Este Mês, No JL/Educação

Que até ontem ainda não tinha encontrado em quiosque, mas deve se por causa da chuva.

Uma questão de infelicidade

1.

Foi notícia, há dias, que os alunos são mais felizes nas escolas do que os seus professores. O estudo sobre o Bem-estar e felicidade nas escolas portuguesas foi desenvolvido por uma equipa enquadrada no projecto Escola Amiga da Criança e acaba por desmontar um dos mitos que de forma mais insistente se lança sobre a opinião pública acerca do quotidiano escolar, ou seja, que os alunos são infelizes nas escolas portuguesas e que estas são feitas à medida dos interesses dos professores. Inquirindo 5.038 professores e 3.130 alunos entre os 9 e os 20 anos, do ensino público e do privado, o estudo conclui que:

“Os alunos, em média, relatam níveis mais elevados de felicidade em comparação com os professores. A média de felicidade para os alunos é de 3,8 numa escala de um a cinco, enquanto para os professores é de 3,29. Além disso, os alunos têm uma visão mais otimista sobre o futuro, mostrando uma diferença substancial entre o bem-estar atual e o esperado daqui a cinco anos.” (Nascer do Sol, online, 20 de Novembro de 2023)

Eduardo Sá, ligado ao projecto, assume que algumas constatações foram surpreendentes, nomeadamente que “as disparidades socioeconómicas não são um obstáculo” à boa convivência e bom ambiente nas escolas e que para muitos alunos “o mais importante não é tirarem boas notas, nem aprenderem, mas a relação com os professores, que tomam como referenciais no seu crescimento” (Jornal de Notícias, online, 20 de Novembro de 2023).

O problema é que os professores não estão felizes e isso cada vez se nota mais, nomeadamente ao nível do seu escasso optimismo em relação ao futuro, que encaram com uma descrença que ainda não se reflecte nos alunos.

“Há uma diferença substancial entre as expectativas dos alunos quanto ao seu bem-estar hoje e aquele que esperam alcançar dentro de cinco anos (mais 1,2 pontos)”, refere o relatório, acrescentando que também os professores esperam alcançar maior bem-estar no mesmo período, mas em menor grau (apenas 0,3 pontos).” (Observador, notícia online, 20 de Novembro de 2023)

O mal-estar docente não é nenhuma novidade (veja-se o que se escrevia há anos Amélia Lopes sobre o impacto do mal-estar docente na sua motivação, na obra Os Professores – Identidades (Re)Construidas, coordenada por Áurea Adão, 2004, pp. 93-107), mas tem vindo a crescer de uma forma dramática, como resultado da degradação progressiva das suas condições de trabalho e da forma como a docência passou a ser tratada pelos decisores políticos e pela tutela directa.

Num estudo muito recente sobre o tema (Emerson  Vidal, Mal-estar docente, e a perda de si in Revista Latinoamericana de Estudios Educativos, vol. LIII, n.º 2, pp. 247-264, 2023) afirma-se que “O mal-estar docente é uma patologia que vem se agravando com o passar dos anos; muitos autores a definem como resultado da falta de infraestrutura mínimas que acaba por sobrecarregar o professor”, o que leva a “uma forma de existência em que a desestabilização advém de angústias em que o sujeito não consegue dar conta, e leva a formas de subjetivação que culpam o outro se desresponsabilizando, ou que se impregnam de responsabilidade, assumindo toda a culpa”. Esta situação é apresentada em outros estudos como a “doença silenciosa” do professor (Maurina Silva, A silenciosa doença do professor: burnout, ou o mal-estar docente, 2011, (consultado em https://www.unaerp.br/documentos/1464-161-454-1-sm/file em 21 de Novembro de 2023).

2.

No actual contexto de disputa política e eleitoral, com imensas promessas a serem lançadas em modo de caça ao voto, com o tal “populismo” de que muitos dizem mal, mas poucos sãos os que resistem a praticá-lo, não deixa de ser sintomático que estejam ausentes do debate questões muito importantes para melhorar o ambiente vivido nas escolas, na perspectiva dos docentes.

O problema não melhora quando se procura colocar a culpa pelo mal-estar docente nos próprios professores, como se eles tivessem em seu poder a capacidade de decisão sobre aquilo que influencia o seu quotidiano de forma negativa. Centrar a questão nas inaptidões individuais em termos de resiliência, competência social e emocional ou eficácia perante as dificuldades, apenas agrava a situação, ao contribuir para a erosão da auto-estima e auto-imagem de quem já se encontra em dificuldades. Assim como “abordagens holísticas” (cf F. McCallum et alli, Teacher Wellbeing: A review of the literature, 2017, p. 2, consultado em https://apo.org.au/node/201816 em 21 de Novembro de 2023) resolvem pouco ou nada, pois existem medidas, há muito explicitadas pela maioria dos docentes, que poderiam reduzir de forma significativa o mal-estar docente, o sofrimento associado ao exercício da docência ou mesmo a saúde mental, com um impacto relevante no desejo do abandono precoce da profissão ou na frequência das baixas médicas em virtude do desgaste sofrido.

Para além do mais, boa parte dessas medidas não têm sequer um custo associado, não representando qualquer despesa com impacto orçamental que justifique a sua não aplicação com pretextos de tipo economicista ou alegadamente de boa governança financeira dos recursos humanos. O que significa que não são tomadas por razões de enquistamento ideológico onde incompetência na gestão dos recursos humanos na área da Educação.

Comecemos, desde logo, pela forma como as escolas passaram a ser encaradas como “organizações” de tipo empresarial, com muita retórica sobre a “eficácia” a “responsabilização” e a necessidade de avaliar o desempenho dos docentes cuja “qualidade” se pudesse classificar ou medir em termos quantitativos, à moda de uma contabilização de parafusos produzidos ao final do dia. Como existe, a avaliação do desempenho docente é uma mistificação completa, um processo de tipo kafkiano, cuja condução é deixada, quantas vezes, ao arbítrio de quem não revelou qualquer especial competência para essa função.

Nenhum modelo é perfeito e qualquer solução merecerá sempre críticas, mas ao fim dos anos que temos de experiência seria, no mínimo, de expectável decência e coerência que se cumprisse o que ficou determinado, em letra aparentemente defunta, no decreto regulamentar 26/2012, no qual se pode ler no número 6 do seu artigo 30.º que “durante o quarto ano de vigência do presente diploma, proceder-se-á à avaliação do regime de avaliação do desempenho docente por ele estabelecido, consultando, ouvidas as associações sindicais”. O ano seria 2016, mas sobre esse já passaram outros quatro em 2020 e dentro em pouco serão mais quatro, sem que nada tenha sido feito.

Uma questão em que quase ninguém toca, no plano político, é o da morte matada da Democracia nas Escolas, nas quais se quer que se transmitam aos alunos “valores e competências que lhes permitem intervir na vida e na história dos indivíduos e das sociedades, tomar decisões livres e fundamentadas sobre questões naturais, sociais e éticas, e dispor de uma capacidade de participação cívica, ativa, consciente e responsável” (Perfil dos Alunos à Saída da Escolaridade Obrigatória. Lisboa, ME/DGE, 2017, p. 10), mas onde a sua prática foi esmagada em nome de um modelo de gestão escolar único, fechado sobre si, rígido, hierárquico e que nega todos os princípios e ideais de trabalho colaborativo. Flexibilizar do modelo, abrindo-o a alternativas, como soluções colegiais de gestão ou a eleição livre das lideranças intermédias pelos pares seria um bom início.

“Alguns ambientes de trabalho encaram a liderança apenas em termos de autoridade posicional – a organização é liderada por chefias de alto nível e, quanto mais se desce na hierarquia, menos as pessoas são consideradas líderes. Essas organizações estão a desperdiçar 90% do seu poder intelectual. A liderança saudável tem menos a ver com pessoas sentadas no topo a tomar decisões isoladas e mais a ver com indivíduos em todos os níveis da organização ajudando-se a alcançar o sucesso”. (P. Gamwelle J. Daly, Teachers Are Fleeing: 5 Ways to Boost Retention, 19 de Abril de 2022)

Por fim, uma medida que em vez de implicar gastos certamente conduziria a poupanças, passaria por um combate real à redundância burocrática, com destaque para aquela que pretende “monitorizar” a avaliação dos alunos, mas não passa de um enorme atestado de desconfiança em relação ao trabalho dos docentes, à sua competência pedagógica e à sua autonomia profissional. Mas essa é apenas a parte mais visível de uma deriva que, a cada promessa de simplificação, produz uma nova camada de desvario. Como, por ridículo que pareça, desenvolver processos de alegada desburocratização a partir de procedimentos hiper-burocráticos.