Licenciado Ou Não Licenciado, Não É Bem A Questão

(texto já razoavelmente desgralhado, depois da sua escrita inicial, mais em velocidade do que em cuidado)

O bestial ministro ufana-se porque – diz ele – todos os professores, com o seu novo regime de “vale tudo”, terão de ser “licenciados”, mesmo que não tenham formação pedagógica.

A questão não é se são ou serão “licenciados”, mas no que é que são licenciados e o que é aceite como “habilitação própria” para dar aulas.

Regressemos a meados dos anos 80, para explicar como o que se vai passar é diferente – e mais danoso para a profissionalidade docente e para a sua qualificação académica – do que o que se passou há 40 anos.

Exemplifico com o meu caso, por comodidade, e porque segui o caminho todo, em todas as fases, tendo prescindido do que então foi a espécie de via rápida dos ramos de formação educacional (profissionalizantes, com a devida formação pedagógica) para aceder à carreira docente. E para que se perceba a diferença com o que se passa agora, e se desmontem “mitos”, mas não como aqueles de que fala o SE Leite, quando diz que sempre existiram professores com habilitação própria nas escolas, escondendo que nunca lhes foi pedida tão pouca formação desde os tempos do Propedêutico. Deve andar com falta de memória.

A primeira vez que dei aulas (grupo 23, História, horário nocturno com 2 turmas do 9º ano, 2 do 3º ano do Curso Geral e uma do 1º ano do Curso Complementar), na sequência de um mini-concurso, tinha apenas “habilitação suficiente”. Mas para essa habilitação suficiente era necessário ter 12 cadeiras anuais do curso de História feitas. Nos tempos que correm, de cadeiras semestrais, isto daria 144 ECTS bolonheses. Para “habitação suficiente”. Para ter habilitação “própria”, era necessário ter concluído o curso (20 cadeiras anuais, 240 ECTS dos de agora). Era então uma licenciatura. Em História. Para dar aulas de História. A profissionalização veio muito mais tarde, por desvairadas razões, ao findar do milénio, após vários anos de experiência a leccionar. Não a leccionar Sociologia, Direito, Educação Visual ou outra área qualquer. Só por ser “licenciado”.

O que agora se pretende é que basta ser “licenciado”, seja no que for. Desde que se raspem umas dezenas de créditos, já dá para ser professor de quase tudo.

Ainda em 1995, havia cursos superiores que, na melhor das hipóteses, permitiriam ter habilitação suficiente para leccionar (Portaria n.º 1141-D/95, de 15 de Setembro).

Eu tornei-me professor “profissionalizado”, depois da tal licenciatura antanha, mais um ano de “pedagógicas” (umas 4 cadeiras anuais… quase mais 50 créditos), porque já tinha tempo de serviço suficiente para dispensar do 2º ano de “estágio”. quem o fez teria agora o equivalente a uns 70 créditos ou parecido, em cima dos da formação inicial.

O trajecto (antes dos ramos de formação educacional) era; formação académica, experiência no terreno, profissionalização. Com os ramos de formação educacional (de que discordei de forma pública, por causa da massificação indiferenciadora que introduzia em muitos cursos, em artigo publicado em Março de 1987 no Expresso), a profissionalização passou a ser feita antes da experiência no terreno, mas depois da formação científica.

Agora é como calhar.

Agora, qualquer curso dá “habilitação própria”, desde que existam as tais dezenas de créditos (meia dúzia para grande parte das disciplinas), equivalentes a um ano ou ano e meio dos “velhos” cursos de licenciatura. Não interessa de que curso de formação inicial.

Isto só é possível, porque este pessoal encara os professores como meros “facilitadores de aprendizagens”, a quem o saber académico é desnecessário e, francamente, até prejudicial, porque se podem armar em sabichões e detentores de saberes arcaicos.

Ao contrário de outrora, agora acha-se mesmo que quem não consegue fazer nada ou arranjar outra ocupação profissional, pode ir dar umas aulas.

Basta ver como o actual responsável pelo projecto da abelhinha distópica apresenta, de forma aterradoramente simplista, as coisas, em entrevista publicada hoje no Jornal de Letras.

Isto é verdade. Como seria verdade uma frase semelhante, aplicada a uma criança ou jovem que deixássemos, há 50 ou 100 anos, no meio dos depósitos da Biblioteca Nacional ou outra grande biblioteca. Muita informação em seu redor.

A principal diferença: a facilidade e rapidez de acesso à informação.

O problema, ontem como hoje?

Perante tanta informação, como é que a criança ou jovem se consegue guiar, como se orientar perante a pletórica quantidade de dados?

O que vamos exigir a quem tem a função de, já nem digo “ensinar” mas, para adoptar a terminologia do neo-eduquês, “orientar as aprendizagens dos alunos em ambientes digitais imersivos”?

Basta uma “licenciatura”, uns créditos e boa vontade, para fazer isso? Para “facilitar” as aprendizagens de acesso rápido, sem grande verificação de rigor?

Com uma desvantagem nos dias de hoje que é a imensa quantidade de informação falsa, errónea, truncada ou deturpada que nos pode chegar em milissegundos às mãos e olhos.

O que os distópicos digitais não conseguem mesmo compreender é que, nos dias de hoje, é mais importante uma sólida formação científica inicial do que outrora. Porque é necessário um trabalho de cotejo muito maior do que era quando o material usado em sala de aula era apenas o manual e pouco mais.

O que os distópicos digitais não querem compreender é que a mestria na utilização das plataformas e demais ferramentas digitais não é a condição primeira para conseguir guiar os alunos de hoje na selva de informação que os cerca.

O que os utópicos das pedagogias, ditas “activas”, nunca conseguirão compreender – não está no seu adn ideológico – é que um professor desqualificado academicamente só por um acaso quase cósmico conseguirá formar alunos com todas aquelas competências que gostam de enumerar a partir do “Perfil do etc e tal”.

E é aqui que se dividem as águas… porque podem-me vir com a crítica do apego ao passado, dos saberes anacrónicos, da incompreensão em relação aos tempos novos das competências fofas, da flexibilidade e transversalidade do currículo, da porosidade das áreas do conhecimento (basta ver os temas que tratei, e quando, em boa parte dos meus tempos de pesquisa e formação pós-licenciatura para se entender que estou longe de encarar as coisas de modo rígido e antes das modas dos últimos anos), que aquilo que eu leio e ouço é uma mensagem simplista e simplória que reduz os professores a qualquer um que se habilite a entrar numa sala de aula e entreter a petizada com “fosquices” (conhecem o termo?), tudo debruado a conversa fiada.

Aliás… vou entrar por um terreno mais conspirativo, porque tudo bate certo dentro da lógica da “mudança de paradigma” pretendida pela educação costista low cost: esta crise de falta de professores foi alimentada e deixada crescer, exactamente para justificar o abaixamento dos níveis de exigência académica para os “novos professores”, para que a sua desqualificação. Nada disto resulta de um impossível desconhecimento ou de uma eventual incompetência total. Sim, existe incompetência, mas há algo pior do que isso: o desejo de tornar a profissão docente menos do que uma semi-profissão qualificada, de modo a melhor a domesticar e terminar o processo de proletarização, de que escapará a apenas a elite dos “dirigentes escolares” e uns quantos feudos preferenciais dos soberanos, com a RBE e o DE à cabeça, para quem entenda as siglas, antes que me caia ainda mais gente em cima, para mais gente bem ajoujada de créditos específicos, alegando funções e formações específicas.

Este diploma destinado, alegadamente, a combater a escassez de professores mais não é do que a conclusão de um processo começado há quase 20 anos por Maria de Lurdes Rodrigues, quando nomeaou explicitamente os professores como o seu inimigo central na Educação.

O bestial ministro, neste contexto, é apenas o amanuense de serviço, nada mais do que isso. porque, em termos académicos, o seu exemplo é que é o de um saber rígido, compartimentado e anquilosado na sua hiper-especialização adverbial, polvilhada com aroma de túlipas. Ele é um exemplo maior do que critica. Mas é verdade que é “superior”.

Demiti-lo… sem que o resto mude, só serviria para satisfazer quem anseia por prazeres epidérmicos, rápidos, sem entender que a máquina trituradora não começou em 2023, 2018 ou mesmo 2013…

Porque há vantagens em ser “velho” e ainda não ter pedido a capacidade de ver as tendências e padrões do médio-longo prazo. Ainda mais quando se é de História e se leu Braudel em devido tempo. Há quem só consiga ser um herdeiro muito imperfeito de Lévi-Strauss.

20 opiniões sobre “Licenciado Ou Não Licenciado, Não É Bem A Questão

  1. Este texto merecia ser lido nas Nações Unidas.
    E no Parlamento Europeu.
    E no Parlamento Português.
    E em todas as escolas.
    Mas, lamento ter que o dizer e sem receios e muito menos pedantismos, muita gente não o iria entender e diria, como o Carlos Da Maia “a vida é uma maçada, Ega.”

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  2. Saber ler e escrever, por exemplo, são processos mais complexos do que ir ao Google e copiar, de um sítio manhoso, a biografia de Camões.
    E é esta trampa que tem voz na matéria em termos de Educação. Gente miserável!

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  3. Sim, é difícil acreditar que ninguém se apercebeu de nada em termos de falta de professores. Isto foi previsto e intencional. O corpo profissional mais numeroso e qualificado do país está a ser estilhaçado.

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    1. Este é um “Guinote” colecionável. Obrigada!
      Depois do “Dia do Professor que sobrevive na república das bananas em que se tornou Portugal”, estava mesmo a precisar de ler algo lúcido e articulado.

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  4. Olha que giro! Em 87 estivemos em barricadas distintas. Mas tu eras velho e eu estava a iniciar o 2 ano 😁 Mas estive na luta e fui recebida no governo civil 😊

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    1. Eu até fui à TV, a um programa da RTP à tarde, a que foi o ministro de então, Deus Pinheiro.
      Fomos dois de cada “tendência”.
      Do outro lado foi, por exemplo, o Carlos Vaz Marques que, há uns tempos, parecia esquecido do seu próprio passado.

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        1. Por acaso, mais tarde, precisamente quando voltei à luta, entre 2006/08, lembrei-me desses tempos e dos meus/nossos argumentos (sou bem mais generosa agora).
          Mas cada um defendia o seu território com unhas e dentes e eu estava num curso via ensino.

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          1. Na FCSH da Nova, onde ainda não andavam bestiais, História quis a versão 4+2 (licenciatura e depois pedagógicas) em vez do regime integrado de 5 anos. Mais tarde, as coisasa mudaram, mas a prioridade era terminar o curso de História, não o de professor.
            Muita polémica, muitas RGA complicadas…

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          2. Na Univ. do Minho também tivemos dessas RGA… foi entusiasmante, para uma novata como eu!

            E eu a discursar nos intervalos, num palanque improvisado… ahahha

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  5. Muito bom, Paulo! E mais uma vez lá vamos parar, como o Paulo bem refere aos anos de chumbo da reitora. Tudo arquitetado, premeditado, tudo previsível. Quem é que oferece a maioria a estes senhores, quando os que são penalizados e excluídos são exatamente os que os suportam!? Absoluta desgraça.

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  6. Estranho… que ninguém se lembra de professores, no início do seu curso superior, a lecionar nos finais dos anos 80 e nos anos 90. Havia alguns só com o 12 ano e nunca chegaram a entrar na faculdade!
    Bom, deve ter sido um fenómeno que só aconteceu no interior!

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  7. Vou pedir permissão à Manuela e fazer das suas as minhas palavras!

    Paulo, que as forças nunca te faltem. Falas sem medo, com verdade e conhecimento.
    A escola pública está doente, pois além da tutela, há colegas que sempre se deslumbraram com pedagogias bacocas que diminuem o papel do Professor, infantilizam a aprendizagem e tornam, infelizmente, os nossos Alunos menos capazes. O sucesso alcança-se sem esforço, mas promete-se “orientar” os alunos a adquirir um PASEO digno de um verdadeiro cidadão capaz de construir o seu próprio foguetão e ir a Lua (basta irem ao telemóvel pesquisar).

    Desta forma, qualquer um pode ser professor! Apenas têm que dominar plataformas, recursos, tutoriais e tudo o mais que seja merd@ digital. Se tem qualidade científica e/ou pedagógica? Não interessa. O importante é gamificar.

    Infelizmente, isto é triste demais para eu, que adoro o sentido de humor, brincar.

    Parabéns aos professores que, diariamente, lutam para conseguirem ser… PROFESSORES.

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