Este Mês, Pelo JL/Educação

Evidentemente?

Paulo Guinote

O termo “evidência” tem diversos sentidos e formas de uso, assim como apropriações indevidas ou distorções do seu sentido. Consultando um dos dicionários online mais populares (https://dicionario.priberam.org/evid%C3%AAncia.) temos que por evidência se pode entender a “qualidade de evidente; certeza manifesta”, mas também “o que serve para demonstrar ou esclarecer um facto, uma causa ou uma verdade (ex.: evidência científica; evidências estatísticas)”, dando como sinónimo de “prova”.

Em regra, no caso da Educação, embora não seja exclusivo nacional, usa-se muito o termo no primeiro sentido, mas muito poucas vezes com a sustentação mais sólida do segundo, que remete mais para a terminologia anglo-saxónica de “evidence”, enquanto base empírica para acreditarmos em algo, como “os factos, sinais ou objectos que fazem acreditar que algo é verdade” ou o “conjunto disponível de fatos ou informações que indicam se uma crença ou proposição é verdadeira ou válida”, ou ainda “qualquer coisa que se vê, experimenta, lê ou ouve que faz com que se acredite que algo é verdadeiro ou que realmente aconteceu” (definições colhidas nos dicionários online de Oxford, Cambridge e Collins).

Apesar de, entre nós, a Educação estar em permanente processo de reforma ou remendo, é muito raro que isso se faça com base em “evidências” no sentido de provas ou demonstrações empíricas de que as soluções propostas são válidas ou se baseiam em factos ou fundamentos verdadeiros. O mais comum é que tudo se baseie numa variante de profissões de fé, de base ideológica, sem grande preocupação em demonstrar a sua validade para além da declaração “é evidente que”.

Um exemplo desta forma de querer forçar a tomada de decisões é o da recorrente tentativa de alargar o 1.º ciclo de quatro para seis anos, alegando que isso é do interesse dos alunos, sem especial cuidado em demonstrar no que se baseia esse interesse. O argumento mais comum é o de alegar um pretenso trauma na transição do 1.º para o 2.º ciclo que nenhuma “evidência estatística” relativa ao sucesso escolar comprova, pois o momento de maior insucesso é o 7.º ano e a transição do 2.º para o 3.º ciclo.

Uma outra justificação, completamente do domínio da mera crença é a mais recente alegação de que é assim que as coisas são no resto da Europa. Na página 105 do Programa do XXIV Governo Constitucional, apresenta-se no ponto 7.1.2 o desejo de “Reestruturar os ciclos do ensino básico, integrando os 1º e 2º ciclos, de forma a alinhar com a tendência internacional e garantir uma maior continuidade nas abordagens e um desenvolvimento integral dos alunos”, sem que se apresente qualquer fundamentação objectiva.

Pelo contrário, há poucas semanas, o investigador João Marôco fez uma análise comparativa dos resultados dos alunos nos PISA e a duração do primeiro ciclo de escolaridade (para uma intervenção no podcast Educar tem Ciência da TSF) e concluiu que Evidências de possíveis vantagens de uma educação primária com 4 anos em monodocência + 2 anos em pluridocência ou 6 anos em monodocência (coadjuvada ou não), não há”. E acrescenta pouco depois que “há vantagens e desvantagens essencialmente associadas à vinculação professor-aluno e regime de docência. Mas os benefícios, quantificáveis em aprendizagens, são esparsos.”

No entanto, o principal responsável pelo Conselho Nacional de Educação, órgão ao qual “compete emitir opiniões, pareceres e recomendações sobre todas as questões relativas à educação”, declarou em peça da CNN Portugal de 26 de Abril de 2024 que “todos os países europeus” têm um primeiro ciclo de ensino de seis anos de escolaridade [e que] os dados da investigação e os dados das políticas públicas de outros países, indicam-nos que alguma coisa terá de ser feita”. O problema é que escasseiam as “evidências” de que existam as alegadas vantagens, até porque os avanços conseguidos pelos alunos portugueses nos testes PISA até há pouco tempo foram conseguidos com a actual estrutura de ciclos de escolaridade.

Não se deve mudar nada e está tudo bem? Não, muito pelo contrário, pois os resultados começaram a estagnar e a decair, mas a origem das perdas talvez deva ser procurada em medidas e políticas desenvolvidas nos últimos 10-15 anos sem sustentação em “evidências” estatísticas ou científicas, mas mais em evidências do domínio dos preconceitos ideológicos e dos apriorismos indemonstráveis a roçar o dogma.

A uma escala local, este modo de tratar a Educação como matéria sobre a qual bastam umas ideias pré-feitas e sustentadas em crenças ultrapassadas ou leituras seleccionadas a dedo há muitos anos, surgiu-me num recente debate sobre a relação dos alunos com a Escola e com as aprendizagens nela desenvolvidas. Enquanto eu procurava sustentar a minha intervenção nos dados colhidos nos inquéritos feitos por ocasião dos PISA 2022 e numa mini-sondagem feita aos meus alunos, fui brindado com uma intervenção em que se teorizou sobre o desinteresse dos alunos pela escola e a desnecessidade da leitura para aprender, criticando-se o ensino com base, por exemplo, um artigo lido “há uns dez anos” [sic] sobre a proporção do tempo gasto em “aulas expositivas”, tudo reforçado pela afirmação  ainda mais acutilante da inutilidade de ler livros para aprender seja o que for.

Nestes casos, qualquer tentativa de discussão revela-se infrutífera, porque quando se tentam apresentar evidências actualizadas sobre a forma como os alunos encaram a escola (82% declara um sentimento de pertença à sua escola, nas Country Notes sobre Portugal do relatório PISA 2022, assim como os alunos portugueses são dos que mais se sentem apoiados pelos professores), esbarra-se com uma dogmática “certeza manifesta” do que surge como “evidente” por si mesmo, não carecendo de qualquer demonstração alargada que não a mera opinião e experiência pessoal.

Se tivermos em conta que esta forma de apresentar as coisas não é fenómeno isolado, que se repete em muitas circunstâncias, é partilhada por alegados especialistas e, tão ou mais grave, por quem tem a capacidade de tomar decisões, já se percebe porque os inegáveis progressos da nossa Educação até ao início do século XXI começaram a desacelerar ou mesmo a regredir.

O dogmatismo, a cristalização em torno de clichés com meio século ou mais, a incapacidade para perceber que a flexibilidade não pode ser rígida e que muito do que se pensava ser o século XXI não ocorreu exactamente como previsto, conduzem a opções erradas, por insistirem em evidências do domínio de uma qualquer Fé. A possibilidade de estarmos errados nas nossas convicções tem de ser sempre uma opção em aberto, se nos afirmamos como indivíduos tolerantes e dotados de espírito (auto) crítico. E é essencial que nos actualizemos, com base na informação que vai ficando disponível.

Nas últimas décadas, progrediu imenso o conhecimento sobre o funcionamento do cérebro e sobre o modo como se processa a aprendizagem, desenvolvendo-se áreas que cruzam as Neurociências com a Educação, abrindo-se campos como o das Ciências da Cognição que tornam obsoletas certas teorizações assentes apenas na Sociologia ou Psicologia da Educação, tal como estas áreas se desenvolveram na segunda metade do século XX.

Alunos que eram encarados como desfavorecidos por serem provenientes de meios culturais e socioeconómicos mais carentes, pelo que se dava prioridade a políticas endógenas ao sistema educativo para minorar as suas desigualdades, talvez devam ser tratados de outra forma, nomeadamente ao nível dos cuidados com a nutrição, devido aos seus efeitos sobre o funcionamento do cérebro e capacidade de concentração. Mais do que teorizar sobre o modo de organizar a sala de aula, devemos preocuparmo-nos com a forma como as crianças e jovens se alimentam, não apenas na escola.

E estas nem são evidências muito recentes. As carências proteicas estão referenciadas há muito como um factor decisivo para o desenvolvimento da inteligência, cognição e comportamento dos alunos, com efeitos a longo prazo. Existe abundante investigação sobre a relação entre nutrição, estado de espírito e aprendizagem. Mas tudo isso é desprezado em nome das “aulas invertidas” ou da “gamificação”, em nome de uma alegada modernização pedagógica e tecnológica.

Há alguns anos, em algumas zonas dos Estados Unidos, surgiu o programa “Pequeno-Almoço antes do Toque”, que passou a “Depois do Toque”, com comida a ser levada às próprias salas, em vez de os alunos terem de se deslocar ao bar. O impacto no comportamento e desempenho foi evidente.

Evidentemente.

8 opiniões sobre “Este Mês, Pelo JL/Educação

  1. Ler faz mal aos olhos e à mente. Toda a gente sabe isso…

    Quem terá sido a sumidade que argumentou a inutilidade da leitura.

    Nestas coisas, nunca ouço falar em trabalho e estudo dos alunos. Agora, percebi porquê… Ou não.

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  2. Muitas das coisas consideradas obsoletas pelas ciências da educação, afinal são mais eficazes do que se pensava. Que digam os novos cognitivistas baseados nas neurociências e psicologia,. Os estudos de campo mostram a preponderância da memória no campo da aprendizagem.

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  3. A Teoria da Carga Cognitiva de John Sweller não condena o ensino por projetos, mas sugere cautela. Projetos podem sobrecarregar a memória de trabalho com informações irrelevantes, dificultando a aprendizagem.
    Sweller defende que a instrução direta, com foco em objetivos claros e exemplos guiados, pode ser mais eficaz em estágios iniciais, especialmente com conteúdos complexos. À medida que o aluno domina o básico, projetos podem ser incorporados para aplicar o conhecimento e desenvolver autonomia.
    A chave é equilibrar a carga cognitiva. Projetos bem estruturados, com objetivos claros, e feedback constante, podem ser ferramentas poderosas. No entanto, o ensino orientado pelo professor, com foco na redução da carga cognitiva estranha, pode ser crucial para otimizar a aprendizagem, especialmente em fases iniciais.

    Afinal os zecos não meros intermediários da aprendizagem como nos queriam fazer crer.

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  4. Também Daisy Christodoulou influente educadora britânica, autora e diretora de educação da No More Marking. Na sua pesquisa e dissertaçoes defende um ensino estruturado, com ênfase no conhecimento, prática e feedback. Christodoulou questiona mitos comuns na educação, como a aprendizagem baseada em descoberta e a ideia de estilos de aprendizagem. Seu trabalho impacta políticas e práticas educacionais, promovendo um ensino mais eficaz quando é centrado no professor

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  5. É pena que nas nossas faculdades de ciências de educação, estas novas descobertas sejam ignoradas. Parece haver um lobby construtivista fundamentalista.

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  6. Ja gora leiam

    Usha Goswami: Estudos sobre a neurociência da leitura e dislexia.

    Daniel Ansari: Pesquisa sobre a neurociência da aprendizagem da matemática.

    Carol Dweck: Teoria do mindset e sua influência na aprendizagem.

    Stanislas Dehaene: Neurociência da leitura e da consciência.

    Nora Newcombe: Estudos sobre o desenvolvimento espacial e a aprendizagem.

    Desculpem alguma obsessão minha

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  7. Em escolas secundárias inglesas, Jersey channel Islands, aconteceu algo semelhante em relação à alimentação. Perante a evidência dos factos, as escolas públicas instituiram o pequeno almoço antes desses alunos iniciarem as aulas. Isto já há mais de 15 anos.

    Quanto ao primeiro ciclo de 6 anos, eu já fui um dos defensores. Rapidamente verifiquei de que estava errado no que se referia ao caso português. É impensável uma coisa dessas em Portugal, porque a alteração de ciclos não pode ser vista isoladamente e fora da restante organização curricular. Se tentarem uma coisa dessas em Portugal, tenho a certeza de que será um estrondoso desastre.
    Eu já concluí que em Portugal quando se tentam alterações significativas na educação, e não só, só conseguimos fazer remendos. Nunca conseguimos olhar para a estrutura e colamos e descolamos coisas que nunca funcionam num sistema seriamente organizado.
    Eu diria, como muita mágoa, que somos um caso perdido em educação. O Paulo apontou muito bem algumas dessas razões.

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