em “formações” frequentemente com contornos muito pouco utópicos.

Em caso de dúvida, perante a ficção do poder a que se acomodaram, optam pelo silêncio sobre as questões incómodas, refugiando-se na nostalgia das leituras de outrora e quase se convencem que ainda estão do lado dos oprimidos e que não são uma útil ferramenta da psicopolítica do sucesso low cost.

  • Março de 2019

Que Inclusão queremos?

O grande desígnio aglutinador da retórica deste governo na Educação, mais do que a “flexibilidade” ou até o “sucesso”, centra-se num conceito peculiar de “inclusão”. A “flexibilidade” é, neste contexto, uma ferramenta para a “Inclusão”, a qual se torna o factor central da métrica do “sucesso”. Gostaria de deixar claro que a “inclusão” é um fim nobre, meritório em si mesmo e que nada me move contra tal desígnio. O que me deixa preocupado são os meios que têm sido mobilizados, como se tal fim justificasse de tudo um pouco, ao ponto de a “inclusão” ser feita com procedimentos e mecanismos que acabam por produzir fenómenos de exclusão.

Por definição, qualquer conceito racional e razoável de “inclusão” deve orientar-se pelo princípio de procurar incluir todos e não apenas alguns, ou subordinando todos a uma das suas partes, em especial quando estamos a falar de uma Escola Pública universal e obrigatória. Até porque incluir “todos” não pode significar incluir “tudo”.

Sim, claro, há a quem por preconceito social, forma de estar na vida ou por opção cultural, o ideal e a prática de uma Escola Pública para todos cause aversão. Posso discordar, após quase cinco décadas enquanto aluno, professor e encarregado de educação na Escola Pública, mas tenho de aceitar esse tipo de atitude, em especial se não vier acoplada com um pedido de cheque-ensino.

Só que, como ia escrevendo acima, a Escola Pública para “todos” não deve, nem pode, aceitar “tudo”, nomeadamente ao nível dos procedimentos e imposições de modelos únicos, da gestão à pedagogia, assentes de forma paradoxal numa lógica relativista quanto ao valor do Conhecimento. Há uma enorme diferença entre a “plasticidade” e a amplitude de soluções e propostas a acolher na Escola Pública, para que exista lugar para todos, e a aceitação de um relativismo cultural e ético como padrão de comportamento em nome de “boas intenções” ou de concepções ultrapassadas de um “século XXI” em que há muito vivemos. Porque isso acaba por provocar uma inevitável “repulsão” em quem encara a Escola Pública como referencial para a formação das “novas gerações” e não apenas como um albergue onde tudo vale o mesmo.

Passo a exemplificar um pouco do que não pode ser justificado com qualquer conceito de “inclusão” por mais pergaminhos que exibam os seus promotores, só faltando mesmo citarem a Magna Carta.

A “inclusão” e a “tolerância” não podem, desde logo, pactuar ou condescender com comportamentos que transformem os espaços escolares e as salas de aula espaços inseguros para alunos e docentes, seja do ponto de vista físico, seja moral. A relativização ou contextualização de comportamentos que agora se dizem “disruptivos” não pode atingir níveis que de tanto compreenderem os agressores, esqueçam as vítimas.

A necessária renovação curricular não pode passar por práticas de desvalorização do capital cultural ou conhecimento científico em favor de “saberes fazer” de duvidosa vantagem num presente que já é de hiper-especialização e em que a flexibilidade apenas parece ser uma vantagem para quem vive da precarização da mão-de-obra. O novo lumpen terciarizado é intermutável mas um neurocirurgião nunca poderá ser trocado por um engenheiro informático.

A pedagogia para ser “autónoma” e “flexível” não pode ser de sentido único. Não pode enquistar-se nas crenças, quase ao nível da Fé que implica a aceitação sem crítica, deste ou aquele nicho académico ou grupo de interesses. Muito menos a profissionalidade dos docentes deve ser desqualificada, desvalorizando os seus saberes ou burocratizando de tal forma o seu exercício que se torna mais importante representar o acto pedagógico do que a sua efectiva prática.

  • Abril de 2019

Os Profissionais do Truque

Recordemos: os cursos profissionais têm sido apresentados como a via para prosseguir estudos destinada a alunos que não se revêem num modelo curricular tradicional e com uma menor apetência pelo prosseguimento de estudos universitários. O argumento nuclear foi que esta resposta visava colmatar uma lacuna no próprio tipo de qualificação da população, e que a via profissionalizante visava formar uma nova geração de profissionais em áreas técnicas que revelavam carências. E afirmava-se com clareza que “nem todos querem ser doutores” e que a prioridade seria a entrada no mercado de trabalho. No Diário de Notícias, em artigo de “opinião da direcção” (3 de Abril de 2017) escrevia-se contra “quem ainda acredita que só a universidade pode garantir um futuro profissional condigno – e que claramente não olha para os números do desemprego jovem, que entre licenciados se mantém há cinco anos acima dos cem mil portugueses” e declarava-se que “a sensibilidade em relação aos cursos profissionais parece ter mudado e hoje é uma ambição assumida também pelo atual governo que mais de metade dos alunos cumpram o secundário neste modelo”, seguindo-se estatísticas de empregabilidade rápida para quem frequenta estes cursos na Europa.

Mas, começaram a acumular-se sinais que as coisas não seriam bem assim e que a via profissionalizante se poderia tornar uma via rápida para o acesso a estudos superiores ou algo parecido. Já com Nuno Crato (Março de 2014) tinham sido criados os Cursos Técnicos Superiores Profissionais de dois anos, a leccionar em Institutos Politécnicos, dando qualificação de nível V a quem os frequentasse com aproveitamento.

Com o actual governo percebeu-se rapidamente que se pretenderia ir mais além. Há dois anos, em Março de 2017, num debate na Escola Profissional do Fundão, já o secretário de Estado João Costa afirmava que “”Portugal ainda não meteu na cabeça que o 12.º ano do curso de pastelaria é tão válido e tão digno como o 12.º ano do curso de línguas e humanidades.” Curiosamente, não afirmou do curso de “ciências e tecnologias”, mas eu acredito que não fosse preconceito, apenas uma certa forma de pensar.  Um ano depois (7 de Março de 2018), no Diário de Notícias, dava-se a conhecer que mais de 80% dos alunos dos cursos profissionais não seguiam estudos universitários. Mais um mês e anunciava-se que os alunos dos cursos artísticos e profissionais “passam a estar nas mesmas condições que todos os outros para entrar no ensino superior, acabando-se com ‘requisitos discriminatórios’”.

Agora foi dado o passo além… após eliminar “requisitos discriminatórios”, o governo decidiu que os alunos dos cursos profissionais nem seriam tratados de forma igual, pois a nova cartilha é que, afinal, não são bem iguais, apesar de terem a mesma dignidade, e decidiu-se que nem exames de acesso à Universidade devem fazer, deixando a estas a regulação da entrada destes alunos.

Para além de desvirtuar por completo o que foi sendo afirmado ao longo dos anos, isto cruza-se com o facto de muitas instituições do ensino superior e politécnico precisarem desesperadamente de alunos. Claro que os provenientes dos cursos profissionais só como excepção conseguirão ultrapassar provas de acesso nas Faculdades de topo, daquelas em que as aulas são dadas em línguas que o currículo dos profissionais deixou pelas “aprendizagens essenciais”. Porque as Business Schools e outras instituições assim só em termos retóricos estarão interessados nos profissionais de pastelaria do Secretário João Costa.

Preconceito? Sim, da parte de quem toma medidas para que o Ensino Secundário se torne irrelevante para o acesso à Universidade e que o Ensino Superior ande a duas ou três velocidades, num sistema dual e desigual.

  • Maio de 2019

A Guerra dos Tronos, Morte e Memória

Na última temporada de A Guerra dos Tronos, enquanto crescia a tensão perante o ataque do exército dos mortos a Winterfell, o personagem Brandon (Bran) Stark explicava porque o Rei da Noite viria em sua busca, independentemente do resultado da batalha em decurso. A sua explicação era simples: enquanto Corvo dos Três Olhos, Bran tornara-se o receptáculo da Memória do mundo dos vivos, do passado do mundo dos Sete Reinos. Nesse sentido, era o alvo principal do chefe das forças da Morte. A permanência da Memória significaria a vitória da Vida perante a Morte. Por isso, a Morte procuraria, por todos os meios, apagar a Memória.

O mundo da fantasia literária e da versão televisiva da saga épica de George R. R. Martin faz-me ecoar aspectos do nosso presente educacional, em que a actual facção com o poder de definir as opções curriculares do Ensino Básico e Secundário se mostra seduzida por uma ideologia que secundariza as disciplinas relacionadas com a transmissão do que é a Memória do passado comum da Humanidade, não apenas no sentido mais estrito da História mas no plano mais alargado da própria herança cultural e científica.

Muitas das reformas em implementação ou consolidação parecem fascinadas pelo presente e por uma projecção simplista das necessidades de um futuro concebido como o do triunfo de uma tecnologia desumanizada, que tornará desnecessários os saberes “tradicionais”, arcaicos, meramente “enciclopédicos” e, portanto, inúteis. Em que a História se pode servir às fatias, a Filosofia ser circunscrita a um gueto residual, a Literatura render-se a um cânone de onde se expulsa o que é “chato” e em que a própria Ciência só é valorizada se revelar a sua utilidade no contexto de uma sociedade fascinada com a mecanização low cost do trabalho. Em que os suportes digitais se tornam as únicas vias de acesso a uma informação depurada e virtual, sem o incómodo do espaço físico ocupado pelos livros. Em que os dedos deslizam, de forma célere e superficial, sobre ecrãs e não servem para manipular, sopesar, virar as folhas de um livro impresso. Em que o olhar persegue imagens em movimento, numa aceleração incompatível com a reflexão. Em que os ficheiros se acomodam em gadgets com brilho mas sem o cheiro do papel e da tinta.

Assistimos à exaltação do epidérmico, do circunstancial, da moda em trânsito, do arrobo passageiro, do efémero elevado a algo que não é. Lipovetsky, Virilio, Baumann escreveram abundantemente sobre os perigos de ceder a esse tipo de seduções, próprias de um pós-modernismo fascinado pelo esvaziamento e relativização dos conceitos, mesmo quando tudo nos aparece enroupado nas melhores das intenções

N’A Guerra dos Tronos, o combate entre os exércitos da Morte e da Vida é uma poderosa metáfora, até pela simplicidade com que opõe as Trevas à Luz. Os mortos recuam perante o fogo, a luz, mas apenas de forma temporária; ao fim de algum tempo conseguem ultrapassá-lo e a ameaça das trevas permanece. Mas s derrota da Vida só é completa se para além dos indivíduos for eliminada a sua Memória colectiva. Sendo que não podemos esquecer que entre os vivos há aqueles que, como em Westeros, de forma oportunista, ficam na expectativa, achando que podem beneficiar da situação, evitando intervir no combate decisivo. Um pouco como os que, no presente, preferem adaptar-se a quaisquer Situações, abdicando de incómodas convicções.

Só que a defesa da Memória não se compadece com omissões e colaboracionismos de ocasião. Porque a sua erosão é crítica para a construção da nossa identidade enquanto humanos e a sua perda significaria uma derrota da própria Humanidade. Por isso, o Inverno não pode chegar à Educação.

  • Junho de 2019

A Escola da Abstenção

Na sequência de mais um nível quase inédito de abstenção em Portugal, em contra-ciclo com a generalidade da Europa, nas últimas eleições europeias, surgiram os habituais profetas da desgraça pretérita a fornecer explicações diversas acerca do fenómeno que consideram crítico para a vida democrática.
Sem terem dados socio-demográficos sobre o voto que permitam avançar com hipóteses explicativas sólidas, enveredaram pelo chavão fácil, pelo lugar-comum mais simplista e decidiram baralhar causas e consequências. A abstenção não é uma causa da degradação da Democracia é uma consequência dramática da percepção da erosão dos mecanismos de funcionamento da Democracia e da crescente inutilidade de uma ritualização bissexta do voto como forma de legitimar uma classe política que se foi encapsulando em si mesma e reproduzindo redes de interesses, favores particulares e mesmo corrupção a céu aberto, a nível local e nacional.

A abstenção não é a doença da Democracia, mas sim um sintoma claro da doença que há quem não queira reconhecer que se instalou em diversos dos seus órgãos. A mediocridade da vida política que vivemos causa a abstenção e não o seu contrário.

Apressado, apesar de mudo e quedo em tantas outras matérias o ministro da Educação apressou-se a dizer presente e sobre o assunto e juntou-se ao coro das lapalissadas ao afirmar que “muitos milhares de cidadãos foram votar, mas muitos outros milhares – mais ainda – abdicaram de o fazer.” E com toda a resolução e certeza transmitida pela ausência de demonstração empírica, acrescentou que “há um número muito alto de abstenção entre os jovens”. O que não deixando de ser verdade, por mera dedução, ainda não tem qualquer confirmação em estudos pós-eleitorais.

E, achando que deve “agir” acrescentou a sua solução universal para todas as maleitas existentes ou por existir no mundo: “a escola tem um papel fundamental” no processo de “criar sociedades livres, democráticas e sustentáveis” (cito notícia do DN de 26 de Maio). Sim, claro que tem, mas para isso não basta teorizar, proclamar, produzir uns decretos, dar “formação”, sugerir umas abordagens transversais da temática. É muito mais importante dar o exemplo, dentro e fora da Escola, que a Democracia vale a pena, que o modelo democrático é essencialmente o mais justo para os cidadãos e que a tal “Cidadania” deve ter tradução prática numa intervenção cívica permanente, não apenas nas grandes causas com certificação superior (“defender o Planeta”), mas também em micro-causas que reforçam a confiança de proximidade no regime democrático.

Só que a vida quotidiana das escolas está longe de demonstrar as vantagens de um sistema corroído a partir de dentro e incapaz de gerar confiança. O ministro diz que “é preciso uma prática diária para que a cidadania se cumpra”, mas pouco ou nada tem sido feito para que isso seja visível nos espaços escolares, não se devendo confundir a defesa da Democracia com uma abordagem relativista e “colaborativa” do Conhecimento em que tudo é equivalente, da mera crendice local a descobertas científicas estabelecidas.

O impulso para votar e exercer a cidadania de uma forma pró-activa e interveniente está directamente relacionado com a observação da eficácia de tal acto. A defesa activa da Democracia não se pode confundir com a mera legitimação quadrienal de “representantes” de uma soberania que é retirada em todos os outros dias aos representados e que, desde as revoluções liberais dos séculos XVIII e XIX, são apresentados como a sua fonte.

O combate à abstenção começa pela melhoria do funcionamento da Democracia, pela demonstração da sua capacidade de regeneração e aperfeiçoamento. A Escola e a Educação têm um papel muito importante a desempenhar, ao explicarem como ela foi construída historicamente, com que sacrifícios e dificuldades. Sem ser com base apenas em episódios tido por “essenciais” mas como um processo secular, milenar, de melhoria das sociedade humanas. A Cidadania e a Democracia podem aprender-se nas escolas. Pelo exemplo. Pela prática. Só que infelizmente cada vez elas são mais um espaço de erosão do seu exercício.

  • Julho de 2019

O reino deles não é do nosso mundo

Uma das áreas em que se faz sentir de forma mais profunda uma enorme clivagem, diria mesmo desvinculação, entre o quotidiano terreno de uns e os discursos celestiais de outros passa pelo que estes insistem em doutrinar como o “ensino para os alunos do século XXI” e que se concretiza na apresentação orgulhosa de “salas do futuro” que fazem a criança em mim que outrora se maravilhou com o O Caminho das Estrelas e o Espaço 1999 e ainda não feneceu, interrogar-se acerca da pobreza imaginativa de quem acha que distribuindo umas cadeiras coloridas com rodinhas e uns quantos computadores ou tablets numa ou duas salas, em escolas cuidadosamente seleccionadas, se consegue uma Primavera Tecnológica. Ainda pior quando se apresentam “salas do futuro” inauguradas há alguns anos, sem que desde então tenham mudado, o que imediatamente as torna salas do passado.

A forma como se repete um discurso simplista, diria mesmo simplório, e deslumbrado com o “século XXI” e toda uma “revolução digital” deixa-me, para além de desgostoso com a evidente falta de leituras de antecipação científica (basta ler o Ender’s Game/O Jogo Final de Orson Scott Card de 1985 para se ter uma visão muito mais avançada de ambientes digitais de aprendizagem), bastante convencido que há quem viva num Reino que não é do mundo comum em que a maioria de nós se move na rede pública de ensino. Onde a larga maioria das salas apenas dispõe de um computador para o professor tentar cumprir as suas obrigações burocráticas enquanto a rede funciona; onde a banda larga é de uma estreiteza atroz que inviabiliza actividades que exijam a participação simultânea de uma dezena de terminais; onde as condições de luminosidade tornam quase impossível uma utilização adequada dos alvos quadros interactivos, em virtude de estores ausentes ou meramente danificados sem que exista verba para os reparar; onde as cadeiras e mesas, ainda mais do que os próprios docentes que agora se descobriu que avançam na idade com a passagem do tempo, padecem de um notório envelhecimento material que as torna relíquias, elas sim, das “escolas do século XX”. Onde, enfim, sobreviver no presente se torna a principal preocupação humana, mais do que qualquer aspiração a uma cibernética inteligência artificial.

Pode parecer que estou a carregar em excesso nos traços sarcásticos de uma caricatura que não fará justiça a tudo o que se passa nas nossas escolas. Sim, pode ser, mas é a reacção que me despertam certas divagações carregadas de clichés requentados ou delírios de grandeza inovadora de uma clique de auto-proclamados “líderes” educacionais que nos querem fazer acreditar que a excepção é a regra excepcional. E que eles são excepcionais.

A Educação fez grandes progressos nas últimas décadas, mudou muito mais do que lhe é reconhecido, mas é evidente que precisa repensar-se e avançar por novos caminhos. Mas isso dificilmente pode acontecer quando a visão do “futuro” se cristalizou há mais de uma geração ou depende dos discípulos de quem já há muito abandonou este mundo, erguendo-se ao Olimpo dos Pedagogos. Ou Pedabobos, como dizia um amigo que espero leitor destas linhas.

  • Agosto de 2019

O último mês do início das vossas vidas

Mas este também foi o ano em que, para além da aplicação dos chamados “decretos gémeos” (os dl 54 e 55), se começou a generalizar o modelo da Educação Municipalizada, a que chamam “descentralização de competências na Educação”, que tornará as escolas e agrupamentos dependentes de uma dupla tutela, uma mais distante e outra de proximidade.

O ano de 2019-20 ficará marcado pela imposição, com maior ou menor colaboração por parte das direcções escolares, de uma alteração exógena do da gestão escolar que, depois do modelo único de lideranças unipessoais, colocará as “unidades orgânicas” escolares de grande parte do país na dependência do poder autárquico, seja do seu presidente, seja de um vereador ou, no caso de municípios com uma rede escolar mais vasta, de um qualquer chefe de divisão ou técnico superior, para quem são transferidas competências que antes estavam nas escolas (e praticamente nenhuma do poder central).

Este novo “paradigma” é fundamentado com uma retórica de gestão de “proximidade”, mais “conhecedora das realidades locais” e tenta justificar-se com a “legitimidade democrática” dos eleitos locais para gerirem a Educação nos limites dos seus concelhos. Acerca disso haveria a apontar diversos erros e paradoxos, sendo que, em pleno Estio, me ficarei por duas questões.

A primeira, relaciona-se com toda a engenharia financeira que envolve este processo, porque esta “transferência de competências” é apenas um pretexto para redireccionar verbas europeias (programa Portugal 2020) para as câmaras, alegando que assim será mais eficaz a concertação de estratégias para combater o abandono e insucesso escolar, mesmo se o poder político clama que esses indicadores estão em mínimos históricos. É uma das formas usadas para robustecer as finanças locais, enquanto publicamente se multiplicam queixas quanto à magreza do “envelope financeiro” envolvido. Mas basta consultar as verbas mobilizadas para “planos inovadores de combate ao insucesso escolar” ou afins para se perceber os muitos milhões de euros em causa.

A segunda passa pela transformação do que até agora têm sido, apesar de muitas limitações, organizações com algum nível de autonomia em novas extensões da estrutura administrativa autárquica, em que @s director@s se transformarão numa variante de directores de serviços, em que muitas decisões deixarão de ser tomadas nas escolas, migrando para os gabinetes das burocracias locais que, com todas as honrosas excepções que possamos achar, têm uma competência técnica para estas matérias inversamente proporcional aos hábitos clientelares instalados. Quando se afirma que as escolas manterão as “competências pedagógicas”, apenas lhes sendo retiradas chatices administrativas, oculta-se que muitas iniciativas e projectos de tipo pedagógico passarão a estar dependentes, por via do seu financiamento, dos humores exteriores e “superiores”.

Por isso, talvez seja bom encarar este mês de Agosto como o último de um modelo de gestão escolar que, apesar da progressiva amputação dos procedimentos democráticos, ainda mantinha algumas margens de autonomia. Em Setembro, um pouco por todo o país, isso passará a ser uma cada vez mais distante memória.