Este Mês, No JL/Educação

Desta vez, na versão impressa, colocaram as referências em notas de rodapé. No original, iam no corpo do texto, tal como a imagem que no dito cujo.

E se abordarmos este período de promessas pré-eleitorais de modo inverso ao habitual e, em vez de enunciarmos o que deve ser feito, apresentarmos o que não deve ser feito num novo ciclo de governação na área da Educação? Porque já se percebeu o esgotamento deste “paradigma”, para usar a novilíngua do neo-eduquês que preenche com terminologia pomposa, o vazio de realizações em efectivo prol das comunidades educativas. Infelizmente, a lista do “não deve” é longa e o que a seguir se elenca (outro termo que entrou na linguagem, enquanto se depilou a ortografia) é apenas uma amostra de tudo o que tem sido implementado, após teorização pouco substanciada, no quotidiano escolar.

Para começar, não se devem continuar a enganar alunos e famílias com a promessa demagógica e populista de que o sucesso está ao alcance de todos, sem especial esforço que não seja o imputado aos professores. Pouco é mais prejudicial para o interesse dos alunos do que dar-lhes a sensação de que o sucesso é um direito sem deveres e que a sua responsabilidade no próprio desempenho é quase o último parâmetro a ser considerado. Em especial quando é apresentada uma definição de “sucesso” com uma base puramente estatística e economicista. Ou quando essa definição é feita de um modo que condiciona a forma como se calcula o próprio “sucesso”.

Embora a pensar no Ensino Superior, a passagem seguinte ilustra como a investigação é condicionada pelos conceitos usados:

A forma como o sucesso é definido afeta quase todas as facetas do processo de pesquisa, bem como políticas e práticas, e em última análise, afeta os resultados dos alunos. As definições dos investigadores sobre o que é o sucesso afectarão como eles escolhem medir o construto, o que, por sua vez, terá impacto na forma como os dados são interpretados e, portanto, no que recomendações são propostas. (M. Weatherton e E. E. Schussler, “Success for All? A Call to Re-examine How Student Success Is Defined in Higher Education” in CBE—Life Sciences Education, Primavera de 2021, p.2)

Não devem eliminar-se, sem demonstração sólida, as provas de regulação e avaliação externa das aprendizagens, sob risco de ficarmos numa terra de ninguém, onde vale tudo e nada tem valor. Os argumentos, contra a existência de provas externas com impacto no aproveitamento dos alunos, baseiam-se numa espécie de profissão de fé que raramente tem consistência empírica, para além dos indicadores quantitativos de mais transições, sem qualquer verificação das aprendizagens realizadas de acordo com um padrão comum. Os resultados das avaliações externas internacionais mais recentes demonstram como a queda no desempenho dos alunos portugueses foi a par da erosão da avaliação externa e afirmar que a queda dos resultados se deve à pandemia e seguiu a média da OCDE, é enganador.

“Estas perdas — como mostram os resultados de outros estudos internacionais, nomeadamente o TIMSS 2019 e o PIRLS 2021 — já se observavam antes do encerramento das aulas presenciais resultante da Covid-19. Notavelmente, Portugal era até 2015 o único membro da OCDE que revelava um crescimento positivo na literacia dos seus alunos de 15 anos. Esta tendência inverteu-se de 2015 para 2018, para a leitura e as ciências, e em 2022 para a matemática. (…) as estimativas de perda de literacia 2015-2018 foram, em média, de 1.7 pontos PISA/ano, tendo duplicado para 3.4 pontos/ano entre 2018 e 2022. A pandemia da Covid-19 agravou, para o dobro, o efeito negativo da política educativa em curso. (João Marôco, “Confinamento COVID-19: O vilão das perdas de aprendizagem dos alunos?”, Iniciativa Educação, 9 de Fevereiro de 2024, artigo online)

Não deve continuar a retalhar-se o currículo, sacrificando o tempo destinado à transmissão do Conhecimento, em favor da propagação de modas ou crenças passageiras, sem fundamentação científica, como se tudo fosse equivalente e o relativismo fosse a regra. Não devem misturar-se como equiparáveis, em alunos com 10-12-14 anos, princípios de prevenção rodoviária com a aprendizagem de uma História não retalhada ou uma introdução ao empreendedorismo com a compreensão de conceitos fundamentais das Ciências Naturais. O currículo do Ensino Básico não pode ser refém de epifenómenos conjunturais que seduziram este ou aquele decisor político.

Não deve manter-se um regime de gestão e administração escolar que é profundamente anti-democrático na sua essência e práticas, aos mais variados níveis. Seja no do poder hierárquico da tutela sobre os directores, seja destes em relação ao pessoal docente, não esquecendo que as lideranças intermédias passaram a ser pré-escolhidas, seguindo-se uma “eleição” em formato de cosmética, um pouco à semelhança do processo de escolha da pessoa que centraliza em si a Direcção Executiva, a presidência dos Conselhos Pedagógico e Administrativo, assim como da Secção de Avaliação do Desempenho Docente e ainda a presença no Conselho Geral das organizações escolares.

Do mesmo modo, não deve manter-se uma completa incoerência entre os princípios que se proclamam sobre a necessidade de transparência e rigor na avaliação dos alunos e o arbítrio na avaliação do pessoal docente, entregue a uma lógica fechada e quase impermeável a uma verificação externa independente em relação aos abusos e más práticas a que os serviços centrais do Ministério da Educação, em regra, dão cobertura. O actual modelo de avaliação dos professores, que resulta de uma deriva burocratizante, é perverso e apenas conduz ao desânimo crescente de quase toda a classe docente. O fenómeno não é exclusivamente nacional, existindo vários estudos que quantificam o sentimento de desrespeito percepcionado pelos professores:

Uma conclusão consistente da investigação é que a satisfação profissional dos professores está ligada ao seu sentimento de ser respeitado. Na pesquisa MetLife de 2011, por exemplo, 77% dos professores perceberam que as suas comunidades os tratavam como profissionais e 59% estavam muito satisfeitos com os seus empregos.

É, portanto, preocupante que o [actual] inquérito tenha constatado que apenas 46% dos professores sentem que o público em geral os respeita e os vê como profissionais.” (1st Annual Merrimack College Teacher Survey: 2022 Results, EdWeek Research Center, p. 6, online)

Quase a finalizar, é impensável manter uma lógica de hiper-burocratização do trabalho dos professores que retira horas e horas ao trabalho com os alunos, enfatizando a representação do acto pedagógico à sua efectiva realização e demonstrando uma extrema desconfiança em relação à profissionalidade docente no que se relaciona, muito em especial, ao acompanhamento e avaliação do desempenho dos alunos. No mesmo estudo, apresentam-se dados similares ao sentimento de grande parte dos professores portugueses quanto ao uso do seu tempo profissional.

Em geral, a maioria dos professores afirma que gostaria de passar mais tempo em atividades diretamente relacionadas ao ensino (planeamento, instrução) e menos tempo em tarefas mais auxiliares (trabalho administrativo, interações não docentes com os alunos, como tarefas de “sala de espera”, orientação e aconselhamento) . Esta sensação – de que se gasta demasiado tempo neste trabalho periférico, combinada com a realidade de que a maioria dos professores diz não ter controlo sobre o seu tempo e quase metade percebe que não tem controlo sobre o currículo que ensinam – levanta preocupações de que o ensino se está a tornar uma atividade desprofissionalizada, na qual os educadores são tratados cada vez mais como funcionários à hora, com autonomia limitada. (Holly Kurtz, “A Profession in Crisis: Findings From a National Teacher Survey”, EdWeek Research Center, 4 de Abril de 2022, online)

Mais do que não dever, não se pode continuar no caminho da desqualificação académica da profissão docente, como se a irresponsabilidade com que se tratou a gestão dos recursos humanos na Educação ao longo dos anos, possa justificar um novo modelo de formação de docentes que privilegia a rapidez à qualidade e o simplismo ao rigor. O que recentemente se apresentou como diploma regulador das habilitações para a docência é um recuo enorme, de várias décadas, em relação às exigências de natureza científica para se ser professor, como se leccionar uma qualquer disciplina resultasse quase em exclusivo da vontade para o fazer.

Pior do que fazer algo mal, é insistir no erro, quando as evidências nos demonstram à saciedade que o caminho não tem sido feito no sentido correcto e é indispensável, para o interesse primeiro dos alunos, mudar de rumo.

4 opiniões sobre “Este Mês, No JL/Educação

  1. Este artigo supera o “fotorrealismo” ou “hiper-realismo” escolar, porque é “REAL”, foi escrito por quem sabe (imenso) dos assuntos, porque os vive e, conhece, como poucos!

    O RX da Educação plasmado nas frases e números, superam devaneios imediatistas e da “moda”.

    Sem trabalho árduo, foco e disciplina dos alunos, todo o sucesso será enganador.

    Sem menos “Violência nas Escolas”, não haverá sucesso pleno.

    Sem respeito e valorização dos professores, o processo ensino-aprendizagem, fica inquinado.

    O problema não começará pelo(s) topo(s)?

    Atente-se:

    Não deve manter-se um regime de gestão e administração escolar que é profundamente anti-democrático na sua essência e práticas, aos mais variados níveis. Seja no do poder hierárquico da tutela sobre os directores, seja destes em relação ao pessoal docente, não esquecendo que as lideranças intermédias passaram a ser pré-escolhidas, seguindo-se uma “eleição” em formato de cosmética, um pouco à semelhança do processo de escolha da pessoa que centraliza em si a Direcção Executiva, a presidência dos Conselhos Pedagógico e Administrativo, assim como da Secção de Avaliação do Desempenho Docente e ainda a presença no Conselho Geral das organizações escolares.”

    Cada um que tire as suas conclusões. Eu, já há anos que tirei as minhas (o atual modelo de gestão das escolas é propício a autoritarismos/autocracia e, demasiadamente hierarquizado)!

    Só não vê, quem não está a trabalhar nas escolas.

    Faltou também um planeamento para a educação e para evitar a falta de professores nas escolas.

    Baixar as qualificações docentes, para lecionar, será uma boa medida?

    Por analogia:

    Alguém prefere consultar um estudante de medicina no 2.º, 3.º Ano, ou prefere um médico já formado?

    As raízes do estudo (Educação) são amargas, mas seus frutos são doces.” – Aristóteles

    Qual o programa eleitoral (partidário), que consultou as opiniões de 30 000 professores (ou mais) do Ensino Público, com mais de 15 anos de serviço letivo ininterrupto?

    A Educação é (ou deve ser) de “absoluta” primazia, porque afeta toda a vida e todos os setores/atividades.

    Não queiramos “Tapar o sol com a peneira.”

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  2. Aditamento ao texto do Paulo:

    “Se no passado se vê o futuro, e no futuro se vê o passado, segue-se que no passado e no futuro se vê o presente, porque o presente é futuro do passado, e o mesmo presente é o passado do futuro.”

    Padre António Vieira

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  3. Li no Jornal de Letras e não fiquei surpreendido. O Paulo focou o que também considero essencial, do que nao deve nem pode ser feito. Já nos habituou a uma grande sensibilidade profissional e intelectual. Melhor, não imagino muito bem como.

    Refiro só três pontos do texto porque são os que mais se refletem no nosso dia a dia na escola.

    1° O sucesso garantido. Acho extraordinário ter começado por aqui. É fundamental continuar a insistir neste pormenor porque tem consequências severamente danosas tanto nos alunos como em nós professores.

    2° A gestão antidemocrática da escola. Outro aspecto com consequências gravíssimas na nossa vida escolar.

    3° A avaliação de desempenho. Até me arrepia ter de falar neste assunto. Trata-se de uma prática tão maldosa com consequências tão graves que não é muito facil avaliar todos os danos provocados.

    Só me resta agradecer ao Paulo. E que não desista, se ainda puder.

    Li que disseste num comentário que já não conseguias levar muita coisa a sério. Eu também não e já não sobra muita coisa, fora da sala de aula.

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