Jornal de Letras (2017- )

Abril 2017

Liberdade para ensinar a Liberdade

Ao passar mais um aniversário sobre a revolução de Abril de 1974, na área da Educação algumas das suas conquistas tornaram-se uma espécie de anátema para a generalidade dos governantes de passagem pelo Ministério da Educação, como se fossem um resquício incómodo de um tempo cuja memória se pretende apagar. A chamada “gestão democrática das escolas”, é expressão que hoje desperta horrores, pesadelos, suores frios a muita gente e que a quem a recupera merece uma variedade de qualificativos considerados pouco abonatórios. Com todas as suas limitações, nascidas do contexto histórico em que se afirmou, esse modelo tinha princípios que privilegiavam um exercício da gestão escolar a partir das bases do corpo docente, a escolha democrática das chefias e um processo de tomada partilhada de decisões. Como todos os modelos, nem sempre a sua prática esteve à altura da bondade e virtude dos princípios enunciados, mas foi ele que possibilitou uma transição para a democracia do modelo hierarquizado e baseado em nomeações de confiança política do Estado Novo e, em simultâneo, acompanhar um processo de massificação e alargamento da escolaridade básica na segunda metade dos anos 70 e anos 80 do século XX.

Com o refluxo dos tempos e a ascensão de um novo conjunto de teorias sobre a gestão da administração pública nas últimas décadas do século XX, passou a considerar-se que esse modelo era um arcaísmo, característico de um ultrapassado tempo revolucionário, em que a colectivização do poder e a colegialidade do funcionamento das escolas promoveria a desresponsabilização individual do desempenho.

Ao período áureo da gestão democrática das escolas, muitos especialistas, políticos e articulistas de ocasião (com estes três estatutos em configuração variável) gostam de associar um tempo de caos, desordem e desmandos imensos. Chegam a associá-lo a um período de “crise”, como se o atraso educativo nacional não fosse uma praga bem mais antiga. Como as coisas eram, eu lembro-me, pois atravessei esses anos como aluno numa zona bastante agitada do ponto de vista social e político. E observei e conheço com alguma proximidade as coisas boas (integração progressiva de centenas de milhar de alunos antes excluídos de uma escolaridade além da primária, quantos deles provenientes dos palop) e más (a instabilidade e escassa formação de parte do corpo docente que foi necessário recrutar de forma acelerada). O que estranho é que agora me sinto rodeado, no caso das pessoas que escrevem sobre estes temas, quase em exclusivo por gente que ou não se lembra de nada ou se lembra de forma muito selectiva, seja porque não viveu nada disso, seja porque do que viveu já se esqueceu da sua parcela de responsabilidade nas asneiras e só retém as próprias virtudes.

Ao longo das últimas décadas, foram muitos destes convenientes desmemoriados que tiveram o poder de decidir e limitar, de modo progressivo, a democracia interna das escolas, alegadamente em defesa de uma maior “eficácia” da gestão e da “responsabilização” dos agentes educativos pelo desempenho das “organizações escolares” ou como agora se designam na nova linguagem dos tempos, as “unidades de gestão”. Em 1998, com o Decreto-Lei n.º 115-A/98 seria criado um novo “regime de autonomia, administração e gestão” das escolas que, para além de consagrar a existência de um novo órgão (Assembleia de Escola), permitia a escolha entre o modelo colegial/democrático existente de gestão e um modelo unipessoal. Mantinha, no entanto, a prática da eleição “aberta” dos representantes dos professores no Conselho Pedagógico. Embora o número de escolas que escolheram esse modelo “alternativo” ao colegial fosse escasso, em 2008 (Decreto-Lei n.º 75/2008, de 22 de Abril) os decisores políticos decidiram extinguir por completo o modelo dominante – que mantinha a “gestão democrática das escolas” – e tornar único e obrigatório o modelo de gestão centralizada num director, com uma série de consequências internas nas escolas como a escolha das chefias intermédias (coordenações de departamento, de ano ou de estabelecimento), que acabaram de vez com os restos de vida democrática nas escolas. Apesar de se atribuírem ao novo Conselho Geral funções de “orientação estratégica”, todos os procedimentos se destinaram a tornar o Director como o “rosto” da escola e, de forma implícita, o elo individual de uma cadeia hierárquica destinada a assegurar a implementação domesticada de todas as directrizes emanadas pela tutela.

Quase dez anos depois, apesar de alterações cosméticas na forma de escolher as chefias intermédias, o modelo permanece único, sem coragem para se recuperar a possibilidade de uma “alternativa” colegial. Isto mesmo com um governo apoiado, e a equipa da Educação muito em particular, por forças políticas que durante anos se afirmaram firmes inimigas do modelo de gestão unipessoal. Só que, são os mandamentos da real politik, tal oposição se esfumou quase por completo quando as condições para a afirmar se reuniram.

Para se ensinar a Liberdade, para se desenvolver nos alunos, futuros cidadãos, uma consciência cívica e o gosto por uma Liberdade que vá além da expressão dos egoísmos particulares, individuais ou de grupo, nada como vivê-la no quotidiano diário. É de senso comum e um lugar-comum afirmar que a melhor escola para a Liberdade é demonstrar o seu funcionamento para além da teorização abstracta.

Como Michael Apple já escrevia em 1993 (Official Knowledge – Democratic Education in a Conservative Age), “em vez de nos movermos na direcção de uma maior autonomia, em demasiadas instâncias, a vida diária dos professores nas salas de aula em muitas nações tem-se tornado mais controlada, mais sujeita a lógicas administrativas que buscam apertar as rédeas nos processos de ensino e do currículo. O desenvolvimento docente, cooperação e “empoderamento” podem ser o tema, mas a centralização, a padronização e a racionalização são as tendências mais fortes” (pp. 118-119). E esta é a situação que vivemos, com a completa manipulação e distorção da linguagem que se aplica na justificação de medidas que promovem o contrário do que afirmam. O “ reforço da autonomia” das escolas surge a legitimar a transferência de competências para instâncias externas, a “descentralização” das políticas educativas significa a sua recentralização local, com esvaziamento do poder de decisão dos órgãos de gestão escolar, a “estabilidade do corpo docente” aparece a cada concurso que precariza e proletariza mais as condições do trabalho docente, o “sucesso” é a palavra-chave em todas medidas que se limitam a alterar os padrões usados para o definir e a “proximidade” da gestão das escolas traduz-se por uma maior distância entre o centro que decide e aqueles que fazem o quotidiano nas salas de aula e nos restantes espaços escolares.

Compreendo que nas escolas não são apenas os professores a necessitar de se sentirem livres e autónomos mas parece-me de senso comum, que se isso não acontecer, dificilmente tudo o resto poderá experimentar uma verdadeira Liberdade. Regressando a Apple, em Educação como em outras actividades o “planeamento passou a ser feito pela gestão e não pelos trabalhadores [e] as consequências disto têm sido profundas” (p. 120). A primeira é a separação completa entre a concepção e a execução das medidas, com a atomização das funções a um ponto que leva quem executa (o professor) a estar desligado de todo o processo de decisão sobre o que faz; a segunda é a desqualificação (deskilling) decorrente da perda de controlo sobre o próprio trabalho e a redução do professor a mero executor e peça de uma engrenagem mecanizada.

Governos sucessivos, dominados por forças políticas tidas por alternativas, nada mudaram numa situação em que a liberdade e autonomia dos professores foram cuidadosamente destruídas, assim como a democracia no funcionamento interno das escolas foi transformada numa vaga memória. Defender a Liberdade para as escolas escolherem a sua forma de organização interna é algo que recupera valores que agora, infelizmente, parecem incómodos da Direita à Esquerda na Educação. Seria um bom exemplo para demonstrarem que ainda acreditam no que Abril trouxe ao nosso país, mas tudo o que está em desenvolvimento na área da Educação aponta no sentido inverso. Com a colaboração, nem que seja com simulacros de oposição, de quase todos aqueles que a cada momento se afirmam herdeiros dos valores de Abril.

 

Maio 2017

Educação, Estatística e Política

As políticas educativas para serem credíveis e eficazes, indo além do circunstancialismo das modas ou agendas políticas eleitoralistas, devem sustentar-se em diagnósticos rigorosos e informação fiável. Do mesmo modo, o debate público deve ser sustentado em alguma seriedade argumentativa e não ceder à demagogia ou a truques e truncagens dos dados disponíveis para produzir efeitos favoráveis na opinião pública e no eleitorado.

Isto vem a propósito de alguns episódios caracterizados pela mistificação da opinião pública com base na utilização política de estatísticas que do rigor apenas têm a aparência e na adopção de processos pouco transparentes na tomada de decisões.

Quanto ao abuso das estatísticas, há um livrinho clássico de Darrell Huff (How to Lie with Statistics. New York/London, 1954) que nos esclarece de forma lapidar que “a secreta linguagem das estatísticas, tão apelativa numa cultura virada para os factos, é empregue para o sensacionalismo, para inflacionar, confundir e simplificar em excesso [e] sem escritores que usem as palavras com honestidade e compreensão e leitores que saibam o que querem dizer, o resultado só pode ser um nonsense semântico.” (p.8) Infelizmente, é essa a situação em que vivemos e mais do que falta de sentido, as estatísticas e os números, na sua aparente neutralidade, têm servido para criar sentidos falsos e construir uma realidade alternativa.

Veja-se o caso de um dos fenómenos mais marcantes da nossa Educação, o elevado insucesso escolar no Ensino Básico e Secundário, as suas causas e consequências. Nos últimos anos, em diversas intervenções públicas de decisores políticos ou personalidades com elevadas responsabilidades neste sector da governação e da investigação (desde ministros e secretários de Estado a altos quadros do Ministério da Educação ou a elementos do Conselho Nacional da Educação), surgem números astronómicos quanto aos encargos financeiros desse insucesso, oscilando os valores apresentados entre 250 e 600 milhões de euros, o que representaria uma parcela entre os 4,5% e os 11% do orçamento total do Ministério da Educação para 2015 ou 2016. Estes valores são obtidos multiplicando o número de retenções num ano pelo que é considerado o custo médio por aluno, com base em cálculos do Tribunal de Contas (c. 4000 euros anuais). O que parece ser uma evidência e passa na comunicação social como se assim fosse. Só que não é, pois o fim do insucesso e das retenções não “apagaria” todos esses alunos do sistema educativo como num passe de mágica.

Em França, um dos países europeus com um nível de insucesso próximo do português, o Institut des Politiques Publiques divulgou em 2015 um estudo com o título Évaluation du coût du redoublement[i] em que explica com clareza que a metodologia a usar para estes cálculos não pode ser tão simplista, mesmo se a sua perspectiva é favorável ao fim das retenções (só que não por questões financeiras). Para França, em que o orçamento da Educação é da ordem dos 65 mil milhões de euros, o cálculo das poupanças com o fim das retenções seria de 2 mil milhões de euros ao fim de 10 anos, sendo de apenas 20 milhões de euros no primeiro ano (cerca de 0,03% do orçamento anual). E como se chega a estes valores tão mais baixos do que os calculados para Portugal? Porque o fim das retenções apenas produz a saída mais rápida do sistema educativo dos alunos em fim de percurso escolar (aos 18 anos ou ao finalizarem o 12º ano entre nós) e, em outros níveis de ensino, até pode implicar um aumento dos custos no curto prazo, com a transição de um ciclo de estudos mais barato em termos médios para outro mais caro (por exemplo do 1º para o 2º ciclo).

Outra mistificação estatística da opinião pública tem sido a que serve em parte de base à justificação do encerramento de pequenas escolas do interior. Afirma-se que, para além dos custos de manutenção, estas escolas apresentam um maior insucesso do que as de maior dimensão. Pode ser que sim, mas também pode ser que não. E eu explico porquê. Imaginemos que numa pequena povoação existem dois amigos, o João e a Maria, que andam na escola, no 2º e 3º ano, respectivamente, e estiveram o ano passado numa turma de 16 alunos, daquelas mistas, porque a aldeia é pequena e tem poucas crianças. Os dois amigos e vizinhos são crianças com alguns problemas de aprendizagem e não transitaram, contribuindo decisivamente para uma taxa de insucesso de 12,5% nessa mesma turma.

Imaginemos ainda que este ano, a sua escola fechou e foram todos (eles e os colegas) para a sede do município, a 25 km, onde existe um belíssimo Centro Escolar, cheio de novas sociabilidades e oportunidades, cada um para a sua turma de 26 alunos. Se voltarem a não transitar, mesmo que acompanhados por dois colegas (a Joana na turma do João e o José na turma da Maria), a taxa de insucesso das suas novas turmas será de apenas 7,7%. Se for feito um estudo sem contextualização destes dados conseguirá provar-se que as turmas maiores têm menor insucesso do que a pequena turma mista. Ou seja, que foi um sucesso ter fechado a arcaica escola de proximidade. Mesmo que o João e a Maria venham a chumbar na mesma. Mas a estatística terá demonstrado que o sucesso aumentou. E o brilhantismo será todo de quem mandou fechar a escola e poupar na conta da luz e da água.

Mais um exemplo da estatística manipulada ao serviço da política: foi anunciada há poucas semanas a redução do número de alunos por turma nas escolas e agrupamento TEIP (Territórios Educativos de Intervenção Prioritária). De forma apressada, surgiram notícias a informar que essa medida atingia perto de um milhar de escolas e cerca de 200.000 alunos e ninguém se preocupou em desmentir. Só que esse número só seria atingido se a medida se aplicasse a todos os alunos dessas escolas e agrupamentos e não somente aos dos primeiros anos de cada ciclo de escolaridade. O que significa que os alunos abrangidos serão talvez 30-35% daquele número.

Por fim, um exemplo de mistificação do debate público que não resulta da truncagem ou manipulação dos dados estatísticos, mas de completa distorção dos procedimentos de tomada de decisões políticas, no qual tudo parece acontecer ao contrário do que deveria. Falo das provas de aferição do 2º ano do Ensino Básico, inéditas na Europa e criadas por quem criticara a singularidade das provas de 4º ano, em particular as que foram realizadas entre 2 e 9 de Maio na área das Expressões. Nesse dia, para justificar a sua realização, surgiram declarações oficiais reproduzidas em diversos órgãos de comunicação social como as do secretário de Estado João Costa que foi citado pela TSF[ii] como tendo afirmado que “se quisermos desenhar algumas estratégias, a nível central, para melhorar as aprendizagens nestas áreas temos de saber o que se passa”. Em outras peças foi afirmado que as provas seriam determinantes para a tomada de decisões no redesenho do currículo do 1º ciclo, pois permitiam fazer uma “fotografia” da situação existente. Dias antes, em peça do Diário de Notícias declarava-se que existiam umas “impressões” sobre o que se estaria a passar, mas que eram necessárias as provas para avaliar a situação[iii]. Só que, nesse mesmo dia 2 de Maio, em Coimbra, perante mais de 150 directores de escolas e agrupamentos, o mesmo governante fez uma detalhada comunicação sobre “Autonomia e Flexibilidade” em que apresentou como dado adquirido as modificações a introduzir naqueles mesmo currículo, nomeadamente o reforço das horas semanais (de 3 para 5) para as ditas Expressões. O que significa que as provas foram um pretexto, uma estratégia de diversão, uma desnecessidade, pelo menos para os efeitos que foram anunciados, porque a decisão já estava tomada.

A Educação é um sector estratégico da governação de qualquer país que leve a sério o seu desenvolvimento humano e social. Exige um debate público esclarecido e políticas baseadas em informação sólida, não manipulada. Exige procedimentos transparentes na utilização dos poderes e dinheiros públicos. Há muitos anos que isso vem sendo trocado pela construção de uma realidade alternativa para colheita de proveitos políticos.

[i] Consultado e disponível (Março de 2017)  em http://www.ipp.eu/wp-content/uploads/2015/01/cout-redoublement-rapport-IPP-janv2015.pdf.

[ii] http://www.tsf.pt/sociedade/educacao/interior/alunos-do-2o-ano-estreiam-provas-de-expressoes-fisico-motoras-e-artisticas-6259334.html

[iii] http://www.dn.pt/portugal/interior/ministerio-quer-que-prova-pioneira-ajude-a-melhorar-educacao-fisica-6246466.html

Junho 2017

Do que falamos, quando falamos em Escola Pública?

Em Portugal existe um consenso quase paradoxal: todos os quadrantes político-partidários afirmam uma firme defesa da “Escola Pública”, mesmo quando são de filiações ideológicas completamente antagónicas e defendem políticas com muito pouco pontos em comum. Eu não coloco em causa essa devoção por um sistema público de ensino, apenas considero que essa sinceridade vai a par, na hipótese mais benigna, de concepções muito distintas daquilo que entendem por “Escola Pública”, até porque em muitos casos revelam desconhecer a evolução histórica do nosso sistema educativo.

Para melhor conhecermos a evolução dos principais sistemas educacionais “de massas” a leitura clássica é a obra Social Origins of Educational Systems (1979) de Margaret Archer. A essa abordagem global podem acrescentar-se as de Boli, Ramirez e Meyer[i] ou de Soysal e Strang[ii]. A partir dessas leituras, podemos perceber como na Europa e no mundo atlântico os sistemas educativos de massas foram criados e se desenvolveram de formas diferentes, conforme os contextos políticos, económicos, socio-culturais e mesmo religiosos. Quando algumas pessoas falam na necessidade de abandonar o modelo da “escola do século XIX” ou “o modelo de Manchester” podemos ter a noção errada de que pela Europa se deu um movimento global, homogéneo no tempo e nas características, que criou uma rede de estabelecimentos escolares com as mesmas motivações e objectivos. Não é verdade que assim tenha sido e eu gostaria de fazer uma divisão, simplificadora, entre três modelos de escolas de massas na Europa.

O primeiro deles é o da maior parte dos países do norte da Europa que experimentaram a reforma protestante e para os quais a leitura dos textos sagrados em língua comum se torna um traço identitário importante. A escolarização das crianças é de base comunitária e baseada numa motivação religiosa, não seguindo uma orientação do Estado e precedendo, na generalidade das situações, o aparato legislativo nesse sentido. É um modelo descentralizado, baseado na iniciativa privada local que assegura o funcionamento essencial das escolas (espaço, professores). Quando surgem leis a determinar uma “escolaridade obrigatória” já mais 50% das crianças em “idade escolar” estão escolarizadas. Em 1842, quando na Suécia se legisla uma escolaridade obrigatória esse valor já é de 71%; dois ambos depois, quando isso acontece em Portugal, a escolarização era de apenas 13%. Muitos destes países do norte atlântico da Europa já tinham níveis acima dos 90% de escolarização na viragem para o século XX. Mas a motivação não era a de fornecer mão-de-obra escolarizada para uma sociedade industrial proletarizada. Essa motivação – prevalência das motivações económicas para o desenvolvimento de um sistema de educação básica de massas – é mais típica das sociedades anglo-saxónicas pioneiras da industrialização (a Inglaterrae a costa leste dos E.U.A.) e dá origem a sistemas igualmente descentralizados e em que a iniciativa privada também é dominante, sendo importante o papel de filantropos e mecenas particulares na promoção de redes de escolas em algumas regiões.

Uma terceira tradição, a da promoção a partir do topo do poder político e do Estado, de uma escola de massas enquanto projecto político ao serviço de um ideal liberal de formação dos futuros cidadãos de um Estado-Nação, em defesa de cuja identidade se organiza uma rede de escolas predominantemente públicas, laicas, dependentes do poder central, é a que se costuma qualificar como “napoleónica” e disseminou-se de forma irregular e lenta pelo sul mediterrânico e católico da Europa a partir do exemplo francês. São países em que predomina a chamada “construção retórica da Educação” e em que a legislação tenta funcionar como alavanca de uma sociedade nem sempre com meios para corresponder aos desejos do legislador voluntarioso. São sociedades de industrialização muito atrasada e em que a motivação de criação de um proletariado com conhecimentos escolares básicos é algo secundário. Em que a Igreja Católica serve mais de travão da generalização da Educação do que a apoia.

Desde então, são raros os casos em que os sistemas de ensino de mudaram radicalmente a sua natureza com sucesso. A matriz original tem-se mantido ao nível da organização da rede escolar, da sua distribuição e da sua gestão. São raros os casos em que um sistema predominantemente descentralizado e privado evoluiu com sucesso para a centralização e uma rede exclusivamente pública e o inverso também é verdadeiro. As reformas introduzidas, excepto no caso de derivas ditatórias e totalitárias, procuraram sempre adaptações progressivas do modelo original.

Para o caso português, os trabalhos de Áurea Adão, Rogério Fernandes, António Nóvoa, António Candeias e outros permitem-nos compreender que, em especial após a Revolução Liberal de 1820, a promoção da Instrução Pública é um projecto político deste terceiro tipo, que parte do topo para a base, das elites políticas para a sociedade, de acordo com o modelo napoleónico de uma Escola que permita criar cidadãos alfabetizados, capazes de participar na vida pública. No entanto, é um projecto que vai deparar, de forma sistemática, com a inércia de grande parte das comunidades locais, com a falta de meios financeiros do Estado para alargar a rede de escolas públicas de forma rápida. O atraso educacional tornou-se uma das continuidades da nossa história contemporânea, apesar do número elevado de reformas a partir de meados do século XIX. Em certa medida, a própria expressão “escola de massas” perde algum sentido num país que no início do século XX ainda apresentava uma taxa de analfabetismo a rondar os 70% há um século.

No início do século XX, a Educação em Portugal ainda era um projecto político nascido da necessidade de ensinar aos indivíduos o que os métodos e ambientes tradicionais não conseguiam. A expansão da rede escolar pública foi feita, quantas vezes, como intromissão do Estado nas rotinas das comunidades locais, servindo a escola como uma das ferramentas do Estado para unificar o país. Foi quase sempre um projecto com ambições maximalistas mas meios financeiros mínimos, salvo em momentos históricos muito esporádicos, raramente conseguindo que os poderes locais colaborassem com mais do que algumas “facilidades” e dependendo quase em exclusivo do impulso central. Os ganhos na escolarização da população, numa perspectiva  de longa duração, são contínuos e raramente apresentam inflexões que se consigam associar de forma clara a uma conjuntura política: durante a I República os ganhos não corresponderam à forte retórica política, assim como durante o Estado Novo se deram ganhos apesar de ser comum afirmar que o regime não tinha a Educação pós-primária como uma prioridade.

Na mais recente revista XXI (nº 8, quadros em extratexto no final), surge uma estatística sobre a percentagem da população dos países da UE que têm uma escolarização secundária ou superior e Portugal é o penúltimo com 46.9%, apenas à frente de malta (com 45,2%), muito longe da média de 77%. Há 60 anos, a Unesco publicou um estudo sobre a iliteracia em que Portugal, surgia no contexto da Europa com a taxa mais elevada (44,1%, dados de 1950) de pessoas iletradas, logo atrás de Malta (42,4%),[iii]. Ou seja, desde meados do século XX, os ganhos na qualificação da população portuguesa são evidentes, mas desenvolveram-se sobre uma base muito deficitária. Nesse contexto, os ganhos verificados são de valorizar em vez de os denegrir, sempre em busca do exemplo de quem fez melhor. Sim, fez, mas foi numa primeira fase que criou um patamar de desenvolvimento muito superior ao nosso.

Isto vem a propósito do recrudescimento do discurso sobre a necessidade da “mudança de paradigma” para transformar as nossas “escolas do século XIX”, seja na natureza do que se ensina, seja na forma de organizar a rede escolar. Não é que eu defenda o determinismo histórico ou social ou uma forma de imobilismo resignado. O que me parece importante é que entendamos que a Educação é um subsistema de um todo nacional com características próprias, com uma História específica, que não se transformam num ou dois mandatos de políticos iluminados por uma qualquer superior Fé ou Razão.

[i] “Explaining the Origins and Expansion of Mass Education” in Comparative Education Review (1985), nº 29, pp. 145-170.

[ii]  “Construction of the First Mass Education Systems in Nineteenth-Century Europe in Sociology of Education (1989), vol. 62, pp. 277-288.

[iii] World Illiteracy at Mid-Century: A statistical styudy. Paris, 1957, p. 33, com análise nacional mais desenvolvida a partir da p. 99).

 

Setembro 2017

As roupas velhas do Imperador

O novo ano lectivo inicia-se sob o signo de mais um projecto de reforma, o enésimo nas últimas décadas, neste caso relacionado com o que se anuncia como um reforço da “autonomia e flexibilidade” das escolas para definirem uma parte do currículo dos alunos. A par disso legislou-se um “perfil do aluno” desejável no final da escolaridade obrigatória e a meio de Agosto vão aparecendo uns documentos com as “aprendizagens essenciais” que os alunos devem fazer para alcançarem tal perfil. A sua aplicação deve ser feita em mais de duas centenas de escolas, públicas e privadas, que terão aderido voluntariamente à aplicação destas novas regras que, anunciando-se como novas, se diz não virem alterar os programas existentes, manuais ou cargas horárias globais das disciplinas com reflexos directos nos horários dos professores.

A justificação para tudo isto é que é necessário preparar as nossas escolas para o século XXI e “emagrecer” um currículo que se afirma estar demasiado carregado de conteúdos e estar a prejudicar o desempenho dos alunos. Que esses mesmos alunos sejam dos que mais têm progredido nos testes comparativos internacionais (PISA, PIRLS e TIMMS) parece ser um detalhe menor, assim como o facto de em Portugal, como norma, as políticas educativas serem redefinidas ao sabor dos senhores do momento, sem que se faça a devida avaliação do que está em vigor, dos seus pontos fortes e fracos ou, em muitos casos, sem sequer existir tempo para que a sua aplicação complete um ciclo de escolaridade completo, quanto mais a totalidade dos anos do Ensino Básico.

Repare-se na situação dos anos iniciais de ciclo do Ensino Básico: desde 2014 tem-se vivido em permanente mudança. Em 2015 (Maio) tivemos as metas de Nuno Crato, a aplicar a partir dos anos iniciais de ciclo, e lá se mudou muito do que estava preparado; em 2016 (Junho) chegou o plano nacional para a promoção do sucesso escolar, a aplicar nos anos iniciais de ciclo, e lá se mudou o que tinha sido preparado no ano anterior; chegamos a 2017 (Agosto) e temos direito às aprendizagens essenciais, a aplicar nos anos iniciais de ciclo, e as escolas que aderiram já a este projecto terão de adaptar novamente grande parte do que estava preparado.

Não tenho qualquer dúvida que esta nova reforma será declarada como um sucesso neste ano de experiência-piloto (que assim é porque o secretário de Estado João Costa, seu grande impulsionador, foi obrigado a recuar na sua generalização imediata), porque em Portugal as políticas educativas são sempre um sucesso para quem as implementa e um fracasso para quem quer justificar novas reformas. A verdade é que raramente são avaliadas de uma forma independente, pois as escassas instâncias que temos para fazer esse tipo de avaliação (Universidades, Conselho Nacional de Educação) estão completamente contaminadas por muitos daqueles que, em seu tempo, estiveram associados à preparação ou implementação dessas mesmas políticas. A endogamia académica é uma evidência neste sector e são muito poucos os casos em que as “investigações” não fazem lembrar aquelas outras em que os “estudos” que aconselham determinado tipo de medicação foram patrocinados pelas empresas farmacêuticas com interesse directo na comercialização de um dado “remédio”. A teia estabelecida entre centros de investigação e o Ministério da Educação é evidente para quem conhece um pouco dos seus meandros, embora para a opinião pública se faça passar a noção de que é tudo “independente”. O mesmo se passa com o próprio Conselho Nacional de Educação, cuja presidência raramente é entregue a alguém que não tenha sido ou venha a ser Ministro da Educação ou muito próximo de um determinado lobby político activo no sector, conforme os ciclos eleitorais. E pouco melhora com o recurso a entidades internacionais, sendo que a OCDE é a favorita durante os governos do Partido Socialista, tendo o governo PSD/CDS preferido recorrer ao FMI nos tempos da troika, sendo de triste memória um relatório cheio de erros e dados truncados, apresentado (Janeiro de 2013) pelo então secretário de Estado Carlos Moedas para justificar a austeridade e os cortes no sector.

Há países que testam com prudência as mudanças e as avaliam antes de as generalizar; recentemente conheceu-se o caso da Noruega que recuou em medidas quando percebeu que estavam desadequadas à sua realidade[1], assim como na Suécia se inverteram muitas das políticas descentralizadoras e de ”localização” das decisões quando se verificou que levavam ao aumento das desigualdades no sistema educativo. Se existem falhas, corrigem-se. Se o sentido da mudança está errado, estuda-se uma melhor solução. Em Portugal não é assim que acontece. Raramente temos recomendações que não encaixem nos programas pré-existentes, assim como não é raro que os dados usados em tais estudos, sejam fornecidos pelas entidades nacionais de uma forma nem sempre transparente. E quando os dados não são dóceis, são martelados ou desvalorizados perante a necessidade de “sair do modelo da escola do século XIX” e de promover a “inovação” que só empedernidos conservadores poderão recusar.

Quase tudo o que agora se anuncia como sendo um “novo” projecto de “autonomia e flexibilidade” na gestão do currículo do Ensino Básico já foi preparado e experimentado há cerca de duas décadas e não correu bem. Quase tudo o que se  apresenta como um imperativo da modernidade é a recauchutagem do que foi tentado na segunda metade dos anos 90 do século XX, mas como se escreve na obra A receptividade à mudança e à inovação pedagógica (Ana Paula Cardoso, Edições Asa, 2002, p. 21) a inovação é muitas vezes relativa, pois “pode ser considerada pelos actores como inovação, mesmo que já tenha sido conduzida, de maneira quase idêntica, noutros lugares e ao mesmo tempo ou noutros tempos”. Entre 1996 e 1998 já se fez um debate muito alargado sobre estas matérias que deu origem ao despacho 4848/97 de 30 de Julho e a uma experiência-piloto com uma dezena de escolas. Menos de um ano depois  o despacho 9590/99 de 14 de Maio regulamentaria a generalização do que ficaria conhecido como a “gestão flexível do currículo”, existindo abundante bibliografia sobre o assunto, nomeadamente a publicação das comunicações ao Fórum Escola, Diversidade e Currículo (ME, 1999), entre as quais temos o testemunho da então secretária de Estado da Educação Ana Benavente que declararia que “temos de passar de um ensino/aprendizagem centrado nos programas e nos saberes, para um ensino/aprendizagem centrado nos resultados dos alunos no que diz respeito às competências que eles constroem, ou seja (…) a competência que cada criança, cada jovem, constrói e que lhe permite continuar a aprender”. Anunciava-se “uma enorme e imensa revolução que vai obrigar a trabalhar de um modo diferente, de definir o que se pretende e depois desenhar o caminho para lá chegar” (p. 28). Tudo o que agora se anuncia com estrépito mediático e ar ufano, mais não é do que retomar algo com 20 anos e que foi abandonado em poucos anos no que tinha de mais importante.

Seria importante perceber-se porque foi essa reforma um fracasso antes de a requentar e servir de novo, como se de coisa inédita se tratasse. Gostaria de recordar que este (fim dos anos 90 do século XX) foi o período em que para tudo começou a ser necessário ter um documento a comprovar que o que tinha sido feito tinha mesmo sido feito. Em que a burocracia soterrou a pedagogia e em que a representação dos actos pedagógicos passou a ocupar muito do tempo que deveria ser usado nos actos em si. Foi o tempo em que palavreado cerrado que o ministro da altura crismou como “eduquês” se tornou dominante e feriu quase de morte a essência do trabalho dos professores, contribuindo para situações de desgaste e burnout sem qualquer vantagem para os alunos.

Em 2017 está tudo de volta, como em 1997. Os erros repetidos, a retórica recuperada, a terminologia decalcada, as metodologias clonadas, a superioridade moral da fórmula mágica e que se pretende única para o “sucesso” amplamente despejada sobre quem ousa contestar a bondade ou adequação da solução única da imposição rígida da “flexibilidade” numa lógica top-down de uma pretensa “autonomia das escolas”, enterrada em paralelo através do esvaziamento das suas competências para as autarquias.

A História não se repete, a menos que seja como Farsa.

Mas sempre como Sucesso.

[1] http://www.tsf.pt/internacional/interior/sucessos-e-falhancos-do-sistema-de-ensino-na-noruega-8699492.html.

 

Outubro 2017

Da Desmaterialização dos Manuais à Promoção da Leitura

1. Em quase todas as épocas, com especial aceleração nas últimas décadas, o ensino enfrentou desafios ou beneficiou de possibilidades nascidas do desenvolvimento tecnológico. Ao nível pedagógico já praticamente tudo foi inventado em torno da relação estabelecida entre alunos e professores no sentido de conseguir melhorar as aprendizagens dos primeiros. Neste contexto, os aparatos ao dispor de alunos e professores surgem como meras ferramentas periféricas que podem melhorar o desenvolvimento e os resultados dessa relação pedagógica. Durante séculos (milénios) essas ferramentas limitaram-se quase em exclusivo à palavra, ao livro (manuscrito, impresso) ou a suportes equivalentes a um quadro e giz. A segunda metade do século XX assistiu a uma explosão nas tecnologias audiovisuais e digitais que levaram a uma rapidíssima evolução das ferramentas tradicionais, quase sempre no sentido de tornar mais acessível a informação, disponibilizando recursos a que os alunos mão conseguiriam aceder sem elas.

Slides, acetatos, fotocópias, cassetes de vídeo, cdroms, dvds, quadros interactivos, foram recursos que surgiram e desapareceram ou tiveram um impacto, por si só, bem menor do que se anunciava, desejava ou esperava quanto a uma transformação radical do trabalho pedagógico. Devemos ter consciência de que, pela experiência acumulada, cada nova possibilidade que se apresenta como sedutora e avançada corresponde apenas a uma fase mais curta do progresso tecnológico. A questão da desmaterialização dos manuais, bem como de um recurso quase exclusivo aos suportes digitais para o trabalho dos alunos nas aulas ou fora delas, é a mais recente proposta nesta matéria. É uma sugestão que entusiasma algumas pessoas, mas que dificilmente deverá ser encarada como mais do que isso mesmo… a fase mais recente de um progresso tecnológico que daqui a alguns anos trará uma nova moda.

2. De forma subterrânea, mas condicionando o debate em torno da desmaterialização (ou da própria reutilização dos manuais) existem interesses de natureza económico-financeira e política. Quanto aos primeiros, é inegável que a desmaterialização dos manuais traz consigo, por um lado, a redução dos encargos com o suporte físico dos seus conteúdos, mas, por outro, acarreta um acréscimo evidente de custos com os meios para lhes aceder. O custo do manual tradicional esgota-se em si mesmo. O custo de um manual digital prolonga-se pelo aparato tecnológico usado por professores e alunos para trabalhar com eles. Quem tem a ganhar com essas duas consequências do recurso aos manuais digitais apoia activamente tal medida e apresenta-a como o santo graal da modernidade e qualifica negativamente quem olha com reservas essa proposta. Já no caso da reutilização dos manuais em papel, está contra quem perde com a não venda de mais exemplares todos os anos dos mesmos manuais. Do outro lado, estão aqueles, a começar pelo Estado (via Acção Social Escolar), mas não esquecendo os orçamentos familiares, que pagam a fatia mais pesada desses custos anuais.

Quanto aos interesses políticos associados aos financeiros, o que está em jogo é o interesse de alguns governantes apresentarem medidas eleitoralistas, mas sem aumentar muito a despesa com a Educação. A oferta de manuais gratuitos implica uma forte despesa que a sua reutilização pode minorar. Ora, a reutilização obrigatória dos manuais oferecidos pelo Estado levanta questões no âmbito da igualdade de oportunidades, já para não desenvolver a questão do gosto dos alunos em preservar a memória da sua vida escolar. Porque quem quiser e tiver meios para comprar os manuais poderá usá-los de uma forma muito mais livre, enquanto os que só tiverem acesso a manuais gratuitos terão de os usar de um modo mais limitado. E nem sequer podemos falar de “oferta” dos manuais, porque apenas se trata de um empréstimo.

A solução passa por flexibilizar estas medidas, criando-se bancos de manuais das escolas para quem a eles quiser recorrer, conhecendo as implicações, mas sem a obrigatoriedade da sua devolução.

3. Sendo um confesso bibliófilo, alguém que adora respirar o aroma do papel impresso e sentir a sua textura, a desmaterialização de todo o tipo de livros só me seduz enquanto estratégia para arquivamento e, mesmo assim, não para uso pessoal. Como Umberto Eco, acho que as bibliotecas pessoais se fazem tanto do que se leu como do que não se leu, em alegre convívio e acumulação. O gosto pela leitura está para mim associado ao objecto físico que se manipula, se abre, se usa e abusa, mas apenas no sentido figurado. Um livro deve ser uma chave que abre o acesso a um mundo novo, seja de conhecimentos sobre um dado tema, seja da imaginação dos autores. Um livro deve ser um “objecto” que, quando aberto e interpretado, permite a transformação do seu leitor, trazendo-lhe uma mais-valia que deve ser mais do que meramente utilitária, contribuindo para o seu bem-estar e felicidade.

Curiosamente, apesar da “ameaça” dos meios digitais, verifico que um dos sectores editoriais que mantém maior dinamismo é o infanto-juvenil. Uma medida boa foi a promoção activa da leitura a partir das escolas (o Plano Nacional de Leitura é das políticas menos controversas na área da Educação), outra a permanência do gosto dos “miúdos” por lerem num suporte tido como tradicional; por fim, uma terceira coisa boa é a qualidade média do que é editado, seja nacional ou importado. E não é apenas o fenómeno Harry Potter. O aspecto menos bom é a insistência num discurso que parece estar sempre a anunciar o fim do livro tradicional e o suporte digital como o único ou dominante “no século XXI”. Quem isso faz, para além de objectivamente prejudicar o livro, é mais prisioneiro de algumas modas do que um profeta certeiro.

Pessoalmente, nunca gostei de escrever nos livros a menos que a isso me sentisse obrigado por necessidade de estudo, referência, apontamento indispensável. A apropriação de um livro pelo seu leitor não passa tanto por essa intromissão gráfica, pela sua manipulação descuidada. A familiaridade com os livros não passa por aí. Acho, a esse nível, muito mais perigosa a tal ideia de “desmaterializar” os manuais escolares, tornando-os imateriais e não manuseáveis fisicamente pelos alunos. O livro foi ao longo do tempo um “espaço” para o diálogo entre o seu conteúdo e o leitor, não sendo as anotações o mais importante. O “fim” dos livros físicos é um atentado muito maior a essa relação de familiaridade. O não estragar os livros nunca pode ser uma mensagem errada. O que deve destacar-se é uma utilização correcta e responsável dos materiais escolares. Foi graças a isso que pude manter os meus livros da “Primária” e ainda os ter, décadas depois. mesmo se resolvi neles alguns exercícios. O livro não deve ser “sacralizado” da forma errada. É um objecto que manuseamos, que exploramos, mas que não devemos estragar de forma desnecessária. Como um amigo que não magoamos, mesmo se brincamos com ele. Como qualquer outro “utensílio” que usamos para uma função, mas não deitamos fora depois desse uso. Os livros de estudo são companheiros e, em simultâneo, cápsulas do tempo dos seus utilizadores, para quem podem constituir um inestimável e indispensável elemento de construção da memória e identidade pessoal. Os livros de estudo ajudaram-nos a sermos quem somos.

4. A promoção da leitura passa pelo apoio à edição no sentido de tornar os livros mais acessíveis e não apenas objectos de um mercado em busca do maior lucro possível, para compensar perdas em outros segmentos de actividade. O aumento dos níveis de leitura não passa por campanhas em que se anunciam futuros apenas digitais, desmaterializados e em que o objecto-livro de torna financeiramente pouco acessível. Há que adaptar o preço da oferta de forma a alargar a base da procura e não investir apenas num nicho estável de compradores recorrentes. O preço de certos livros para crianças e jovens é demasiado elevado, bastando comparar com o que é praticado em outros países (e estou a ter em conta a necessidade de pagar a tradução e os pagamentos de direitos de autor). Há livros a 12-15 euros de autores já no domínio público, quando em outros países essas colecções têm preços de 3-5 euros. A inserção de algumas ilustrações não justifica a discrepância. O aproveitamento mercantil do PNL não é a estratégia mais adequada para promover a leitura ou o gosto pelos livros. A acessibilidade é a fórmula mais adequada. Não apenas nas bibliotecas. Acessibilidade para todas as bolsas familiares.

 

Novembro 2017

Um Plano Humano para a Educação

Vou regressar a um tema que tenho abordado com alguma frequência e que é o da menorização constante dos elementos humanos na Educação. Continuo a verificar que quando se trata de enumerar os factores decisivos para o sucesso dos alunos[i] é muito frequente colocar-se em primeiro lugar o papel e a qualidade dos professores, assim como quando algo corre mal logo alguém aparece a pedir mais “formação” para os docentes (veja-se o que aconteceu com a divulgação, há pouco mais de um mês, dos resultados das provas de aferição do Ensino Básico), mas depois, em actos concretos, muito pouco se faz para a promoção dos elementos humanos na Educação, seja no plano pedagógico, seja no do indispensável bem-estar docente, preferindo praticar-se outro tipo de prioridades.

Exemplificando: a reorganização da rede escolar foi feita nos últimos 15 anos com base em princípios de uma pretensa racionalidade financeira de curto prazo, criando-se “unidades orgânicas” com uma escala pouco compatível com organizações educacionais eficazes, assim como se considerou como “progresso” a eliminação de milhares de escolas do 1º ciclo por todo o país, retirando a muitas regiões um dos serviços públicos mais importante para a fixação das populações jovens.

Mais recentemente, quando que se fala em “Escolas para o século XXI a tendência dominante é para destacar a necessidade de introduzir ou multiplicar o papel dos meios tecnológicos digitais na sala de aula, com o recurso a múltiplos gadgets, de e-manuais a smartphones, para consulta de informação e eventual produção de trabalhos, ditos “de projecto”, mas que mais parecem o resultado de pesquisas mecânicas, cujos produtos tendem mais para a indiferenciação na sua submissão aos pré-formatos das ferramentas digitais do que verdadeiros exercícios de criatividade pelos alunos.

O deslumbramento de alguns auto-proclamados especialistas educacionais e decisores políticos com os avanços nas tecnologias da informação é conhecido e tem resultado em medidas que, mesmo quando apresentadas como “planos”, raramente ultrapassam o epifenómeno de impacto mediático ou um amontoado de medidas desconexas, de que não se conhece o impacto na aprendizagem dos alunos e de que nunca se faz um cálculo rigoroso dos encargos financeiros para que seja possível manter os equipamentos em funcionamento e actualizados. O caso dos computadores Magalhães é um exemplo claro desse tipo de estratégia “tecnológica” para as escolas que teve mais de encenação do que de substância.

Há poucas semanas, o actual ministro da Educação voltou a revelar esta faceta de deslumbramento e percepção limitada do impacto efectivo da aplicação das novas tecnologias nas aprendizagens dos alunos ao referir a existência de um “atraso provocado pelo fim do Plano Tecnológico da Educação”, que ele considera “uma decisão errada que criou um ‘défice oculto’ nas competências de muitos dos nossos alunos”.[ii] O que o ministro não pareceu sentir necessidade de referir foi em que elementos se baseou para esse tipo de afirmações, desde não explicar porque o Plano Tecnológico da Educação foi abandonado a não referir de que elementos empíricos dispõe para considerar que muitos alunos portugueses têm um “défice oculto” de competências na área das tecnologias.

Ao contrário do que parece ser o mantra entoado por quem cavalga o que pensa ser o espírito dos tempos, as investigações mais aprofundadas demonstram que o elemento fulcral para o desempenho dos alunos, para o desenvolvimento das suas competências e exploração das suas capacidades, é de tipo humano, desde a capacidade para gerir a sala de aula até ao grau de domínio de cada docente sobre as matérias que leciona (cf. Robert Marzano, The New Art and Science of Teaching. Bloomington: Solution Tree, 2017). Para os alunos se sentirem num ambiente de aprendizagem seguro, estável, aberto e produtivo, o mais importante não é o número de computadores disponíveis ou o software mais moderno, mas sim a forma como aprendem a usar esse tipo de recursos e para isso é indispensável o papel do professor como guia, orientador e, não há que hesitar perante o termo, mestre. E para isso é condição indispensável que esse professor se sinta bem consigo como profissional e bem integrado na organização onde desenvolve o seu trabalho. O bem-estar docente como factor decisivo para a aprendizagem dos alunos tem sido descurado entre nós, preferindo acusar-se de “corporativismo” toda e qualquer abordagem que sublinhe que os professores portugueses têm sido maltratados do ponto de vista simbólico e material nos últimos 15 anos, com uma sucessão de políticas que, mais do que lhes exigir o justo contributo no “equilíbrio das contas públicas”, foi muito mais além e optou, mandato após mandato, responsabilizar os professores por todos os males, reais ou imaginários, do nosso sistema educativo e castiga-los como se de malfeitores se tratassem.

Há problemas com o preço dos manuais escolares? A culpa é dos professores que recebem muitas ofertas das editoras. Há problemas nos concursos de professores? A culpa é dos que estão doentes e mudam de escola e colocam atestados. Os alunos têm um desempenho abaixo do esperado em provas de aferição novas e de meio de mandato? É porque falta “formação” aos professores. As escolas não são tão “inovadoras” como deveriam ser no novo milénio? É porque o corpo docente está “envelhecido”, como se as pessoas não envelhecessem naturalmente e o “rejuvenescimento” dos quadros das escolas não dependesse de medidas políticas e mas da transformação de todos nós em benjamins buttons.

Os resultados dos alunos portugueses melhoram de forma constante em testes comparativos internacionais nos últimos 20 anos? É porque as políticas (em permanente ziguezague) foram bem delineadas pelos governantes do sector.

Isto cansa. E a verdade é que este tipo de discurso acaba por entranhar-se e muitos professores acabam a auto-culpabilizar-se pelo que devem e não devem e a limitar-se na expressão das suas próprias insatisfações e aspirações frustradas, com receio de nova vaga de acusações. Se há quem não seja o mais exemplar dos profissionais, quem esteja esgotado, quem nunca tenha tido verdadeira apetência ou vocação para a docência? É bem verdade, como o é para tantas outras profissões.

A verdade é que não me consigo lembrar, com margem de certeza razoável, de qual foi a última equipa ministerial que optou por promover algo vagamente parecido com um Plano Humano da Educação que se destinasse a valorizar a condição docente na dupla perspectiva simbólica e material. Não há que ter receio em assumir que os professores não merecem o processo de degradação das condições materiais em que desenvolvem a sua actividade, com o valor da sua hora de trabalho a descer de forma contínua ao longo dos últimos 12 anos e a ser contada ao minuto como em nenhuma outra profissão altamente qualificada. A proletarização docente pode ser o objectivo de quem acha que “ensinar qualquer um sabe” e que, por trauma remoto ou recente, não gosta de professores (em especial das escolas públicas) ou de quem atinge o êxtase a cada novo corte no peso dos salários no orçamento do Ministério da Educação, mas essa é uma opção profundamente errada porque, a médio-longo prazo, a destruição da docência como carreira inviabiliza a sua renovação com professores devidamente qualificados e que saibam um pouco mais do que acompanhar a velocidade dos polegares dos seus alunos.

Quando um ministro – ou algum dos seus cortesãos próximos – tiver a coragem de defender um Plano Humano da Educação sem vergonha de considerar os professores como parceiros a respeitar (sem receio que lhe apareçam uns quantos opinadores a acusá-lo de cedência ao “corporativismo docente”) e não apenas obedientes colaboradores automatizados terá todo o meu apoio.

[i] A bibliografia a este respeito é imensa, pelo que deixo apenas um dos últimos contributos para este tema: Jennifer A. Tygret (2017), “The influence of student teachers on student achievement: A case study of teacher perspectives” in Teaching and Teacher Education, nº 66, pp. 117-126 (consultado em 1 de Novembro de 2017 em http://www.sciencedirect.com/science/article/pii/S0742051X16307387).

[ii] Declarações proferidas a 23 de Outubro de 2017 numa Conferência Internacional e consultadas a 1 de Novembro de 2017 em https://www.publico.pt/2017/10/23/sociedade/noticia/ministro-da-educacao-defende-necessidade-de-escolas-desenhadas-a-medida-1789918

 

Dezembro 2017

O Ódio Irracional aos Professores

“O professor merece reverência, a começar pelo cargo que representa, pelo simples facto de ser professor. A partir do momento em que se mina esse sentimento, tudo pode acontecer.” João Lobo Antunes (Ensino Magazine, 2009)

Nem sempre é possível manter o debate em torno da Educação no plano elevado das ideias, dos conceitos, das visões estratégicas, das metodologias pedagógicas, quando o espaço público é invadido por uma investida alargada contra os professores, contra a sua dignidade profissional e mesmo pessoal, através de um linguagem intoleravelmente acintosa na forma e conteúdo.

Nas últimas duas semanas, os professores portugueses foram apresentados por alguma opinião publicada de uma forma torpe e difamatória por uma série de figuras públicas com espaço permanente na comunicação social (jornais, televisões), sem direito a qualquer tipo de contraditório, seja por parte dos próprios, seja por parte de quem lhes permitiu esse tipo de discurso que vai muito além da liberdade de opinião, pois apresenta como verdadeiros factos que são falsos.

Tivemos na televisão pública, em dose dupla, um “especialista em comunicação” declarar que os professores são “miseráveis”, “idiotas”, responsáveis por uma “borga” de décadas” que teria destruído o sistema de ensino, conduzindo os alunos a “resultados miseráveis” (Rodrigo Moita de Deus, RTP3, 17 e 24 de Novembro). Em outro canal televisivo, um ex-bastonário da Ordem dos Advogados e um dos pretensos “senadores” do regime (José Miguel Júdice, TVI24, 20 de Novembro) considerou-os uma “raça estranha”; um dos articulistas residentes do que se pretende ser um semanário de referência, escreveu que eles representam o “triunfo da mediocridade” e que se caracterizam por uma “total ausência de qualquer avaliação de desempenho” (Miguel Sousa Tavares, Expresso, 25 de Novembro); um outro considerou que os professores viveram até 2011 “incólumes” a qualquer corte nos seus direitos, enquanto um escriba menoríssimo, achou-se no direito de afirmar que os professores são uns “privilegiados” que nunca foram alvo de qualquer avaliação para progredirem na carreira (um desconhecido Rodrigo Alves Taxa no jornal I).

Mas outras figuras aproveitaram as colunas de “opinião” para repetirem críticas, qualificando os professores como “medíocres”, “privilegiados”, seres menores e incapazes de quererem ser avaliados pelo seu “mérito”. Em outro programa da RTP3, um sortido de eternas jovens esperanças políticas, (José Eduardo Martins, Pedro Adão e Silva e Rui Tavares) preocuparam-se mais em criticar os “excessos” das reivindicações “corporativas” do que em analisá-las com objectividade. Pedro Marques Lopes escreveu (a 19 de Novembro, no DN, pela enésima vez?) que “ o que ficou, pela enésima vez transparente, é que a passagem do tempo tem uma importância vital para os professores muito simplesmente porque é o único critério para a sua progressão nas carreiras”, enquanto o subdirector do Jornal de Notícias, Anselmo Crespo de sua graça, decidiu apresentar como “paradigmático” o caso dos professores quando se trata de “discutir progressão profissional apenas com base no número de anos de trabalho, sem discutir os critérios de avaliação que levam a essa progressão” (JN, 20 de Novembro).

Estes são apenas alguns exemplos, de entre outros, de gente qualificada e informada para apresentar as questões com rigor e não com base em preconceitos ou ódios pessoais. São pessoas com obrigação de saberem do que falam ou sobre o que escrevem. Até porque ao longo dos anos existiu um esforço por explicar-lhes que as coisas não são como andam a repetir desde há muito, por exemplo, sobre a ausência de avaliação dos professores. Talvez o maior insucesso dos professores tenha sido exactamente a incapacidade para comunicarem os factos reais. Ou então passa-se outra coisa. Que me parece ser a permanência de um ódio visceral em alguns sectores das nossas pseudo-elites políticas e intelectuais (?) aos professores. Tudo porque estes decidiram reclamar quase uma década de tempo de serviço que se quer “desaparecido” da sua carreira, acrescendo que em troca receberam um vago “compromisso” de futura negociação sem qualquer outra garantia.

Há que separar dois tipos de críticas: as meramente biliosas, estapafúrdias e reveladoras de eventuais problemas de défice cívico (a generalidade das adjectivações boçais de um Rodrigo Moita de Deus) das que são factualmente falsas e devem ser desmentidas acerca dos “privilégios” dos professores, da alegação de terem passado incólumes à crise financeira e orçamental até 2011 ou de não terem avaliação e progredirem de forma “automática”. Porque muitas destas falsidades são voluntárias, seja por má-fé, seja por prescindirem de qualquer tentativa de verificação factual.

  • O desempenho dos alunos portugueses foi dos que melhor evolução teve em testes internacionais (TIMMS, PIRLS, PISA), ultrapassando os de alunos de países que nos quiseram apresentar como modelares. No caso dos PISA, Portugal é mesmo “ dos poucos países que no PISA 2012 reduziu simultaneamente a percentagem de low performers e aumentou o peso de top performers.”[1] Afirmar que os resultados dos alunos portugueses são miseráveis é, antes de mais, ofender os próprios alunos.
  • Os professores tiveram um congelamento da progressão nas suas carreiras desde 30 de Agosto de 2005 a 31 de Dezembro de 2007. Não foi apenas em 2011 que os professores sofreram com a crise orçamental. A 1 de Janeiro de 2011, apenas recomeçou um processo que vai com quase uma década no fim deste ano de 2017.
  • Para além disso, depois de múltiplas versões que limitaram através de quotas a progressão dos professores, permanece no Estatuto da Carreira Docente desde a versão do decreto-lei 75/2010 de 23 de Junho, um triplo estrangulamento na progressão, em três momentos da carreira. No nº 3 do artigo 37º determina-se que “A progressão aos 3.º, 5.º e 7.º escalões depende, ainda, dos seguintes requisitos: a) Observação de aulas no caso da progressão ao 3.º e 5.º escalão; b) Obtenção de vaga, no caso da progressão ao 5.º e 7.º escalão.”

Isto é bem claro e nem sequer deveria merecer discussão. A observação de aulas tem sido feita. O acesso aos escalões referidos tem sido objecto de quotas e, por muito que eu discorde do método, impediu qualquer tipo de progressão automática, muito menos a chegada ao “topo da carreira” nos anos que mesmo alguns governantes têm ajudado a difundir para a opinião pública.

As sociedades definem-se também pela forma como os professores são tratados e respeitados, nomeadamente por quem tem maior responsabilidade na informação da opinião pública. Esse respeito deve ir para além dos circunstancialismos particulares de cada momento ou dos conflitos políticos em decurso. É atribuída a Erasmo de Roterdão a afirmação de que “a primeira fase do saber é amar os nossos professores”. E é bem verdade que há entre nós quem abomine o saber, o conhecimento e aqueles que fazem ofício da sua transmissão. Pretendem uma sociedade domesticada pela ignorância, com a ressalva dos seus próprios nichos de privilégio privado.

A ausência de uma defesa clara dos professores nestes momentos de conflito mais aberto por parte dos responsáveis políticos do ministério da Educação tem, em meu entendimento, um significado importante, pois reforça a clivagem que já vem de longe entre decisores políticos e professores e a enorme desconfiança da generalidade destes em relação àqueles. Com interesses circunstanciais contrários ou não, parece-me impensável que num país que em alguns momentos se quer civilizado, “europeu”, desenvolvido, a classe docente possa ser assim difamada em terreno público perante o silêncio do ministro da pasta e dos seus secretários de Estado. Sabemos que existem antecedentes piores, mas a omissão perante este tipo de ofensas não é argumento. Tiago Brandão Rodrigues, Alexandra Leitão e João Costa têm uma missão pedagógica a desempenhar nestas matérias, ou tornam-se apenas versões menos agressivas da tríade Maria de Lurdes Rodrigues, Valter Lemos e Jorge Pedreira que em 2007 apostaram em virar a opinião pública contra a classe docente no seu todo. Há que nomear quem deve ser nomeado, porque se querem a responsabilização dos professores, também devem ser responsabilizados, nem que seja politicamente.

Os que desrespeitam os professores por acção ou omissão.

[1] Ana Sousa Ferreira, Isabel Flores e Teresa Casas-Novas (2007), Introdução ao estudo – Porque melhoraram os resultados PISA em Portugal? Lisboa: FFMS, pp. 14.

 

Janeiro de 2018

Educação, Política e Economia: Uma Relação Invertida

Há mais de 20 anos, António Guterres declararia a sua “paixão pela Educação”, expressão que entrou no discurso político contemporâneo como uma espécie de lugar-comum a que recorrem em especial aqueles que nela não encontram uma prioridade na governação. Se em meados dos anos 90 isso se enquadrou numa tendência de crescimento do investimento em Educação como proporção do PIB (de acordo com os valores recolhidos pela Pordata esse valor era de 3,1% em 1985, de 4,7% em 1996, chegando a 5,1% em 2002, com o valor per capita do investimento a quase decuplicar dos 70,6 euros por habitante para quase 700), com as políticas educativas a desenvolverem-se como uma área prioritária da governação, colocando-se ao seu serviço os recursos financeiros tidos como indispensáveis, a partir de então se o discurso não ousou uma completa inversão, a acção política em torno da Educação passou a estar subordinada a agendas de outra natureza, estando subalternizada (como a Saúde e outras áreas relacionadas com as funções sociais do Estado) a exigências de tipo financeiro e economicista.

A par do desinvestimento nesta área, em especial na sua dimensão humana, assistiu-se ao progresso da lógica da “racionalização financeira” e à insistência no argumento de que “investir mais na Educação não significa necessariamente melhores resultados”. Um antigo ministro da Educação e presidente do Conselho Nacional da Educação chegou a afirmar, em declarações à Lusa reproduzidas pelo Público em 24 de Setembro de 2016, que “a ideia de que toda a despesa em educação é investimento ‘é uma treta’.[1]

E assim, a Educação foi perdendo espaço nos orçamentos de Estado, verificando-se uma descida das despesas com este sector ao ponto de ficar abaixo dos 4% em 2015 e 2016 (o acréscimo para 4,8% em 2009 e 2010 corresponde ao pico da actividade da Parque Escolar, sendo que parte desses contratos estão agora sob investigação[2]), ainda de acordo com os dados disponíveis na Pordata[3], mesmo se ao nível do discurso político se afirmou uma recuperação da paixão de Guterres (“É hora de voltarmos a dizer, como dissemos há 20 anos, que a educação tem que ser de novo uma paixão deste país e é necessário investir na nossa educação”, declarou António Costa, defendendo que uma das grandes causas da próxima legislatura deve ser o combate ao insucesso e abandono escolar)[4].

Em 2010, num estudo, de que era co-autor Mário Centeno, actual ministro das Finanças, afirmava-se que “a evidência apresentada neste artigo aponta para a importância crucial de estabelecer um ambiente institucional que beneficie o investimento dos indivíduos na educação. Numa perspectiva dinâmica, torna-se necessário promover um conjunto coerente de políticas que preserve os retornos educacionais, alinhando os incentivos dos indivíduos com os da sociedade como um todo.”[5] A abrir o artigo citava-se a frase “Se acham que a Educação é cara, tentem a ignorância”, atribuída a Derek Bok, antigo presidente da Universidade de Harvard.

Seria de pensar que este tipo de confluência de perspectivas (a política de António Costa e a técnica de Mário Centeno) permitissem abrir um novo período na governação em que a Educação deixasse de estar condicionada pelo que se consideram ser os superiores interesses da gestão financeira de um Orçamento que cada vez é mais ditado por condicionalismos que se afastam do interesse da larga maioria dos cidadãos para obedecer a preceitos ideológicos ou tecnocráticos (o que determina o valor de 3% para avaliar da bondade ou maldade de um défice público? Não será essa uma abstracção arbitrária ditada por teorias económicas especializadas em falhar repetidamente as suas previsões?) e se ocupar quase em exclusivo com a satisfação dos interesses de grupos de pressão aos quais não se atribui a classificação de “corporativos” como aos professores quando reclamam que os seus contratos – e não apenas os das parcerias público-privadas ou os estabelecidos com empresas que exploram em regime de oligopólio sectores como a energia – sejam respeitados?

Sim, é verdade que nem todo o investimento em Educação se traduz na melhoria das aprendizagens e desempenho dos alunos e que não há uma relação directa entre mais dinheiro na Educação e melhores resultados em testes PISA, PIRLS ou TIMMS. Sim, também é verdade que o investimento em Educação não significa necessariamente (ou apenas) a melhoria das condições laborais do pessoal docente e não docente. Mas o contrário não é igualmente uma verdade indesmentível ou claramente provada pelos factos. O investimento feito na última década do século XX foi-se fazendo sentir com a melhoria dos resultados dos alunos ao longo da primeira década do século XXI.

Mas o que é mais importante em tudo isto é que a concepção sobre o papel da Política e Economia na definição das prioridades da governação da polis se alterou de uma forma que seria inconcebível para os primeiros teorizadores da coisa pública (Res Publica) como uma forma de governo o mais justa possível e em que as decisões da governação devem subordinar-se aos interesses dos governados, dos mais fracos e vulneráveis, mobilizando os recursos para a sua satisfação e não para a obtenção de privilégios em causa própria ou colocando a gestão financeira como uma valor maior do que a Educação, Saúde ou mesmo Justiça.

Recuperemos Aristóteles que há quase 2500 anos, com todos os condicionalismos sociais da época, afirmava que “quando se trata do governo da cidade, sempre que esse governo esteja fundado na base da igualdade e completa semelhança dos seus cidadãos, estes consideram justo governar por turnos; em tempos idos, como é natural, cada indivíduo considerava justo que os cargos fossem desempenhados em alternância, e pensava que, como retribuição, alguém zelaria pelo seu bem próprio, tal como ele mesmo zelara pelo interesse alheio durante a permanência no cargo. (…) A conclusão que se segue é clara: os regimes que se propõem atingir o interesse comum são rectos, na perspectiva da justiça absoluta; os que apenas atendem aos interesses dos governantes são defeituosos e todos eles desviados dos regimes rectos. São despóticos, mas a cidade é uma comunidade de homens livres.”[6]

Ou sobre a Economia que “o domínio sobre a mulher e os filhos e sobre a casa em geral, designado por economia, ou é exercido no interesse dos dominados ou num interesse comum a ambas as partes. Essencialmente é exercido no interesse dos dominados, como vemos nos demais saberes, como a medicina e a ginástica, em que apenas por acidente pode ser considerado o interesse dos que a praticam (…). O mestre de ginástica e o piloto visam o bem dos que se encontram sob a sua autoridade.[7]

Esta noção de governação da coisa pública como um exercício em que o que está em causa é o serviço público e não a cedência a interesses privados perdeu-se. Já Platão avisava, pela voz de Sócrates (o grego), que “os homens de bem não querem governar nem por causa das riquezas, nem das honrarias, porquanto não querem ser apodados de mercenários, exigindo abertamente o salário do seu cargo, nem de ladrões, tirando vantagem da sua posição. Tão-pouco querem governar por causa das honrarias, uma vez que não as estimam. (…) Ora o maior dos castigos é ser governado por quem é pior do que nós, se não quisermos governar nós mesmos. É com receio disso, me parece, que os bons ocupam as magistraturas quando governam (…). Efectivamente, arriscar-nos-íamos, se houvesse um Estado de homens de bem, a que houvesse competições para não governar, como agora as há para alcançar o poder, e tornar-se-ia então evidente que o verdadeiro chefe não nasceu para velar pela sua conveniência, mas pela dos seus súbditos”.[8]

[1] https://www.publico.pt/2016/09/24/sociedade/noticia/david-justino-diz-que-a-ideia-de-que-toda-a-despesa-em-educacao-e-investimento-e-uma-treta-1745109.

[2] http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/jose-socrates/operacao-marques-as-ligacoes-do-grupo-lena-ao-parque-escolar-de-socrates.

[3] – Consulta feita em 23 de Dezembro de 2017.

[4] https://www.jn.pt/nacional/eleicoes/interior/costa-recupera-paixao-pela-educacao-de-guterres-4784707.html

[5] Nuno Alves, Mário Centeno e Álvaro Novo, “O Investimento em Educação em Portugal: Retorno e heterogeneidade”, in .Boletim Económico do Banco de Portugal (Primavera de 2010), p. 36.

[6] Aristóteles, Política, livro II, § 6, Vega, 2008, pp. 115-116

[7] Idem, ibidem, p. 115.

[8] Platão, República, Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, s. d., p. 38.

 

Fevereiro de 2018

Para Um Novo Léxico Educacional

Preâmbulo

Todo o pensamento educacional e a própria realidade educativa actual se explicam na base da dualidade Direita/Esquerda, algo que é conhecido desde tempos imemoriais (Sócrates era de Esquerda, por exemplo, enquanto Aristóteles era de Direita), com especial destaque para abundante produção teórica e exemplos práticos desde tempos imemoriais, leia-se, lá fora desde os anos 60 do distantes século XX e cá dentro desde os anos 70 da mesma centúria. O que escrevo é sobejamente reconhecido e é estruturante na forma como a Educação é encarada e como se organizam todas as teorias pedagógicas e didácticas, bem como o quotidiano de docentes, discentes e parentes. Qualquer cartografia ou mapeamento do campo teórico e científico na área das Ciências, Economias, Políticas e Sociologias da Educação se organiza desta forma, em torno de dois pólos antagónicos que, com a sua força repulsiva, eliminam qualquer outra forma de pensamento vivo ou prática possível no campo intermédio entre si. Resultantes desta dualidade maior, desta oposição primordial, temos todas as restantes dualidades que, a seu tempo, serão analisadas neste dicionário, mas das quais destaco duas pela sua relevância: a dualidade competências/conhecimentos e a dualidade   processo/produto que desaguam, envolvem e se deixam envolver pela questão da avaliação que se divide em boa e ma, conforme o posicionamento de cada um em dado momento político. No tempo presente temos que a avaliação boa é a aferição e a avaliação má são os exames. Mas entre 2011 e 2015 foi ao contrário. E antes de 2011 era mais ou menos. Há fenómenos que, por exemplo, só se entendem à luz da oposição Direita/Esquerda, como, só para dar um pequeno vislumbre da problemática, são os casos da autoridade e da indisciplina ; no caso da Direita a primeira deve existir em toda a organização do sistema educativo a menos que se queira cair num caos esquerdista relativista ou, pior, numa espécie de democracia nas escolas e a segunda não deve ser tolerada de forma alguma; no caso da Esquerda a primeira é exemplo de fascismo pedagógico (uma variante extrema do conceito de Direita que logo se vê se terá verbete) e a segunda não existe ou é uma projecção irreal de professores com escassa formação ou sensibilidade. Por fim, convém destacar a excepção que confirma a regra, o conceito que consegue unificar Direita e Esquerda em termos educacionais e que é o fim supremo do Sucesso (e que constituirá pelo seu carácter de ómega quase hegeliano, a síntese possível das teses em confronto, a conclusão deste dicionário).

 

Autonomia – conceito muito popular no discurso político que se traduz, em termos práticos, na descarga de responsabilidades da tutela para “as escolas” em momentos de embaraço. Dura poucos meses, a menos que seja mesmo para ser o inverso, ou seja, limitar toda e qualquer possibilidade de divergência em relação a uma norma obrigatória. Por exemplo, é estranho quando um conceito como “autonomia” se associa a medidas obrigatórias ou a modelos únicos de gestão escolar ou orgânica interna das escolas.

 

Inovação – conceito bastante abrangente que leva no seu regaço todo o tipo de práticas que alguém, algures, considera nunca ter sido feito, mesmo que o tenha sido já muitas vezes, ou então algo que fica bem dizer num discurso quando não se sabe bem o que dizer em concreto sobre um dado tema, o que, em Educação, acontece com frequência com pessoal político dos mais variados escalões ou com especialistas com um projecto na manga a precisar de apoio ou subsídio. Na sua amplitude, este conceito pode dar abrigo a várias práticas que, em regra sem excepção, se destinam a aumentar o sucesso dos alunos.

  1. Algo que alguém num gabinete acabou de ler num artigo qualquer de uma revista ou jornal lá de fora ou que lhe chegou em forma de projecto por mão amiga e que acha o máximo dos máximos ser implementado entre nós. A fase seguinte é conseguir que a ideia seja transformada em experiência-pilotoe generalizada ao sistema de ensino público um ano depois, a menos que precise de uns grupos de trabalhopara aferir da sua evidente importância e nesse caso pode demorar dois anos. É quase regra universal que se traduza em qualquer coisa em forma de  transversalidade, ápex de tudo o que se pretenda inovador. Exemplo de uma inovação de esquerda: Educação para a Saúde (porque, ai-jesus, para a Sexualidade feria susceptibilidades); exemplo de inovação de direita: Educação para o Empreendedorismo.
  2. Prática que um decisor local (leia-se director, mas acredito que em breve será mais vereador ou presidente de câmara) quer desenvolver porque a acha giraou porque tem mesmo as pessoas certas para o fazer, em especial se a coisa em si ficar bem num relatório para a avaliação externa, por conduzir à diminuição das estatísticas do insucesso e abandono escolar. Há alguns tempos atrás garantia requisição ou destacamento certo a quem aceitasse a missão. Nos tempos de hoje, pode dar direito a recondução, contratação de escola mesmo a partir do fundo da lista (com o parâmetro de conhecimento da realidade da escola ou de perfil adequado a projectos inovadores), contratação de um formador especializadoou a um horário mais criativo no caso de professor já enquadrado.
  3. Proposta de trabalho com alunos com um modelo alternativo de organização das práticas ou horários, apresentada por um professor ou grupo de professores sem consulta prévia às hierarquias, que não se enquadra nas categorias anteriores e que entra em conflito com as rotinas de inovação já existentes. Em regra, a sua recusa resulta de se considerar ser um experimentalismo pedagógico sem fundamento, sem exemplos anteriores de produção de sucesso garantido ou porque não há crédito horário. A reprovação também é garantida se não surgir em documento escrito em trebuchet 11 a espaço e meio ou se os promotores tiverem peúgas da cor errada na segunda 4ª feira de cada mês terminado em “o”.

Paradigma – palavra bastante usada por pessoas que falam sobre Educação e querem demonstrar que leram coisas e são inteligentes, mesmo se não sabem distinguir o Kuhn do fundo das calças. Se usada em três ocasiões diferentes dá estatuto de especialista ou perito a quem o fizer. Pode ser uma por escrito em artigo curto de opinião, mesmo que seja no jornal local pago por anunciantes ou em boletim municipal, mais duas em intervenções públicas. Em debate televisivo vale dois pontos. É praticamente condição indispensável, e mesmo suficiente se combinada com o estatuto de representante (espero ter coragem para me abalançar a tal verbete) de algo, para se chegar a conselheiro nacional da educação.

Reforma – aquilo que todo o novo titular da pasta  da Educação considera ser essencial fazer para corrigir os erros enormes (embora não avaliados) do seu antecessor, em especial se era de outra cor política, sendo que só têm existido duas, rosa e laranja, ao longo de bastas décadas. Há, contudo, algumas nuances, no conceito e na retórica reformista de cada ministro, conforme adopte um discurso assumidamente de ruptura com o passado recente ou prefira uma retórica mais baseada na promessa de estabilidade, mesmo se na prática se notam poucas diferenças. No primeiro caso, opta-se por alguma fanfarra em torno de reformas que raramente tocam nos aspectos essenciais do sector mas que têm forte impacto mediático (é o caso da avaliação, seja de professores, seja dos alunos); no segundo, alteram-se aspectos importantes da vida do sector mas sempre com a garantia de que é tudo feito para tornar mais estável esse mesmo sector. Há ainda algumas subvariantes da pulsão reformista: os casos em que se misturam aquelas duas formas de discurso e de prática (ruptura para a estabilidade) e há ainda os que nada fazem, mas garantindo que o estão a fazer, desde que exista produção legislativa em abundância no diário da nossa república, com despachos explicativos, regulamentares ou outros, circulares em catadupa e portarias a condizer. Ou seja, uma enorme confusão. Quanto à preparação, há as reformas que se anunciam com um enorme trabalho prévio, mas que acabam em pouca coisa e os documentos preparatórios na gaveta e as que se legislam, encomendando-se os estudos para as justificarem a posteriori. Quanto à sua natureza, todas as reformas são muito boas, visando a melhoria do sistema educativo, o sucesso dos alunos e poupanças para os contribuintes, só falhando porque os professores não as compreenderam, não as souberam ou quiseram aplicar, por apatia ou má vontade.

 

Março de 2018

Quem desconfia das Escolas Públicas?

Um recente estudo do Observatório da Sociedade Portuguesa da Universidade Católica de Lisboa[1] voltou a colocar as escolas públicas em lugar de destaque entre as instituições de relevo em que os portugueses mais confiam. Realizado em Novembro de 2017, este estudo confirma o resultado de outro semelhante feito em Março de 2016, com o valor da confiança a manter-se estável (passou de 5,9 para 5,91), estando à frente das pequenas empresas (5,86), da polícia (5,82) ou das forças armadas (5,64) e muito distante das instituições que captam a menor confiança da sociedade (banca, igrejas, sistema judicial). Acima das escolas públicas, apenas a Presidência da República que melhorou imenso na opinião dos portugueses com a eleição de Marcelo Rebelo de Sousa (passando de 4,55 para 6,64 em cerca de ano e meio).

Este resultado está em linha com todos os estudos de opinião realizados ao longo dos anos em Portugal sobre o grau de confiança nas instituições e profissões existentes na sociedade portuguesa. É uma excelente notícia para todos aqueles que trabalham nas escolas públicas ou a elas confiam as suas crianças e jovens todos os dias, desautorizando por completo todos os discursos que de forma recorrente e insistente as apresentam como sendo motivo de desconfiança, atribuindo-lhes uma série de defeitos ou incapacidades por manifesta má-fé ou por determinação de uma agenda de interesses (ideológicos, políticos, económicos) a que é estranha a defesa da rede pública de ensino.

As críticas, quase sempre enunciadas sem qualquer preocupação de fundamentação empírica ou fugindo mesmo de qualquer demonstração factual, têm surgido nos últimos anos, de novo, a partir do próprio poder político que afirma querer defender a Educação Pública, assim como das suas extensões na comunicação social ou nos meios académicos receptivos a produzir opinião disfarçada de “estudos científicos”, assim a encomenda o determine.

A maior investida tem vindo a ser feita sobre o Ensino Básico, no sentido de justificar um conjunto de alterações no currículo e na avaliação dos alunos que se baseiam num conjunto de crenças de cliques político-académicas muito activas no nosso país há cerca de meio século, suportadas num conjunto de associações profissionais de professores em luta pelo domínio do desenho curricular. Mas sobre isso já aqui escrevi há meses e é cansativo escrever de novo sobre coisas velhas.

Mais recentemente, verificou-se a inflexão das críticas para o Ensino Secundário, nomeadamente para os exames que são feitos pelos alunos e que contribuem para a definição da sua média final, usada para o acesso ao Ensino Superior. As críticas, com origens diversas, desde as referências generalistas a “pais e professores” (notícia no Público de 10 de Fevereiro) a declarações legitimadoras por parte de “especialistas” da OCDE (Andreas Schleicher, em mais uma visita ao nosso país), procuram demonstrar como os exames do Secundário são factores de “desigualdade” entre os alunos, devido aos meios económicos diferentes que conseguem mobilizar para o apoio ao estudo para esses exames. De acordo com essas opiniões, essa “desigualdade” desapareceria com o fim dos exames e a transferência da responsabilidade do acesso ao Ensino Superior para as próprias instituições de acolhimento. Não se explica como isso aconteceria, nem como a existência de provas de acesso por parte das Universidades (mesmo que matizadas com entrevistas ou outro tipo de métodos como cartas de apresentação) faria como que a desigualdade de oportunidades, nascida de diferentes contextos económicos e culturais, se esfumaria.

Aliás, pelo contrário e pelo que se conhece de outras realidades, um sistema de ingresso definido apenas pelas Universidades e Politécnicos tenderia a aumentar ainda mais um sistema dual no próprio Ensino Superior, agravando a desigualdade entre as instituições mais procuradas e que assim teriam uma maior liberdade de selecção dos seus alunos e aquelas que, já hoje, lutam de forma desesperada por encontrar alunos que as mantenham em funcionamento. No sistema actual, os exames de final do Secundário ainda funcionam como um mecanismo regularizador e uniformizador, impedindo a completa desregulação de um sistema entregue à “liberdade de escolha” dos alunos pelas Universidades que, só em utopias desligadas da realidade quotidiana, reforçaria qualquer tipo de “igualdade” de oportunidades.

Um segundo argumento a favor do fim dos exames ou do papel das classificações do Secundário na definição do acesso ao Ensino Superior é o de que os alunos não estão a ser devidamente preparados para as exigências do ensino universitário e que, por isso mesmo, a média do Secundário é irrelevante para o sucesso no Ensino Superior. Até pode ser que em alguns casos seja assim, mas, como norma, este argumento apenas reforça a sensação de que as Universidades se fecharam sobre si mesmas e cada vez estão mais separadas do que se passa ao longo dos doze anos de escolaridade obrigatória e que preferem criar os seus critérios de acesso a tentar articular-se com os noutros níveis de ensino de forma harmoniosa.

Este tipo de atitude, de menorização do papel do Ensino Secundário, enquadra-se de forma clara na tendência já verificada de desvalorização crescente do desempenho dos alunos no Ensino Básico por parte de quem acha que o “sucesso” deve ser uma espécie de imperativo administrativo, independentemente do real mérito académico. Acabar com o peso do Ensino Secundário no acesso ao Ensino Superior, ou torna-lo residual, é coerente com uma atitude de completa de menorização definitiva daquele nível de escolaridade que se tornaria, ao perder qualquer aspecto pré-universitário, apenas mais uma fase de uma longa escolaridade obrigatória sem qualquer tipo de responsabilidade acrescida para os alunos.

A extensão da escolaridade obrigatória para doze anos trouxe problemas complicados de resolver que, na pressa demagógica e eleitoralista de aprovar uma legislação tida como popular, foram subvalorizados. Porque para muitos alunos a escolaridade de nove anos já era complicada de cumprir, a de doze anos tornou-se um verdadeiro labirinto sem sentido. E o “empurrão” para a frequência de vias pretensamente “profissionalizantes” não resolveu nada, em especial quando as regras de funcionamento em termos de avaliação e assiduidade são ficções muito pouco piedosas. No caso da avaliação, porque os alunos não estão em condições, depois de um Ensino Básico feito sob a exigência do “sucesso”, de aguentar com um maior nível de exigência, seja numa avaliação mais tradicional seja em metodologias de “projecto” copy/paste; no caso da assiduidade, porque as exigências formais de presença nas aulas e de justificação de faltas se tornaram uma espécie de faroeste onde vale de tudo um pouco para maquilhar a realidade de um abandono funcional que as escolas (directores de turma, professores) têm receio de assumir, porque a responsabilidade pelo “fracasso” será sua. Mas o Ensino Secundário não se pode transformar em mais uma extensão do laxismo que os imperativos políticos se têm esforçado por instalar no Ensino Básico.

Voltando ao início… ao contrário do que nos querem fazer crer governantes em trânsito para carreiras internacionais ou os seus convidados favoritos quando a OCDE é a instituição de referência para a legitimação das políticas, as escolas públicas não estão em crise, não estão desajustadas do seu tempo e fazem o possível e muito do impossível para preparar os seus alunos para o que os espera do ”outro lado”, para o dia em que saem dos seus portões e deixam de beneficiar da imensa protecção que os professores não-superiores (e pessoal não docente) lhes dedicam. Isso é reconhecido pela sociedade e está amplamente demonstrado em estudos sucessivos. A confiança nas escolas públicas só não é um facto para quem tem interesse em denegri-las de forma sistemática. Há quem diga que é a publicação dos rankings que “humilha” as escolas públicas. Há quem afirme que são os exames que agravam os fenómenos de “desigualdade” entre os alunos. Nada de mais errado. Quem “humilha” as escolas públicas são aqueles que as estão permanentemente a criticar e a dar-lhes lições sobre a forma como devem desempenhar a sua função. Aqueles que deixaram de lutar contra a desigualdade na sociedade e na economia e depois acusam as escolas de não fazerem o suficiente.

[1] “Estudo da Sociedade Portuguesa- Confiança no governo, em instituições e em serviços públicos, hábitos de consumo e de poupança, e confiança económica (Novembro 2017)”, disponível (Fevereiro de 2018) em https://www.clsbe.lisboa.ucp.pt/asset/30776/file.

 

Abril de 2018

Uma Quarta-Feira Qualquer

Escrevo este texto a uma quarta-feira, dia ideal para exercer a auto-crítica como outro qualquer. Até porque esta foi uma semana em que me voltei a portar mal, perturbando colegas e alunos de forma desnecessária, em virtude de ter uma concepção oitocentista da escola e referenciais éticos ultrapassados em relação ao que devem ser as funções docentes e discentes. Por exemplo, por não ter conseguido ainda fazer um upgrade mental que tantas outras pessoas especializadas no estudo da Educação conseguiram, ainda insisto em aborrecer os alunos que faltam a aulas de apoio, mas depois se queixam de não terem o devido apoio dos professores; que estão nas aulas numa de “social”, achando com toda a justiça que deve ser um espaço de convívio e troca de ideias sobre a vida (pré)adolescente, em vez de uma câmara de tortura em que se deve olhar para o quadro (interactivo, note-se) e passar alguns dos exercícios ou apontamentos projectados e não ir para casa dizer que os professores apagaram tudo antes de terem tempo de tirar uma fotografia da coisa.

Sinto que falhei, porque continuei com prédicas desajustadas e antiquadas sobre a importância da aprendizagem de conteúdos arcaicos como os verbos (cruzes, para quando um acordo morfológico que acabe com o conjuntivo, o condicional, os copulativos e defectivos), o cálculo (sim, interesso-me pelo desempenho da minha direcção de turma em outras disciplinas) ou o funcionamento da democracia após o 25 de Abril. Ao chegar ao final da semana, reconheço que andei rezingão, aborrecido, pouco compreensivo, não me tendo deixado ainda possuir por uma nova forma de encarar o espaço escolar como uma ferramenta de socialização e não necessariamente de inculcação de paradigmas cognitivos que não se enquadram na fruição de uma sociedade em rede inter-pesssoal e digital, na qual os indivíduos devem seguir os seus interesses e pulsões, pelo menos até saírem dos doze anos de escola obrigatória.

Por outro lado, tive muitos maus pensamentos, por não ter conseguido ainda uma estratégia eficaz de auto-aperfeiçoamento que me faça perceber que a vida docente deve ser a de actividades em sucessão e sobreposição, todas vocacionadas para preparar, implementar, monitorizar e balancear o sucesso. Aborreci-me com coisas que me deveriam alegrar, pois toda a tarefa que visa assegurar “sucesso” aos alunos, nem que seja aplicando materiais comuns para diferenciar estratégias. Em vez de perceber que o futuro se anuncia risonho por permitir que eu dê a minha disciplina apenas de seis em seis meses a cada turma e que nem sequer terei de me preocupar com “exames” no 6º ano, insisti numa análise errada de que os alunos, mesmo alguns dos melhores, cada vez mais se estão borrifando – como é seu direito – para escrever frases com sentido. E irritei-me com palavrões proferidos aos berros à saída das aulas para regozijo geral da petizada ou mesmo quando soube que um aluno criativo gosta de urinar em garrafas que depois atira contra as paredes da casa de banho ou tenta dar a beber a outros colegas. Escapou-me, claramente, a forma inovadora de entender as relações interpessoais, assim como ainda não interiorizei que o que interessa é parecer que se faz alguma coisa ou que se fazem coisas mais relevantes que os outros. Continuo agarrado à ideia que cada pessoa deveria preocupar-se em fazer o seu trabalho antes de meter o nariz no dos colegas, mas essa é uma maneira compartimentalizada de encarar as coisas, num tempo em que devemos ser fluídos e experienciarmos um contínuo colectivizado. Falha maior, talvez de soberba, considerei que há grupos de professores que se deveriam preocupar mais com as condições concretas em que a sua disciplina é leccionada do que em conquistas simbólicas de poder. Escrevi sobre isso, perdendo tempo quando poderia ter reproduzido vídeos azul-bebé de webinares sobre coisas giras que aparecem no site da Direcção Geral da Educação com pessoas muito felizes consigo mesmas e raramente preocupadas com aulas reais em escolas sem Parque Escolar.

É quarta-feira, está a meio mais uma semana em que, de forma manifesta e clara, digna de punição, ainda não consegui entrar no século XXI, o do império das aparências. Logo eu que até li Lipovetsky desde novo. Exemplo claro de que ler em si de pouco serve quando se é impermeável à inovação transformadora, de que não percebi nada e que comprar livros só serviu para gastar dinheiro, ocupar espaço na estante onde poderia estar um bibelot fofinho e acumular poeira nas folhas amarelecidas. Só não vou já, em penitência, de joelhos a Fátima, Compostela e Lourdes, porque isso deve fazer-se em dias de temporal, para que o calvário seja mesmo um martírio, e não em dias em que as andorinhas já regressam.

Ainda nesta quarta-feira de Março, pela hora de almoço, verifiquei que o governo do meu país anunciou que “Portugal recebe, nos dias 22 e 23 de março, a Cimeira Internacional sobre a Profissão Docente (International Summit on the Teaching Profession 2018), um fórum que reúne Ministros da Educação, líderes de estruturas sindicais representativas dos professores, bem como professores e peritos, promovendo a troca de experiências e reflexão sobre as políticas públicas de educação”[1].

Como é habitual nestas circunstâncias, o “evento” destina-se a quem “estuda”, “reflecte”, “aconselha” ou “decide”. “A ISTP2018 é organizada pelo Ministério da Educação em parceria com a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico (OCDE) e a Internacional da Educação (EI).” A calendarização e o horário, mesmo nos últimos dias do segundo período, quando a “classe docente” está em abundante trabalho burocrático de preparação da avaliação dos alunos, são claras quanto ao desinteresse da organização em ter no Centro Cultural de Belém mais do que um selecto conjunto de convidados, cortesãos do poder que está e certamente daqueles “professores” sem alunos, por inerência dos cargos.

No comunicado oficial, o nosso homem na OCDE, Andreas Schleicher surge a afirmar que “na OCDE, esperamos partilhar os nossos conhecimentos e dialogar para identificar como melhor ajudar os professores a enfrentarem os enormes desafios da educação do século XXI. Os nossos anfitriões em Portugal constituem um excelente exemplo de como os sistemas escolares podem progredir rapidamente para resultados educacionais melhores e mais equitativos, investindo nos seus professores”[2].

Lê-se a passagem e não se acredita como é possível recriar a realidade de tal forma para consumo internacional. As afirmações de Schleicher são apenas uma modalidade de fake news. Os professores portugueses foram objecto de cortes nos seus salários (a reversão é retórica, a perda real de salário anda acima dos 10% nesta década) e de um congelamento a dois tempos que lhes apagou quase nove anos e meio de carreira. Existiu uma greve nas últimas semanas em especial por esse motivo. A progressão na carreira tornou-se uma miragem para milhares através de um sistema de quotas sem qualquer tipo de explicação razoável. O modelo de avaliação do desempenho docente é uma ficção pouco caridosa, em que um avaliador pode sê-lo só por estar um escalão acima do avaliado, mesmo que este tenha formação específica, investigação feita na área ou mais graus académicos. Um professor suficiente/bom anos a fio pode ir avaliar um colega muito bom/excelente, apenas porque entrou mais cedo no que já foi uma carreira.

Este tipo de conferências, debates, seminários, têm reforçado o seu carácter “fechado”, endogâmico, sem qualquer tipo de contraditório, funcionando como câmaras de eco, visando formatar uma elite que irá, depois, multiplicar o discurso ouvido do topo para a base, enquanto nas escolas se mantém um modelo de gestão que se baseia na hierarquia, nomeação e obediência acrítica às circulares, recomendações, portarias e decretos emanados da tutela, sem qualquer interesse em recuperar uma participação mais activa dos docentes na organização escolar. Defendem-se “práticas colaborativas”, desde que elas não se apliquem ao modelo de gestão. Postula-se a “autonomia” desde que ela se mantenha dentro dos limites definidos superiormente. Anuncia-se a “flexibilidade”, mas apenas se aceita a que corresponde a uma aceitação invertebrada de conceitos “inovadores” que já mostraram no passado a sua falência quando associadas a um desinvestimento real nos professores.

Em suma, esta é uma apenas mais uma quarta-feira, como qualquer outra.

[1] https://www.portugal.gov.pt/pt/gc21/comunicacao/comunicado?i=cimeira-internacional-sobre-a-profissao-docente.

[2] https://www.portugal.gov.pt/download-ficheiros/ficheiro.aspx?v=a4531cf8-7403-4163-9fcc-2993bc41e0fb.

 

Maio de 2018

O Tempo da Educação

O ano lectivo de 2018/19 vai ser marcado pelo cruzamento de diversas políticas com um impacto directo na vida das escolas e daqueles que nelas desenvolvem o seu trabalho quotidiano, sejam alunos, pessoal não docente ou docente. Não esquecendo as famílias dos alunos, que os confiam a maior parte das horas de cada dia a essas escolas. Teremos, entre outras alterações certamente menores, três grandes áreas de mudança: o avanço da chamada “descentralização de competências” do Estado Central para as Autarquias em matéria de Educação (leia-se “municipalização da Educação”); a generalização do que se tem apresentado como projecto de “Autonomia e Flexibilidade Curricular” (leia-se, segunda vaga da “Gestão Flexível do Currículo” e ainda o novo regime jurídico da Educação Inclusiva).

Todas estas medidas têm vindo a ser anunciadas, debatidas, objecto de pareceres diversos, alteradas na sua versão mais recente, mas ao finalizar o mês de Abril e com o terceiro período do presente ano lectivo já a caminho da fase dominada pela realização de provas de afeição e provas finais de ciclo no Ensino Básico e exames do Ensino Secundário, ainda não se conhecem os diplomas na sua versão final, criando imensas zonas de incerteza quanto a muitas condições concretas da sua implementação que impossibilitam a sua preparação atempada. Em alguns casos, há versões em discussão datas de finais do mês de Março e pareceres (do Conselho de Escolas e do Conselho Nacional da Educação) que não se percebe se foram feitos contemplando as últimas modificações introduzidas.

Só quem conhece os ritmos dos tempos escolares por dentro é que consegue entender verdadeiramente que um ano lectivo não pode, nem deve, começar a ser pensado a meio ou no final do terceiro período do ano anterior a um “ímpeto reformista” com esta dimensão. Porque estas mudanças implicam alterações profundas em áreas como o desenho do currículo a nível local, a definição do perfil das turmas a constituir, a caracterização dos alunos a incluir, em muitos casos pela primeira vez, em turmas ditas “regulares” ou mesmo qual o órgão com autonomia para definir e aprovar, em última instância, as orientações estratégicas das escolas e agrupamentos. Não pode ser a partir de Maio, quando todos, com destaque para os professores, estão envolvidos em diversas funções que exigem um elevado grau de concentração e responsabilidade, que este tipo de medidas deve ser “despejado” sobre as escolas, esperando-se que – com prazos reduzidos – tudo seja preparado de uma forma conveniente,

Quem não vive em gabinete ou absorvido por agendas políticas, sabe que existe uma espécie de período mais calmo, ali por Janeiro-Fevereiro, até ao Carnaval, em que nas escolas se experimenta alguma “respiração”, adequada para que as “novidades” cheguem, comecem a ser digeridas e preparadas com reflexão crítica e ponderação e não na base do empurrão de última hora. Depois, beneficiando desse período, pode vir sim, a fase da “operacionalização” das mudanças.

Infelizmente, o tempo político e legislativo é praticamente imune a este tipo de considerações e produz diplomas quando calha, embora curiosamente, nos últimos tempos, com preferência para o final dos anos lectivos, a pior altura para o fazer. A preparação dos diplomas, os debates, a agenda e a propaganda política exigem um ritmo diferente ou apenas são indiferentes a tudo isso. As negociações com os grupos de pressão ou com os potenciais apoiantes na defesa das medidas são mais importantes do que o bom funcionamento das escolas e temos três tipos de produção legislativa desajustada no tempo: a torrencial (muda tudo de uma vez), a recorrente (a que muda quase todos os anos, como acontece com os programas) e a fora de tempo (atrasada, dificultando – talvez de forma voluntária? – a sua aplicação de um modo ponderado). Fazendo lembrar outros períodos de “torrente legislativa”, os meses que se aproximam serão de publicação de um conjunto de diplomas que são demasiado importantes para que sejam impostos às organizações escolares sem o respeito pelo devido tempo para a sua preparação, atendendo aos contextos específicos. Até porque se defende uma territorialização das políticas e uma individualização das estratégias que não se compadece com fórmulas generalistas, negociadas na sua fase final muito longe das escolas, sobre as quais apenas se lançam “formações” apressadas e com um conteúdo mais próximo da pura propaganda do que do convite à discussão informada.

Essa discussão informada das políticas anunciadas também tem estado bastante ausente do espaço público mediatizado, merecendo escasso escrutínio por parte de uma comunicação social conformada a divulgar o que é mais conveniente à agenda política governamental, sem promoção de um debate autónomo e muito menos de uma reflexão crítica.

É comum falar-se no tempo mediático como sendo epidérmico, de curta duração, que reage a epifenómenos ou a decisões tomadas na sequência de eventos singulares mas dramáticos, que se julga terem maior impacto na opinião pública. Em tempos digitais de feroz concorrência com base na velocidade, o tempo mediático tornou ainda mais complicada a possibilidade da tal “respiração” de que se falou mais acima, essencial para que as medidas sejam, mais do que discutidas em circuitos fechados ou de sentido único, aplicadas após um escrutínio público alargado. Passou a ser prioritária a divulgação de um qualquer episódio de violência escolar de um descalabro em instalações ou de uma disputa sobre as matrículas numa escola de referência em Lisboa, partindo-se do caso particular e singular para a “descoberta” pela enésima vez dos problemas da “indisciplina”, da “falta de investimento” ou da “liberdade de escolha” das famílias.

Esta tendência para a fixação em epifenómenos, tem-se vindo a cruzar com uma função perversa de alguma comunicação social que é a de funcionar como caixa de ressonância dos decisores, numa espécie de pacto renovado entre quem decide e quer ter boa imprensa e quem dá notícias e precisa da boa vontade das fontes oficiais. E voltámos a ter, após poucos anos de algum escrutínio crítico – e com óbvias excepções – a produção de notícias conforme a chegada dos tais dossiês temático-políticos das centrais de comunicação do governo ou ministérios, de divulgação negociada em “exclusivo”, levando a um empobrecimento evidente do papel específico da comunicação social na análise de propostas ou decisões apresentadas como incontroversas, inadiáveis ou por demais evidentes.

As consequências de tudo isto: o reforço da sensação de isolamento das escolas e dos professores perante, não apenas a tutela por mais auditórios que encha com requisições à força de audiência por parte das amizades directivas convergentes, mas uma informação e opinião publicada cada vez mais distante do seu quotidiano ou então alinhada apenas pelo pensamento central unificado em torno da Educação como aborrecida obrigação orçamental, que convém “descentralizar” e “flexibilizar” com pózinhos mágicos retirados do baú dos tesourinhos pedagógicos deprimentes de finais do século XX.

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Nas últimas semanas, foi divulgada uma iniciativa legislativa de cidadãos no sentido da “consideração integral do tempo de serviço docente prestado durante as suspensões de contagem anteriores a 2018”, ou seja, de recuperar para efeitos de progressão na carreira os mais de nove anos em que a carreira docente esteve “congelada”. Esta iniciativa apenas pretende que não seja apagada quase uma década de serviço prestado por educadores e professores; não pretende que sejam recuperadas as perdas salariais sofridas, não tem qualquer pretensão “retroactiva”; nem pretende a sua implementação imediata, em 2018, pelo que não fere qualquer preceito relativo ao aumento dos encargos orçamentais existentes. Apenas pretende que o tempo de serviço efectivamente prestado seja considerado para posicionamento dos docentes no escalão respectivo. O que até ao momento é conhecido a este respeito é um preceito vago inscrito num artigo da Lei do Orçamento de Estado para 2018, em que a “expressão remuneratória do tempo de serviço (…) é considerada em processo negocial com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização”. As negociações a este respeito entre governo e sindicatos têm estagnado de forma desanimadora.

Esta iniciativa legislativa é promovida à margem de qualquer tipo de organizações (sindicais, partidárias ou mesmo associativas de professores) e enfrenta as naturais dificuldades de quem não tem uma rede física para recolha das 20.000 assinaturas indispensáveis para ser discutida em sede parlamentar. É, contudo, um exercício de cidadania da sociedade civil que merece o respeito de todos, a começar por aqueles que afirmam representar os interesses da classe docente.

 

Junho de 2018

Visões Holísticas e Pré-Avaliações

Na crónica anterior, queixava-me do atraso com que se estão a debater e preparar a nova vaga de reformas na Educação. Identificava então três documentos por conhecer em concreto sobre aspectos essenciais para o funcionamento das escolas e para a preparação da vida das comunidades educativas no próximo ano lectivo (municipalização da Educação, regime jurídico da Educação Inclusiva, Autonomia e Flexibilidade Curricular). Não me lembrava, por manifesta distração, que uma outra matéria ainda estava em suspenso. E eis que temos, a poucas semanas do final das aulas e do início de provas finais e exames (as provas de aferição já decorrem,) um novo conjunto de documentos em discussão pública, desta vez sobre as “aprendizagens essenciais” de todas as áreas disciplinares e disciplinas dos nove anos do Ensino Básico. Isto significa que é altamente previsível que seja necessário voltar a alterar planificações na generalidade das disciplinas, mesmo que sem adesão à flexibilidade curricular, sendo isto especialmente grave em disciplinas como o Português que experimenta sucessivas mudanças de programas, conteúdos, metas e aprendizagens na última década, ou como a Matemática que tem uma definição de “metas essenciais” quando já se anunciou que existirá uma nova reforma do programa para todo o Ensino Básico a breve prazo.

Adivinha-se um Verão muito quente, de muito trabalho apressado, se é para tomar como boas as garantias oficiais que tudo isto é para estar em implementação a partir de Setembro. Até porque de acordo com a DGEstE “o processo de constituição e validação de turmas deve estar concluído até 15 dias úteis depois de publicação das listas de alunos admitidos, contados a partir do dia 21 de julho, no caso da educação pré-escolar e ensino básico, e 29 de julho, no caso do ensino secundário.[1] Como é que há quem afirme defender os “interesses dos alunos” quando, por sua defeituosa acção, está instalada uma incerteza enorme sobre a forma de constituir turmas e elaborar os respectivos horários? Ou como é possível defender que num punhado de anos se mudem 2, 3, 4 vezes os referenciais para o ensino do Português e da Matemática, ao sabor de cliques académicas?

Uma Inclusão Holística?

Esta situação agrava-se com a desorientação que se constata em algumas formações que andam a ser feitas pelo país sobre, por exemplo, o que deverá ser o novo modelo de Educação Inclusiva. Comparando o que é apresentado por formadores diferentes, mas com aparente certificação oficial pelas funções desempenhadas, em diferentes pontos do país, constata-se que existem diferenças no que é transmitido, a par de uma enorme inconsistência nos conceitos usados. Em materiais facultados a em acções de “formação” ou mesmo de “formação de formadores” na área da Educação Especial, desde Março, destaca-se uma “visão holística, sistémica e integrada” que não se percebe exactamente qual é, para além do recurso a passagens com escasso conteúdo substantivo, como a que se pode ler numa formação dada em Chaves em 16 de Março. Sobre o chamado Perfil do aluno lê-se que “é um perfil que se foca mais nas potencialidades dos alunos do que nas suas necessidades e dificuldades”. Numa outra formação, na zona de Lisboa, em sessão do dia 7 de Maio, sobre “Desenvolvimento de uma Escola Inclusiva: dos Princípios às Práticas” pode ler-se na apresentação que “chegou o momento de ajustar as velas… não é possível voltar atrás!” mas, ao terminar, no último slide (nº 55), salvaguarda-se que “após discussão pública desconhecem-se as eventuais alterações pelo que após a publicação do diploma em Diário da República, alguns dos conteúdos destes slides poderão carecer de atualização”. Ou seja, não é possível voltar atrás, mas não se sabe bem para onde se vai ou o que se vai fazer. Sendo que se estamos a falar do trabalho com as crianças e jovens que mais precisam de uma intervenção estruturada e individualizada por parte de técnicos, educadores e terapeutas, especializados e não de abordagens new age, do tipo lançamento de búzios ou leitura do voo das aves.

Pré-Avaliação à maneira da OCDE

Contrariando esta desorientação sobre o que vai verdadeiramente acontecer, temos um relatório da OCDE com o título Curriculum Flexibility and Autonomy in Portugal – na OECD Review[2] que consegue fazer uma coisa fantástica que é avaliar uma reforma curricular poucos meses depois de ela estar a ser implementada numa minoria de escolas do país.

Apresentemos os factos: cerca de 230 agrupamentos e escolas não agrupadas da rede pública e privada (num universo superior a 800 “unidades orgânicas” só na rede do Estado) aderiram com turmas-piloto em anos iniciais de ciclo ao chamado Programa de Autonomia e Flexibilidade Curricular a partir de Setembro de 2017. Entre 15 e 19 de Janeiro de 2018, uma vasta equipa de especialistas da OCDE esteve em Portugal e visitou uma amostra de escolas em Lisboa, Moita, Azeitão, Alcanena, Almada, Vialonga, Seixal, Sintra e Odivelas. Para além da concentração geográfica da amostra e da sua escassez, apenas num dos casos foi visitada uma escola não aderente ao projecto. O que significa que a amostra está longe de ser representativa do próprio universo das escolas que aderiram ao projecto (só uma a mais de 50 km de Lisboa), para não falar de estar completamente distorcida qualquer representatividade da rede escolar a nível nacional, com uma sobre-representação evidente (8 em 9) das escolas que fazem parte do projecto, o que impede qualquer pretensão de estudo comparativo.

Mas há problemas maiores no que se apresenta como uma review de 70 páginas que mais parecem um extenso folheto de propaganda oficial do Ministério da Educação. O trabalho de campo limitou-se a conversas com painéis selecionados em visitas de uma manhã ou tarde a cada escola/agrupamento, não se percebendo como se desenvolveu a parte da “pesquisa e análise”, a menos que seja com base em elementos dados pelos organismos dependentes do poder político que tem tentado, por todos os meios, promover esta “reforma curricular”. Acrescendo a isso que tais visitas aconteceram a meio do ano lectivo, sem estarem disponíveis quaisquer indicadores objectivos passíveis de serem usados para avaliar o desempenho dos alunos e escolas do projecto e para o comparar com outros alunos e escolas. Ou seja, a “pesquisa e análise” parece ter-se limitado ao que se costuma designar com “investigação qualitativa”, mas numa versão pobre, sem qualquer tipo de contraditório à versão oficial. Pelo que não é de estranhar que nas páginas da review se sucedam paráfrases extensas dos documentos oficiais do Ministério da Educação sobre o Perfil do Aluno, a Estratégia Nacional das Competências, o Plano Nacional para a Promoção do Sucesso Escolar ou mesmo a “Nova Lei para a Inclusão” (p.8) que, como sabemos, ainda não está publicada ou é conhecida na sua versão final em meados de Maio, mas é usada em Janeiro como se fosse um documento em vigor. Tudo misturado com umas estatísticas e recomendações da própria OCDE.

Lemos e custa-nos acreditar que seja assim que as coisas se façam, em especial com a chancela de um organismo com a OCDE. É verdade que há mais de 9 anos, em Janeiro de 2009, um primeiro-ministro apresentou como sendo um “relatório da OCDE”, afirmando nunca ter visto “uma avaliação sobre um período da nossa democracia com tantos elogios e tanto apoio a reformas e mudanças ao serviço da Educação pública em Portugal”, aquilo que não passava de uma encomenda paga pelo Estado português a técnicos da OCDE. Acabando esse mesmo primeiro-ministro por afirmar que, afinal, era um estudo feito com “metodologia da OCDE”. É igualmente verdade que há 5 anos, em Janeiro de 2013, um outro Governo apresentou publicamente um relatório do FMI com uma série de recomendações para a “reforma do Estado” que estava polvilhado de erros e estatísticas truncadas, algo que tive hipótese de, olhos nos olhos, denunciar.

Que me ocorram esses episódios tristes de instrumentalização política de “estudos” todos estes anos depois não é um bom sinal, pois parece que estamos de regresso – alguma vez teremos deixado de estar? – a estratégias de instrumentalização da Educação ao serviço de interesses políticos, vaidades pessoais ou caprichos ideológicos de algumas cliques académicas. Mas é aqui que a Memória se impõe para que se tentem evitar velhos erros, mesmo que apareçam com roupagens novas.

[1] Cf. https://www.dgeste.mec.pt/wp-content/uploads/2018/04/FAQsMatriculas1819.pdf.

[2] http://www.oecd.org/education/2030/Curriculum-Flexibility-and-Autonomy-in-Portugal-an-OECD-Review.pdf.

 

Julho de 2018

As Falácias nos Ataques aos Professores

No momento da publicação desta crónica deve estar em decurso uma greve às reuniões de avaliação por parte dos professores do Ensino Básico e Secundário. Contra a sua realização e regressando a um discurso que se esperava abandonado há anos, assistimos a uma investida de parte da classe política no sentido de desacreditar a justiça ou “equidade” das reivindicações de um grupo profissional que tem, pelo menos, formalmente um estatuto de carreira que foi essa mesma classe política a legislar contra a vontade expressa dos professores.

Como em outros momentos essa investida tem sido feita com base em dados truncados, repetição de falsos lugares-comuns e falácias que deveriam estar ausentes do combate político, por intenso que seja. Há declarações que são de tal forma falsas que não merecem especial contestação (como as do actual presidente da Câmara Municipal de Lisboa que em comentário televisivo acusou os professores de reclamarem quase dez anos de “retroactivos”, algo que nunca chegou sequer a ser considerado), mas há outras que, devido à aparência de algum rigor e por se multiplicarem, exigem que se faça um esforço por demonstrar o seu aspecto falacioso.

Falácia 1 – “A opinião pública já não suporta ou apoia as reivindicações/queixas dos professores”.

Vamos a factos, tendo sempre em conta que esta é a linha de argumentação que teve origem no famoso “perdi os professores, mas ganhei a opinião pública” e que é retomada pelos senhores presidentes da Confap e alguma opinião publicada. Lamento repetir o essencial de textos escritos no passado, mas a cartilhas truncadas e manipuladas, deve responder-se com a repetição de factos objectivos.

Em 2008, quando se avolumava a contestação a Maria de Lurdes Rodrigues/Sócrates, em estudo do insuspeito Fórum Económico Mundial afirmava-se que “professores são a profissão em que portugueses mais confiam”[i]. Em outra notícia especificava-se que “os professores merecem a confiança de 42% dos portugueses, muito acima dos 24% que confiam nos líderes militares e da polícia, dos 20% que dão a sua confiança aos jornalistas e dos 18% que acreditam nos líderes religiosos”[ii].

Em meados de 2010, após anos de conflito com os governos de José Sócrates “um estudo realizado em 19 países revela que os portugueses confiam pouco nos políticos, advogados, banqueiros, gestores de grandes empresas e juízes, e depositam mais credibilidade nos bombeiros, professores e carteiros. De acordo com o documento citado pela Lusa, entre as profissões em análise, os bombeiros continuam a ser os mais confiáveis, com 93 por cento, seguidos a curta distância pelos professores e carteiros”[iii].

Para não me alongar, passemos para 2016, quando um novo estudo de opinião confirmava que “a credibilidade das chamadas profissões incontroversas, como bombeiros (a liderar o ranking das profissões mais confiáveis com 90%), enfermeiros e professores (89%) e médicos (88%) permanece globalmente estável desde 2014, com estas profissões a ocupar o topo do ranking de confiança”[iv]. Já em 2018, quando se começavam a avolumar novas ameaças de conflito, a situação é similar, constatando-se que “são os professores e os polícias em quem os portugueses depositam maior confiança. Interrogados sobre o grau de confiança que têm na capacidade da escola em ensinar coisas úteis aos alunos, 61,1% dos inquiridos responderam ter um grau médio e 20,8% um grau elevado de confiança. No trabalho dos polícias no combate crime, 54,3% disse ter um grau de confiança médio, e 29,3% grande”[v].

Claro que há sempre explicações criativas do género que pretendem desvalorizar um conjunto de estudos com resultados consistentes ao longo do tempo, mas são quase sempre argumentos que se podem classificar entre o Achismo e a 5ª Dimensão Argumentativa.

Falácia 2 – “Os professores progridem automaticamente, sem demonstração de mérito, sem avaliação.”

Pode sempre acrescentar-se que também dizem que ganhamos muito. Mas eu vou ficar logo pelo início que é o conceito de progressão. Os professores “progridem” mesmo, em termos reais? Progridem exactamente em quê? Porque eu posso sempre dizer que um esquilo passou a ser um elefante, sem que ele deixe de ser um esquilo.

Não vale a pena estarmos com rodeios: o que aflige na “progressão” dos professores são os rios de dinheiro que passam a ganhar com ela. Então vamos lá verificar os factos. Há 10 anos eu estava no último ano do 4º escalão da “nova” estrutura da carreira, no índice 218. Em Maio de 2018 cheguei ao 6º escalão (10 anos para passar pelo 5º escalão que tem apenas 2 nos dados que mandam para as comparações da OCDE), índice 245. Se compararem os recibos desses dois momentos, não sei se haverá razão para invejar a minha colossal “progressão”.

Nominalmente, o meu salário aumentou 12,1%, mas passei a receber efectivamente menos 2% do que uma década e dois escalões atrás (mais a inflação que andou perto dos 10% para este período). Já os meus descontos para o IRS/CGA/ADSE (aquilo que certos “privados” acham ser os únicos a pagar) aumentaram mais de 49%. E nem falemos dos indirectos, a começar pelos combustíveis.Progressão, assim no sentido tradicional de algo que melhora… parece que só os descontos. A “reversão” dos cortes é uma mentira. A “reposição dos salários” um chavão sem qualquer correspondência com a realidade, que chegou mesmo a sustentar a “paz sindical” de 2016 e 2017. Portanto, antes de andarmos a dizer que os professores “progridem automaticamente”, definam-me o que entendem por “progressão” porque podemos estar a falar de coisas muito diferentes. Ou melhor… uns falam do que parece que lhes dizem que devem espalhar por aí, mesmo quando é gente informada, deputada, publicada e opinada, e os outros falam do que é realidade. Aqui não há abordagens holísticas ou truques estatísticos que consigam ultrapassar os factos.

Falácia 3 – “Pois, vocês só fazem isto com os Governos do PS, pois com a Direita e o Crato foram espezinhados e nada fizeram”.

A sério… isto é escrito com alguma frequência por alguns operacionais partidários nas redes sociais e em comentários nos sites de jornais, sendo que até há umas semanas era usado também como argumento por alguns sindicalistas quando muito pressionados por estarem a deixar o tempo passar sem agirem.

Vamos mais uma vez aos factos: o XIX Governo Constitucional de Passos Coelho tomou posse a 20 de Junho de 2011. A Fenprof e outros sindicatos marcaram greve às avaliações a partir de 7 de Junho de 2013, menos de dois anos depois. O actual Governo (XXI Constitucional) tomou posse a 26 de Novembro de 2015 e a o S.TO.P convocou greve equivalente a partir de dia 4 de Junho de 2018 e a Fenprof e outros sindicatos a partir de 18 de Junho de 2018, mais de dois anos e meio depois.

Repito-me: nunca deixem que a realidade substitua a vossa criatividade e imaginação para a ficção narrativa.

Por fim: a melhor forma de destruir uma discussão racional sobre seja o que for é começar a hiperbolizar as acusações e a adjectivar sem nexo aqueles que se querem combater. Sim, eu também gosto das minhas adjectivações, mas a maioria delas tem uma base factual.

Algo muito diferente são as acusações de “cobardia” (Observador, 11 de Junho de 2018) por parte de alguém que, como Alexandre Homem Cristo, escreve regularmente sobre a avaliação de professores, mas que eu nunca vi ser avaliado no seu trajecto de “investigação”. Outra coisa ainda é um político–comentador, afirmar em prime-time  que a reivindicação dos professores quererem que o seu tempo de serviço seja contabilizado é “imoral”.

A melhor forma de destruir qualquer tipo de diálogo, de tornar o ambiente absolutamente tóxico é enveredar por este tipo de linguagem despropositada, agressiva no pior dos sentidos, imperdoável na forma como se fazem análises de carácter a partir de posições particulares de enorme fragilidade. Sim, já percebemos que ninguém quer resolver verdadeiramente o problema dos professores, uns porque os detestam, outros porque os desprezam, outros ainda porque precisam do clima de conflito para justificarem a sua própria relevância.

[i] http://www.tvi24.iol.pt/confianca/portugal/professores-sao-a-profissao-em-que-portugueses-mais-confiam.

[ii] https://www.jornaldenegocios.pt/economia/detalhe/professores_sao_profissao_em_que_portugueses_mais_confiam.

[iii] http://www.tvi24.iol.pt/sociedade/tvi24/em-que-profissoes-confiam-os-portugueses.

[iv] https://hrportugal.pt/quais-as-profissoes-que-lhe-despertam-mais-confianca/.

[v] http://www.cmjornal.pt/sociedade/detalhe/portugueses-confiam-pouco-no-padre-e-juiz.

 

Setembro de 2018

O Ano da Desresponsabilização

Quando se inicia um novo ano lectivo, é prática comum a Situação insistir em que este será o melhor de todos, com as melhores condições de sempre, atendendo a estas ou aquelas circunstâncias, a maior preocupação com os alunos, o maior respeito pelas escolas e pelos docentes, pela sua responsabilidade e autonomia, enquanto a Oposição insiste em destacar todos os detalhes de maior ou menor importância que considera serem as renovadas falhas de um sistema de ensino que, quem está fora do poder, parece encarar sempre como estando em catástrofe permanente. Como em quase tudo, nenhum dos lados tem toda a razão, sendo que é inegável que se têm verificado melhorias, embora também seja difícil negar, sem forte acesso demagógico, que são muitas as reformas ou medidas que estão longe de terem um saldo positivo para o funcionamento da nossa rede pública de ensino.

O ano lectivo que agora arranca é marcado por uma situação de claro desequilíbrio de forças no debate político em torno da Educação. Tendo absorvido as franjas políticas mais contestatárias com assento parlamentar, a chamada “geringonça” beneficiou de um longo período (cerca de dois anos) de acalmia social à esquerda, com a improvável justificação de ser necessário proceder a uma “consolidação orçamental” e à demonstração de que à Esquerda é possível reduzir o défice.

Na área da Educação, em torno de algumas contrapartidas sem qualquer peso no Orçamento, a Esquerda e a generalidade do sindicalismo docente limitou-se a uma actividade “negocial” que deixou manterem-se situações que em tempos anteriores mereciam forte contestação (modelo unipessoal de gestão escolar, descentralização de competências para os municípios, congelamento da carreira docente), enquanto se dava aval com escassa crítica a medidas como o “Plano Nacional de Promoção do Sucesso Escolar”, o “Projecto de Autonomia e Flexibilidade Curricular” ou o “Novo Regime Jurídico da Educação Inclusiva”, sem ser feita uma verdadeira reflexão sobre a carga de trabalho acrescido que muitas dessas políticas implicam para o pessoal docente, sem outra contrapartida que não seja um muito tardio (9 anos, 4 meses e 2 dias depois) descongelamento da carreira, com os reflexos salariais de qualquer progressão a serem diluídos por dois anos. De certa forma, continuou-se a pedir aos professores que fizessem mais com menos, como outrora tanto se criticara ao ministro Nuno Crato.

Quanto à Oposição de Direita, como que desapareceu desta área da governação depois da polémica em torno da (não) renovação de alguns contratos de associação. Perdendo progressivamente capacidade de intervenção, sem causas com relevância para o funcionamento da Escola Pública, os partidos à direita do governo dispersaram-se em aparições desgarradas, desconexas, individuais, procurando capitalizar situações episódicas de falhanço da governação (como a alteração abusiva das regras do concurso de mobilidade interna em 2017)  e revelando uma quase total ausência de ideias alternativas para a Educação em Portugal, parecendo que, no essencial, a Oposição se sente confortável com o que está e nem sequer contraria o passado recente.

Perante isto, o actual governo desenvolveu uma investida política e legislativa, aproveitando medidas já antes em implementação (descentralização de competências) com outras que recuperam políticas interrompidas no passado e cedem a grupos de pressão interna ou nas fronteiras do PS (e com forte presença no ministério da Educação desde o final do século XX), como é o caso da gestão flexível do currículo ou da Educação que deixa de ser Especial para ser Inclusiva.

O nexo comum a todas estas medidas é o da crescente desresponsabilização do Estado Central em relação à implementação das políticas educativas, transferindo – em nome de uma pseudo-“autonomia” – a responsabilidade pelo “sucesso”, de uma forma ou outra. para todos os outros “actores” em presença.

Antes de mais para as escolas e professores quando se desenvolve uma retórica que enfatiza a “autonomia” que passam a ter para “gerir 25% do currículo”, sendo que depois se legisla essa autonomia com um espartilho de horas e minutos que dificilmente se pode considerar “flexível”. Mas afirma-se em público que escolas e professores ficam agora com as “ferramentas” para organizarem o ensino de forma a assegurar o sucesso das aprendizagens dos alunos. Oculta-se que tal “autonomia” se desenvolve num contexto em que os professores têm cada vez um papel menor nos processos de tomada de decisão das escolas que passaram a funcionar numa espécie de pirâmide hierárquica com uma lógica próxima do “socialismo democrático” em que as opiniões minoritárias são abafadas pela maioria formada a partir das “lideranças intermédias” dependentes da liderança centralizada. Sendo que essas lideranças unipessoais se encontram em processo de acelerado esvaziamento com a deslocação de quase todas as competências das escolas para as autoridades municipais. Quando se afirma que as escolas mantêm a “autonomia pedagógica” isso esconde que os próprios projectos para promover o sucesso que impliquem algum encargo financeiro terão de passar pelo crivo do poder autárquico ou submeter-se a planos municipais ou intermunicipais de “combate ao insucesso escolar”. Quando se declara que esta é uma solução que reforça a “proximidade” da implementação das políticas, esconde-se que essa proximidade seria maior se essas competências se centralizassem nas próprias escolas e não em gabinetes ou grupos de trabalho nos quais em vez dos professores que trabalham no terreno estão “consultores” contratados que não é raro terem estado a assessorar o poder central na definição das políticas sobre as quais se apresentam depois como “especialistas” na concretização local.

Quanto aos municípios, a ânsia por alargarem a sua área de intervenção e o seu poder sobre uma crescente burocracia local – mais empregos para distribuir, mais “envelopes financeiros” para gerir – pode vir a ser um presente envenenado para mutos dos envolvidos, porque algumas experiências recentes de descentralização em outros países culminaram no aumento de fenómenos de desigualdade e no crescimento de assimetrias, devido à quebra de mecanismos de regulação da solidariedade nacional. Com o atractivo imediato de irem gerir verbas europeias para “projectos” na área da Educação e Formação, muitos municípios poderão ficar a médio prazo com encargos elevados e o ónus do falhanço das políticas e verem aumentar a distância para com as zonas mais ricas e com mais recursos próprios, não dependentes das transferências do Poder Central e humores políticos dos decisores.

Todas estas políticas de “descentralização” estão erradas? Em tese, claro que não. Tudo depende da forma como se concretizam no terreno e quais as margens de liberdade real que são permitidas. Só que o que conhecemos nos últimos anos é o reforço dos mecanismos digitais de controlo (burocrático, financeiro) à distância dos mais ínfimos detalhes da vida das escolas. E a “ameaça”, não especialmente velada, de que todos os procedimentos serão minuciosamente verificados por equipas da Inspecção-Geral da Educação, não é de molde a acreditar que a “descentralização” seja mais do que uma transferência da localização dos serviços da administração educativa corrente.

Não esqueçamos uma última área de transferência das responsabilidades do Estado Central, neste caso para as “famílias” e que passa pela política dos “manuais gratuitos”. Com a cobertura de princípios que parecem inatacáveis por quem não queira ser classificado como troglodita, transfere-se subtilmente para as “famílias” um último nível de responsabilidade pelo “sucesso” dos alunos, como se a generalização da gratuidade dos manuais chegasse para combater as enormes desigualdades existentes na sociedade, fora dos portões das escolas, e que condicionam de forma importante o desempenho dos alunos. Incapaz ou desinteressado em criar condições, por exemplo através da regulação dos horários de trabalho, para que o apoio familiar aos alunos seja uma realidade, o poder político opta por oferecer os manuais escolares como se essa fosse a ferramenta essencial para criar uma “igualdade de oportunidades”.

O ano lectivo de 2018-19, a caminho das eleições legislativas de 2019, apresenta-se como o culminar de um conjunto de políticas de desresponsabilização que articula uma retórica quase hábil com uma inegável demagogia, num contexto em não existe Oposição e em que quaisquer críticas ou são tratadas com indiferença ou como um assustador “regresso ao passado”. Como se o futuro fosse radioso e não apenas uma construção estatística do “sucesso”.

 

Outubro de 2018

Educação Hiper-Realista

As escolas em 2018 são muito diferentes das escolas de há 30 ou 40 anos, como aquelas em que eu próprio fui aluno. Pelo menos, uma maioria delas. E são diferentes para melhor em termos de condições e equipamentos. Existem computadores, projectores, banda larga, bibliotecas melhor equipadas, mesmo em escolas não intervencionadas de forma sumptuosa pela Parque Escolar nos anos de maior delírio despesista. Mas ainda se está muito longe de ter uma rede escolar com uma qualidade uniforme. Ainda existe uma rede escolar a várias velocidades e não é raro que quem vive no mundo real das escolas portuguesas, e não apenas nos nichos privilegiados em que a climatização custou mais do que um pavilhão, ache perfeitamente absurdas muitas das considerações feitas por quem, de fora, não se cansa de fazer exigências despropositadas às escolas públicas.

Há quem considere que os professores quando se queixam das condições em que trabalham ou estão a exagerar ou a dramatizar ou então é porque se concentram apenas  no que os rodeia, no seu micro-cosmos, não conseguindo ir além das fronteiras do seu território. Não é bem assim. A verdade é que, apesar de muito se falar em “escolas/salas de aula do século XXI”, boa parte do quotidiano dos alunos e professores portugueses decorre em condições que estão longe de um anunciado presente radioso. E não se trata apenas das condições físicas, dos pavilhões por construir ou remodelar para as práticas desportivas, das velhas cadeiras e mesas que pouco diferem das de outras gerações, mesmo nos grafitos, das janelas e estores por arranjar semanas a fio, por não haver verba quando se estragam, do calor no Verão alongado ou do frio no Inverno quando chega.

Trata-se muito em especial dos procedimentos que se perpetuam numa lógica que alia o voluntarismo legislativo com a obsessão do controle administrativo e burocrático, da forma como o legislador define até ao detalhe muitos aspectos da vida escolar, mas parece desconhecer as condições concretas em que a implementação dos normativos deve acontecer. Trata-se de muitos governantes conhecerem as escolas apenas em modelo de visita vip em que toda a gente procura aparecer bem na fotografia com fato domingueiro, sorriso pronto e misérias varridas para baixo da alcatifa.

As consequências do desfasamento entre o conhecimento teórico do sistema educativo – por muitas visitas e conversas em família que se façam em auditórios pelo país – e a sua vivência diária podem tornar-se dramáticas para a qualidade do ensino, porque muitas opções são por “priorizar” (um dos termos em voga) um pretenso rigor financeiro com claro detrimento do “interesse dos alunos” tão enunciado na retórica política ou em preâmbulos de diplomas legais.

Um dos casos recentes de maior gravidade relaciona-se com as implicações do chamado “regime jurídico da inclusão escolar” que, apesar de debatido em alguns círculos de especialistas e formadores, chegou às escolas depois de terminado o período em que se definem em Conselho de Turmas as medidas de apoio, especial, especializado ou específico (sempre achei bizantina a forma como se usam estes termos como se fossem requintes terminológicos) para os alunos que tinham até 6 de Julho de 2018 (data da publicação do decreto-lei 54/2018) “necessidades educativas especiais”, mas a partir desse dia deixaram de as ter para passarem a ter uma outra coisa a definir por equipas multidisciplinares constituídas só depois de arrancar o ano lectivo seguinte. Ou seja, dezenas de milhar de alunos ficaram, a ser aplicada a letra da lei, sem quaisquer medidas antes de ser feita a sua “reavaliação” e elaborados os novos “relatórios técnico-pedagógicos” (RTP) que substituem os anteriores “programas específicos individuais” (PEI), Claro que escolas e professores, em defesa dos seus alunos, acabam quase sempre por “desenrascar” as coisas e por aplicar as medidas que acham necessárias no curto prazo, mas isso – que fique claro – é feito à margem de uma lei publicada num calendário sem sentido. Ler responsáveis a afirmar que até ao final do primeiro período as reavaliações mais urgentes estarão feitas e que até final do ano lectivo tudo estará resolvido é inaceitável e revela uma enorme irresponsabilidade e desrespeito pelos alunos mais vulneráveis e suas famílias.

Aliás, se não fossem alguns encarregados de educação denunciarem algumas situações dramáticas à comunicação social tudo pareceria estar a correr sobre rodas. Mas em peças recentes do Público e do Expresso conheceram-se as incongruências de uma lei que deveria ter sido discutida e publicada, na pior das hipóteses, até ao início do 3º período do ano anterior ao da sua implementação. Há alunos com multideficiência ou com transtornos no espectro do autismo a ser encaminhados para aulas regulares sem qualquer tipo de “rede”. Não admira que uma mãe me tenha enviado o testemunho que divulgou numa rede social no qual afirma que “estas situações politiqueiras, quase arrasam com a força das famílias… conseguem contornar as coisas, melhor que malabaristas de circo e depois a as famílias ficam com uma sensação de impunidade daqueles que instigam aos silêncios por acharem que não vale de nada fazer denúncias.” Felizmente, continua dizendo que ainda acredita e que vai “lutar até onde seja preciso”. Porque não forem os encarregados de educação a tomar a liderança nestas denúncias, nada será feito, porque aos professores ninguém ao nível do poder político dá atenção, mesmo quando revelam casos de alunos como aquele “com deficiências físicas, psíquicas e transtornos de comportamento, dificuldades de aprendizagem e problemas afetivos” que “foi ‘integrado’ numa turma de 10º ano, que até o acolheu bem, mas com quem ele não tem grandes afinidades” pelo que “anda rua acima, rua abaixo para vir ‘assistir’ às aulas (acompanhado por um professor de Educação Inclusiva) e está a ter Inglês (que nunca teve em todo o percurso escolar)…ou Filosofia (que nem sonha o que é).”

Mas as coisas podem sempre piorar pois em outro testemunho leio que “numa turma de uma colega, uma mãe agride a auxiliar e entra pela sala ameaça, insulta, etc… a colega aflita vai à direção [e] dizem-lhe para estar caladinha, dizendo, já conhece o bairro? Quer ter problemas? Não apresente queixa! Aguente o miúdo na sala!”

Sim… estamos num domínio ultrapassa o neo-realismo a caminho de um híper-realismo que demonstra como o nosso sistema público de ensino consegue ultrapassar situações muito complicadas e impensáveis para quem critica as escolas públicas em tertúlias de café ou em prime-time televisivo.

Tudo isto enquanto se fala em competências para o século XXI e da necessidade dos professores se adaptarem a um novo século iniciado há quase duas décadas. Décadas marcadas por um conjunto de medidas que proletarizaram materialmente e desvalorizaram simbolicamente a docência, amputando as perspectivas de progressão de quem está na carreira ou de acesso para quem ainda não está. Ao ponto, não apenas dos cursos de acesso à docência estarem quase desertos mas muito em especial de, depois de anos em que se falou de dezenas de professores contratados sem colocação e no desemprego, agora ser quase impossível encontrar professores para substituírem aqueles que ficam de baixa médica ainda no início do ano lectivo. Ainda estamos no primeiro mês de aulas e já há reservas de recrutamento em que alguns grupos disciplinares não apresentam docentes disponíveis para ocupar as vagas existentes. Algo impensável há apenas uma década, mas que se tornou possível após uma investida política concertada contra a classe docente que degradou as condições do seu exercício quotidiano e fez desistir muita gente de nela entrar.

O corpo docente está envelhecido? Claro que está e o mais grave é que não existem condições para a sua renovação. Porque não são criadas condições dignas para aposentações antecipadas, porque existem Juntas Médicas que mandam regressar às escolas pessoas com situações de saúde (incluindo problemas oncológicos não resolvidos ou casos de depressão profunda) incompatíveis com um horário completo perante turmas com 25 a 30 crianças ou jovens, porque quem vem substituir quem não consegue mesmo continuar já tem quase tanta idade quanto os substituídos.

É este um texto de desânimo, de desilusão, de desespero? Talvez. É certamente uma declaração de indignação e fúria contra aqueles que Carlos Fiolhais, com especial acerto. chama no seu último livro (A Ciência e os seus Inimigos, 2017, p. 220) vendedores de “banha da cobra” na Educação.

 

Novembro de 2018

A Saúde Docente

Um recente estudo pedido pela Fenprof a uma equipa de investigadores da Universidade Nova de Lisboa sobre a situação de esgotamento da classe docente provocou diversos títulos na comunicação social em que se destacou que mais de 20.000 docentes acham que andam a tomar excessiva medicação e cerca de 9.000 que se encontram preocupados com o seu consumo de álcool e “drogas” (notícias de 19 de Outubro de 2018). Colocada desta forma a questão, é natural que tenha surgido algum alarme acerca do estado em que muitos professores e educadores desenvolvem a sua actividade profissional e as suas aulas. De acordo com os dados do Inquérito Nacional sobre as Condições de Vida e Trabalho na Educação em Portugal passados para a comunicação social mais de 76% dos professores portugueses “apresentam sinais de esgotamento emocional”, sendo que destes 20,6% atingem níveis “preocupantes”, 15,6% valores “críticos” de esgotamento e 11,6% “estão em esgotamento emocional pronunciado” (Diário de Notícias, 19 de Outubro de 2018).

A situação é efectivamente preocupante, sendo confirmável no quotidiano das escolas o que a coordenadora do estudo afirmou ao Público (edição de 20 de Outubro de 2018) que “os professores são vítimas de uma organização do trabalho que os adoece”, sendo que isso está claramente relacionado com um envelhecimento do corpo docente a que deixou de corresponder, há cerca de uma década quando da revisão do Estatuto da Carreira Docente (ECD), uma redução do tempo de trabalho de trabalho na escola. Não apenas do tempo lectivo, mas do tempo de permanência na escola em outras funções, diversas delas de natureza burocrática e com escasso sentido para o seu trabalho pedagógico com os alunos em sala de aula. Até à presente versão do ECD, um educador ou professor com 50 anos de idade e 20 de serviço tinha de leccionar 16 horas de aulas (14 a partir dos 55 anos); actualmente, de acordo com o muito discutido artigo 79º do referido ECD, aos 50 anos de idade esse número de aulas é de 20 (22 se forem de 45 minutos) e aos 55 é de 18 (ou 20), acrescendo a isso diversas outras obrigações de permanência no local de trabalho (“trabalho a nível de escola”) até um total que é, em regra de 25-26 horas, não estando nelas contemplado o tempo para “trabalho individual”, ou seja para a elaboração de materiais pedagógicos ou de avaliação ou para a correcção e classificação de trabalhos e fichas de avaliação dos alunos.

As sucessivas exigências feitas aos professores em diversos planos, desde a sua adaptação a uma rápida evolução tecnológica ao acréscimo de horas de trabalho efectivo com alunos, não esquecendo uma sucessão contínua de obrigações de tipo burocrático, associadas a uma forte campanha política dirigida a toda a classe apresentando-a à opinião pública como responsável por uma série de situações negativas (desde o insucesso dos alunos à erosão das finanças públicas, não esquecendo ainda a crítica aos “professores do século XX” a ensinar “alunos do século XXI”) produziram naturais danos do equilíbrio psicológico e físico de muitos profissionais de qualidade que se sentiram desvalorizados, isolados e criticados a cada novo ano lectivo ou a cada novo episódio de conflito laboral com a tutela.

A degradação das condições materiais (com uma forte redução salarial resultante e sobretaxas e outras exigências fiscais, congelamento da progressão na carreira) para um exercício da docência cada vez mais acrescido de um novo conjunto de funções, num horário laboral aumentado em relação a gerações anteriores e com condições crescentemente precarizadas mesmo para os docentes dos “quadros”, bem como as constantes modificações nas regras de funcionamento das escolas, da avaliação dos alunos, da organização curricular, produziu uma combinação fatal para a saúde de muitos docentes.

A ausência de condições para uma aposentação antecipada, com fortes penalizações, a menos que seja demonstrada uma incapacidade total para o exercício da docência, agravou casos de baixas médicas sucessivas sempre que muitas pessoas foram verificando, com consciência profissional, que essa seria a única solução para preservarem alguma da sua sanidade e não prestarem um serviço de menor qualidade aos seus alunos.

Mas, por razões de ordem financeira e de alegada “racionalidade” da gestão dos recursos humanos (leia-se… “poupança de tostões” quando comparada com as verbas cativadas para minorar os buracos financeiros do sistema bancário), passaram a existir regras cada vez mais restritivas e arbitrárias quanto ao funcionamento das “Juntas Médicas” que decidem se uma determinada pessoa está capaz (ou não) de voltar ao seu local de trabalho. Embora existam naturais excepções, sobrevivendo algum humanismo residual aqui e ali, a verdade é que os procedimentos foram agravando os seus traços de indiferença e desumanidade para com quem, em toda a sua fragilidade, fica com o seu destino à mercê de um grupo de três pessoas ou mesmo só de uma. Um “destino” que não é apenas profissional, mas também pessoal, porque envolve a sua saúde, não raras vezes em situações-limite. Há docentes a ser enviad@s de volta para as escolas quando ainda se encontram em tratamento oncológico, com graves depressões ou mesmo sintomas de stress pós-traumático na sequência de episódios mais dramáticos de indisciplina ou até violência.

Ao longo dos tempos tenho recebido descrições que me revoltam pela forma como as pessoas (não interessa se são professores ou outros profissionais) são tratadas de um modo indigno e desumano, sem sequer lhes ser dada a palavra ou, em alternativa, serem interrogadas em busca de incongruências incriminatórias.

Num dos casos a que me foi dado acesso ao processo pela própria pessoa, vítima de dois acidentes de viação com sequelas físicas, assim como com uma situação de depressão nervosa, a requerente de aposentação antecipada (58 anos) por incapacidade apresentou seis relatórios especializados (cardiologia, fisiatria, neurocirurgia, ortopedia, psicologia clínica e psiquiatria), todos a indicar no mesmo sentido. No relatório do psiquiatra pode ler-se que o “quadro clínico [da requerente] é compatível com o diagnóstico de depressão reativa ansiosa e com sintomas clínicos compatíveis com Síndrome de Burnout de grande exaustão, alterações de ritmo sono/vigília e com repercussão psicossomática (…). Assim e atendendo ao estado psicoevolutivo, características da sua personalidade, fatores psicoreativos desencandeantes, encontra-se muito limitada para o exercício normal das suas funções laborais”. No relatório do psicólogo clínico lê-se que “por esta análise, conclui-se também que a paciente supra-mencionada, sofre de síndrome de burnout, pois, além de problemas psicológicos graves e de exaustão que a sua profissão lhe provocou, apresentou também episódios de hipertensão arterial grave (…). Assim, (…) não está em condições do ponto de vista mental para desempenhar quaisquer funções”. E no relatório do neurocirurgião que “dado que não se vislumbra qualquer possibilidade de reconversão profissional e que os recursos terapêuticos, e a reabilitação funcional, estão esgotados sem melhoria clínica, considero que a doente apresenta sintomas e sinais neurológicos incompatíveis com o cabal desempenho de qualquer actividade profissional, pelo que deve ser declarada inválida para o trabalho, com uma incapacidade parcial permanente superior a 75%”,

Apesar deste quadro, a decisão final da Junta Médica da Caixa Geral de Aposentações, assinada por uma médica de Clínica Geral, foi a de que a pessoa em causa estava capaz de voltar ao trabalho e às funções docentes.

Podem dizer-me… essa é uma situação particular, isolada, certamente excepcional, dificilmente repetível. Não é verdade. Infelizmente, repete-se, não apenas em relação a pedidos de aposentação antecipada, mas de igual modo a renovações de baixas médicas, sendo que a atitude mais corrente parece ser a de encarar a presença de professores a uma Junta Médica como um procedimento administrativo destinado a despachar o mais depressa possível. Tem-se apresentado as baixas médicas docentes como se de fraudes se tratassem e não como o último recurso de quem tem a noção de não estar em condições para se apresentar todos os dias, hora após hora, perante dezenas de alunos, na esperança de com eles desenvolver um trabalho consequente.

Quando tanto se fala em “humanismo” e numa “Educação para o século XXI” seria muito importante que isso não fosse acompanhado por práticas laborais que parecem arrancadas aos velhos tempos proto-industriais do “modelo de Manchester”.

 

Dezembro de 2018

O Estado da Educação

De acordo com a sua lei orgânica (Decreto-Lei n.º 21/2015 de 3 de fevereiro) é missão do Conselho Nacional de Educação “proporcionar a participação das várias forças científicas, sociais, culturais e económicas, na procura de consensos alargados relativamente à política educativa” (artigo 2º), sendo-lhe atribuídas várias competências a exercer de forma autónoma ou por solicitação do Parlamento ou Governo. Entre elas estão “apreciar e emitir pareceres e recomendações sobre questões relativas à concretização das políticas nacionais dirigidas ao sistema educativo e científico e tecnológico, objetivos e medidas educativas, nomeadamente as relativas à definição, coordenação, promoção, execução e avaliação dessas políticas” e “promover a reflexão e o debate com vista à formulação de propostas, no âmbito da sua missão e dos objetivos do sistema educativo” (artigo 3º, alíneas b e c). Entre essas atribuições não está, infelizmente, uma clara e explícita atribuição de informação da opinião pública acerca das questões educativas ou de avaliação independente das políticas implementadas.

Felizmente, desde 2011, uma dessas funções tem vindo a ser desempenhada com a divulgação da publicação Estado da Educação que, anualmente, passa em revista os principais indicadores do nosso sistema educativo, incorporando alguns textos de análise sectorial e uma introdução que tem combinado o aspecto institucional e formal com recomendações de tipo mais político do que técnico.

O volume deste ano não é excepção. Assim como não é excepção uma espécie de “selecção de conteúdos”, na falta de um “sumário executivo” que surgem em maior destaque na imprensa e funcionam como ponto fulcral da discussão pública. Este ano notou-se o regresso ao debate sobre a singularidade atribuída ao nosso segundo ciclo do Ensino Básico que, numa lógica de escolaridade obrigatória de 12 anos, terá cada vez um menor sentido, devendo ser revista a organização dos ciclos de escolaridade.

Na introdução ao Estado da Educação 2017, o principal argumento para a eliminação do 2º ciclo aponta para “as dificuldades assinaladas nos anos de transição”, extrapolando-se que estarão em causa os 5º e 7º anos de escolaridade. Na sua entrevista ao Observador (23 de Novembro de 2018), a presidente do CNE hesita na sugestão de alternativas e acaba por admitir que um texto introdutório num relatório oficial não passa de uma opinião pessoal. Permito-me discordar dessa forma de tratar as coisas. Estes são assuntos que devem ser abordados quanto temos uma ideia clara sobre o que fazer e porquê. E esse “porquê” deve sustentar-se numa análise cuidadosa das premissas.

Se concordo com a proposta de reduzir os ciclos de escolaridade, nem sempre estou de acordo com as propostas existentes e muito menos com alguns dos fundamentos usados para justificar tanto a reforma como as soluções preconizadas. Porque quando os fundamentos estão incorrectos, dificilmente os argumentos podem apresentar-se como válidos e muito menos as conclusões. Sigo aqui Aires Almeida e Desidério Murcho nas suas Janelas para a Filosofia (Gradiva, 2014, p. 22) quando escrevem que “um argumento é um conjunto de ideias em que se vida justificar a conclusão com base na premissa ou premissas. Como é óbvio, só quando o argumento é bom é que a premissa ou premissas justificam a conclusão”.

Uma reforma dos ciclos de escolaridade deve ser feita com uma preocupação de coerência endógena e não por imposição externa, seja ela de calendários eleitorais ou de obsessões de uma eficácia financeira que não é aplicada em áreas da coisa pública bem menos fundamentais para o desenvolvimento do país. Deve ser definida por uma lógica interna, de verdadeira articulação da progressão das áreas disciplinares e respectivos conteúdos e aprendizagens ou competências a desenvolver e não por remendos sucessivos, quase anuais, fruto de jogos de poder transitórios entre cliques académicas e/ou ideológicas.

Defendo um ciclo inicial de 5 anos, incluindo o ano pré-escolar, um segundo também de 5 anos (para evitar as redundâncias de conteúdos dos actuais 2º e 3º ciclos que não foram eliminadas nem por “metas”, nem por “aprendizagens essenciais”) e um terceiro com 3 anos, com uma progressiva especialização curricular, porque julgo que é uma solução coerente com a informação disponível e não porque me “parece” que os alunos têm uns traumas quando transitam de ciclo ou porque certo modelo é financeiramente mais conveniente.

Acho que qualquer reforma do sistema educativo deve ser feita com o que designarei como “carinho pela informação” e não pelo seu abuso, atropelo, amputação ou distorção, como se tem assistido de forma continuada e com raras excepções nas últimas décadas. E o CNE deve ter um papel decisivo na “regulação” desses abusos, nunca no apoio a qualquer facção em confronto.

E que dados temos em presença? Concentrando-me nas páginas 89-91 do Estado da Educação 2017, verifico que o insucesso no 5º ano desceu de 2013-14 e 2016-17 de 11,3% para 6,1%. E que o insucesso no final do 2º ciclo desceu de 14,8% para 5,6% desde 2012-13. Em termos relativos, é a evolução mais favorável no contexto do Ensino Básico. Em contrapartida, o 7º ano continua a destacar-se pela negativa, apesar da evolução também ser sensível (de 16.9% para 11,4% desde 2013-14). Em todo o Ensino Básico é o ano que tem, de longe, a maior taxa de insucesso, o que contraria a generalidade das “premissas” usadas para justificar a “unificação do 2º ciclo com o 1º. O “choque” parece ser maior entre o 6º e º 7º ano do que entre o 4º e 5º, apesar de não implicar a passagem da mono para a pluridocência ou sequer a mudança de estabelecimento de ensino.

Haveria que investigar tal anomalia, até porque a legislação recomenda a não retenção em anos intermédios. Mas, por qualquer razão estranha, esse tipo de análise não se faz e insiste-se, com base em premissas erradas e pré-conceitos sem base empírica, em apontar a mudança do 1º para o 2º ciclo como sendo a mais crítica. O que não é verdade, nem em termos estatísticos, nem em observação directa. Seria importante que o CNE investisse em estudos que partissem sem uma agenda pré-definida para a compreensão deste tipo de fenómenos. Só assim será possível fazer “reformas” com fundamento e não apenas na base das crenças pessoais ou de grupo, como se tem passado de forma repetida.

Uma nota final acerca do “tom” adoptado na introdução assinada pela actual presidente do CNE. Antes de mais, reconheço a coerência das suas posições ao longo do tempo e algumas apreciações que faz no seu texto são consistentes com o pensamento que expõe há décadas. Mas isso não impede que eu discorde da forma como parece desenvolver mais a defesa dessas mesmas posições do que uma análise mais objectiva dos dados disponíveis. A forma como associa a retenção dos alunos a um fenómeno de injustiça social ou a uma concepção “antiquada” de escola é redutora e não se fundamenta numa análise clara dos factores que conduzem a muitas dessas retenções, como que invertendo o “ónus da prova”. A responsabilidade é atribuída apenas às “escolas”, como se os alunos fossem passivos e não tivessem um papel activo no seu próprio sucesso. Falta um estudo que preencha o abismo enorme que existe entre a análise estatística e a que envereda pela mera análise de conteúdos das opiniões de alguns dos envolvidos no processo. A representação estatística do insucesso, associada à crítica de tipo moralista, esquece que em muitos casos os alunos e respectivas famílias nada fazem, por politicamente incorrecto ou incómodo que seja afirmá-lo, pelo seu próprio sucesso, não colaborando com tudo o que as “escolas” fazem – e é muito – para superar as suas dificuldades. As “escolas” não podem colocar um pequeno-almoço ou jantar na mesa a horas a todos os alunos ou transmitir-lhes a importância de um capital educativo que não seja apenas uma ilusão certificadora. Confesso-me cansado de teorias que afirmam que o “insucesso” é sempre culpa de uns e nunca de outros. Percebo a demanda utópica, a crença na bondade natural dos indivíduos, o “sonho” de querer provar uma tese, mas devo afirmar com clareza que parte dessas teses padece de equívocos graves, por bem-intencionadas que sejam. E acabam por ser, de uma forma perversa, injustas. Porque ao indiferenciarem a forma de chegar ao sucesso, ao quase culpabilizarem os alunos que querem mesmo desenvolver aprendizagens e serem melhores, estão a padronizar o sistema pelo maior denominador comum. Quando o sucesso é o que todos conseguem, qual o estímulo para se ir mais além?